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O modelo #GivingTuesday

O setor social pode aprender muito com a rede de inovação que despontou com o movimento global de doação pós-Thanksgiving.

Por Asha Curran

#GivingTuesday
Ilustração: Hanna Barczyk

Durante anos, o setor social enfrentou, basicamente, os mesmos desafios: uma busca interminável para captar fundos, luta para atrair talentos e manter as operações básicas e necessidade de fazer lobby em causa própria na esfera pública. Apesar das boas intenções e dos propósitos louváveis, os gestores do setor ainda se queixam da falta de colaboração e inovação para resolver esses problemas persistentes. Uma pesquisa realizada em 2017 pelo Bridgespan Group e pela Rockefeller Foundation mostrou que, embora 80% dos gestores de organizações sem fins lucrativos concordem que a inovação é uma “necessidade urgente”, somente 40% deles acreditam que suas organizações estão preparadas para inovar. Todas essas questões colocam em risco o progresso e a sustentabilidade do setor.

Há anos sou uma das líderes do #GivingTuesday (GT, ou Dia de Doar). