Reimaginando a educação por meio da IA
A inteligência artificial está sendo usada de maneiras positivas para reduzir as desigualdades educacionais, e ONGs impulsionadas por IA estão criando um roteiro para o que o futuro da educação pode proporcionar
Por Kevin Barenblat e Brooke James
Você já ouviu falar de kalamang? Se não, você não está sozinho. Trata-se de uma língua em risco de extinção, falada por apenas 130 pessoas e que praticamente não tem presença online. Essa é uma das razões pelas quais, em 2023, o kalamang foi ponto de partida para um questionamento interessante: será que um modelo de linguagem de larga escala (ou LLM, na sigla em inglês) conseguiria aprender e traduzir uma nova língua do zero, tendo sido treinado a partir de um único livro?
A autora do livro em questão – o primeiro dedicado à gramática do kalamang – é Eline Visser, doutoranda na Universidade de Oslo. Ela se juntou a pesquisadores do Google, da Universidade Stanford e da Universidade de Oxford para investigar a questão. A equipe pediu ao ChatGPT-4 que lesse a obra e, em seguida, traduzisse 500 frases do kalamang para o inglês. Em termos de precisão e fluência natural, o modelo de IA não conseguiu ser melhor que um especialista humano – embora este tenha levado dez horas para revisar o livro e várias semanas para realizar a tradução. No entanto, em um teste recente com o novo Gemini 1.5 do Google, os pesquisadores descobriram que a IA superou a tradução humana. O que isso significa? Bom, se a IA consegue absorver e traduzir uma língua completamente nova de forma quase instantânea, as possibilidades para que a IA traduza o conhecimento mundial em línguas raras são infinitas, o que permitiria alcançar pessoas que talvez nunca tenham tido acesso a uma educação formal.
O uso de IA na educação é ainda novíssimo, mas com muito potencial. De acordo com o Forbes Advisor, 60% dos educadores já usam IA em suas salas de aula – pesquisas mostram que, em grande parte, os resultados atendem às expectativas. Segundo um estudo da aiEDU realizado em 2023, mais da metade dos educadores afirma que os impactos da IA generativa são “um pouco positivos” ou “muito positivos”. No entanto, há um estigma a ser superado, principalmente devido ao medo de que os alunos usem a tecnologia para trapacear.
Essa preocupação, que tem fundamento, já levou professores a redigir contratos de comportamento para o uso de IA e a empregar softwares para detectar se os alunos se valeram dela em seus trabalhos. No entanto, se aplicada de forma correta, a IA complementa, em vez de substituir, o trabalho de alunos e professores. Ela pode ajudar os profissionais da educação para que eles não se sintam tão sobrecarregados quando precisam dar o máximo com poucos recursos. Também pode auxiliar os alunos a encontrar soluções por conta própria, em vez de fornecer respostas prontas, exigindo que eles demonstrem seu raciocínio e servindo de guia em processos de aprendizagem passo a passo.
De acordo com a Walton Family Foundation, 81% dos professores afirmam que a IA teve um impacto positivo na educação, e 65% acreditam que ela será essencial para o sucesso futuro dos alunos.
Já há organizações que dão razão a esses educadores. A inteligência artificial vem se mostrando útil para reduzir as desigualdades educacionais, e ONGs impulsionadas por IA estão criando um roteiro para o que o futuro da educação pode trazer.
Como ONGs estão aproveitando a IA
Por meio da nossa pesquisa, a Fast Forward identificou cinco meios principais pelos quais ONGS usam a IA na educação. Veja a seguir.
Fortalecimento da educação infantil em comunidades de baixa renda | A IA pode personalizar o conteúdo e o ritmo das aulas segundo as necessidades de cada aluno, abordando seus pontos fortes e áreas em que precisam melhorar. Pode ainda ajudar a identificar atrasos no desenvolvimento, diferentes estilos de aprendizagem ou dificuldades de aprendizado, permitindo fazer intervenções e dar apoio quando necessário. Isso é especialmente importante em comunidades de baixa renda, onde necessidades assim muitas vezes passam despercebidas e ficam sem apoio.
Melhora de gramática, redação e compreensão de leitura | A IA pode oferecer feedback em tempo real e instrução personalizada. Algoritmos de processamento de linguagem natural podem analisar o trabalho escrito dos alunos, identificar erros gramaticais, sugerir melhorias e fornecer explicações para ajudá-los a entender seus erros. Para a compreensão de leitura, a IA pode recomendar textos em níveis de dificuldade adequados ao aluno, gerar perguntas que promovam o pensamento crítico e acompanhar o progresso dos estudantes ao longo do tempo.
Educação de qualidade em comunidades isoladas | Um dos maiores trunfos da IA é poder alcançar um vasto número de usuários, superando barreiras de idioma e até de conectividade com a internet. Como explicamos abaixo, em nosso estudo de caso sobre equidade na educação, dispositivos de tecnologia educacional sem conexão podem ainda assim fornecer acesso a uma grande quantidade de materiais interativos, simulações e exercícios e, em breve, também vão incorporar ferramentas offline de suporte com IA. Além disso, a IA pode traduzir o material para idiomas locais, tornando a educação mais acessível e culturalmente relevante.
Comunicação entre professores e pais | Atualizações de rotina para os pais podem ser automatizadas por IA, que também pode prover análises baseadas em dados sobre o progresso, a frequência e o comportamento dos alunos, além de dar sugestões para o envolvimento dos pais. Além disso, a IA pode fazer a ponte entre educadores e famílias que talvez não falem o mesmo idioma.
Empoderamento dos professores | De acordo com a Gallup, 44% dos educadores dos ensinos básico e médio dos Estados Unidos e 35% dos trabalhadores no ensino superior afirmam se sentir esgotados “sempre” ou “muito frequentemente”. A IA pode ajudá-los, gerando ideias para exercícios em sala de aula ou automatizando tarefas rotineiras, como correção de provas, acompanhamento de presença e planejamento de aulas. O tempo economizado nessas tarefas pode ser usado para um maior engajamento em sala de aula e para atender às necessidades dos alunos.
Três estudos de caso
Aprimorando o ensino fundamental na Índia
A Rocket Learning se baseia fortemente nas experiências pessoais de seus cofundadores. Um deles, Siddhant Sachdeva, pôde ver, como filho de uma diretora de uma escola para famílias de baixa renda na Índia, a importância que tem a educação infantil para esses jovens alunos. Muitos pais, no entanto, não conseguem se envolver no processo educacional. Isso aponta para um problema maior: no país, 40 milhões de crianças entre 3 e 6 anos não estavam alcançando seu potencial devido a lacunas educacionais.
A Rocket Learning nasceu com a missão de fornecer ferramentas para que pais e trabalhadores dos anganwadi (centros de cuidado infantil em zonas rurais) pudessem acompanhar as primeiras etapas de aprendizagem das crianças. Usando IA generativa, aprendizado de máquina, modelagem preditiva, assistentes de voz e processamento de linguagem natural em seu coach de IA, a organização cresceu rapidamente. Como quase metade dos indianos possui um smartphone, e a maioria das famílias usa o WhatsApp, o aplicativo foi escolhido para o envio de lições e para a comunicação com professores e pais.
A IA da Rocket Learning cria conteúdo localizado nas principais línguas indianas. Ela também automatiza a correção de atividades ao reconhecer a caligrafia e utiliza modelagem preditiva para identificar e reter alunos em risco. Também provê análises destinadas a acompanhar o progresso de cada criança e a identificar aqueles que precisam de apoio extra. O conteúdo é desenvolvido para ser acessível e atrativo, mesmo para pais com pouca ou nenhuma escolaridade que estão ensinando seus próprios filhos. As aulas são elaboradas com base em materiais caseiros acessíveis, e o conteúdo é compacto, audiovisual e gamificado para manter as crianças entretidas. A fim de garantir a acessibilidade, os arquivos têm tamanho limitado a 5 MB. Para os trabalhadores dos anganwadi, a plataforma oferece ferramentas, treinamento e incentivos para motivar o engajamento dos pais.
A Rocket Learning fez parte dos programas de aceleração de startups e de crescimento da Fast Forward em 2021 e, no ano passado, foi reconhecida com US$ 1,5 milhão no prêmio AI for the Global Goals, dado pelo Google.org. Desde sua criação, já impactou 2,5 milhões de crianças, ajudando-as a se tornarem os melhores da classe. Além disso, 75% dos estudantes que utilizam a Rocket Learning atingem seus marcos de desenvolvimento aos seis anos de idade, em comparação com a média nacional, de 57%.
Para outro cofundador, Vishal Sunil, sem a IA a Rocket Learning não teria tido esse sucesso. “Quando a IA é usada para o bem, seu potencial para causar um impacto profundo e real na sociedade é liberado e pode mudar a vida dos mais vulneráveis de forma fundamental”, diz ele. “Para superar lacunas educacionais em nível global, é preciso pensar grande em termos de escala e usar a IA e a tecnologia de forma responsável, como facilitadoras no processo, mantendo as comunidades no centro de seus projetos.”
Na análise que fizemos do cenário de organizações não rentáveis impulsionadas por inteligência artificial ou APNs (sigla em inglês para AI-powered nonprofits), a Rocket Learning ilustra como a IA pode ser usada para monitoramento (coletando e analisando dados continuamente, fornecendo insights e alertas em tempo real), tradução (facilitando a comunicação eficaz e tornando os serviços acessíveis para mais públicos) e avaliação (analisando o feedback dos usuários e fazendo recomendações relevantes).
Khan Academy’s Khanmigo: tutoria individual e apoio aos professores
Romeu e Julieta é um dos textos mais utilizados nas aulas de inglês do ensino médio. Portanto, não foi surpresa que Aleksandar Tatum, um estudante de 16 anos da Hobart High School, em Indiana, tivesse a tarefa de ler a peça e depois escrever uma história modificando algumas cenas. Enquanto trabalhava nessa atividade, ele pediu ao seu professor para descrever o primeiro ato da terceira cena, do qual não conseguia se lembrar direito. “Estou aqui para ajudá-lo a criar uma história”, disse o tutor, mas o encorajou a folhear as páginas para revisar a cena novamente. O tutor, porém, não era um educador comum. Era um treinador de aprendizado com IA: o Khanmigo. “O Khanmigo aprende do mesmo jeito que eu”, disse Tatum. “É quase como se ele estivesse caminhando junto com você.”
O Khanmigo foi criado pela Khan Academy, uma organização sem fins lucrativos fundada em 2008 para fornecer ferramentas educacionais online. Hoje, a Khan Academy possui 165 milhões de usuários registrados em mais de 190 países. Como um tutor estudantil, o Khanmigo possibilita um aprendizado interativo ao permitir que os alunos debatam, façam perguntas e colaborem. O chatbot oferece suporte aos estudantes sem dar respostas diretas, orientando-os com sugestões, perguntas e esboços. Como o feedback imediato é essencial para o aprendizado, especialmente na aprendizagem de novos conceitos, o Khanmigo atua como um tutor socrático, instigando os alunos a pensar em desafios passo a passo. Para limitar o tempo de tela, a Khan Academy restringe o uso da tecnologia por parte dos alunos por dia. Os históricos de chat e as atividades ficam visíveis para pais, responsáveis e professores, e a plataforma os alerta sobre quaisquer interações inadequadas.
Os professores têm sua própria versão de um assistente de ensino com IA, que os ajuda reduzir o tempo de preparação de aulas, quizzes, grupos de alunos e outros materiais. Em maio de 2024, a Khan Academy fez uma parceria com a Microsoft, que doou acesso à sua infraestrutura otimizada de IA na Azure e possibilitou acesso gratuito ao Khanmigo para todos os educadores dos Estados Unidos. A instituição planeja expandir as ferramentas para professores em outros países de língua inglesa e já tem um programa piloto em andamento no Brasil.
Embora esses desenvolvimentos sejam promissores, o fundador da Khan Academy, Sal Khan, recomenda que os otimistas olhem com cautela para os avanços. “Acho que todos nós juntos devemos lutar com todas as nossas forças para garantir que coloquemos os limites. Devemos implementar regulamentações quando os problemas surgirem”, disse em uma TED Talk em 2023. “Mas trabalhamos pelos casos positivos de uso […] O mais poderoso, e talvez o mais poético, é se a IA pode ser usada para aprimorar […] a inteligência humana, o potencial humano e o propósito humano.”
Segundo nossa análise, o Khanmigo é um exemplo importante de uso da IA como um treinador, uma tecnologia dinâmica que emula a interação humana e atua como um especialista em campos específicos.
Learning Equality: levando a revolução do aprendizado online para o offline
Em 2012, Jamie Alexandre, então estudante de doutorado em ciências cognitivas, passou um verão estagiando na Khan Academy. Durante esse período, ele refletiu sobre seu período como voluntário em um centro de refugiados tibetanos em Darjeeling. Lá, ele havia se deparado com a falta de conexão à internet, um problema para dois terços da população mundial. Alexandre se perguntou: como a educação online poderia ser levada para o offline? O lançamento do Raspberry Pi, um computador acessível, lhe inspirou uma ideia. Com outro estagiário da Khan Academy, Alexandre desenvolveu um protótipo que dava acesso offline aos vídeos e exercícios da Khan Academy usando o Raspberry Pi. Mais adiante, em abril de 2013, a iniciativa Learning Equality se tornou uma organização sem fins lucrativos.
O Kolibri, a segunda geração de sua plataforma, é um ecossistema de produtos projetados para aprendizado com dispositivos não conectados à internet. Ele organiza e adapta quase 200 mil recursos abertos para atender a objetivos de aprendizado específicos. Ela funciona em muitos dispositivos e sistemas, utilizando hardware de baixo custo e pode ser baixada por usuários offline diretamente do site da Learning Equality. Como alternativa, as organizações podem distribuir conteúdo por meio de pen drives, dispositivos pré-carregados ou sincronização ponto a ponto.
Nos últimos dez anos, as ferramentas da Learning Equality ajudaram mais de 10 milhões de alunos em mais de 220 países e territórios a alcançarem seus objetivos educacionais. Uma dessas estudantes é Mudiyatu, de Camarões. Sendo a primeira em sua comunidade a passar no exame da International Baccalaureate (IB), qualificação educacional reconhecida internacionalmente, Mudiyatu queria estudar enfermagem, mas não tinha uma formação científica sólida. O Kolibri deu a ela acesso ao conteúdo de ciências e matemática da Khan Academy em francês, ajudando-a a passar no teste da escola de enfermagem. “Havia tópicos no exame que eu só consegui responder por causa do que estudei no Kolibri.”
Agora, a Learning Equality está explorando como a IA pode acelerar o alinhamento curricular e o desenvolvimento de aulas. Atualmente, com sua ferramenta curricular online, o Kolibri Studio, os usuários fazem upload de seus próprios materiais e combinam-nos com outros recursos da Biblioteca Kolibri. Eles podem optar por alinhar o resultado às suas necessidades educacionais específicas e aos padrões curriculares de seus países.
Em colaboração com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Learning Equality está desenvolvendo uma ferramenta de alinhamento curricular semiautomatizada que utiliza IA generativa para tornar esse processo menos demorado. No início deste ano, sua IA alinhou automaticamente 12 mil recursos de aprendizado a mais de 2.000 objetivos de aprendizado distintos para estudantes em Uganda, um processo, que segundo suas estimativas, teria levado meses de trabalho e custado centenas de milhares dólares. Com a IA, levou apenas alguns dias e algumas centenas de dólares em créditos de interface de programação de aplicativos, além do custo com especialistas pagos para revisar o conteúdo. Esses materiais já estão sendo usados por professores ugandenses e jovens em comunidades sem conexão à internet.
Na visão de Alexandre, a equidade precisa se tornar um foco central para empreendedores de edtech, de modo que a tecnologia possa servir para reduzir, e não para agravar, as divisões existentes. “É fácil cair em um padrão que atenda às necessidades daqueles que nossas soluções conseguem alcançar mais facilmente. Mas um verdadeiro foco na equidade significa encontrar maneiras de ouvir e apoiar as necessidades daqueles que, de fato, são mais difíceis de alcançar”, diz Alexandre. “Esse foco é algo que torna esse trabalho tão desafiador, mas também tão importante.”
Sob a análise da Fast Forward sobre APNs, a Learning Equality é um exemplo de como usar a IA para organizar, alinhando um grande volume de dados e garantindo que informações relevantes sejam facilmente acessíveis.
O papel da IA em um aprendizado melhor e mais equitativo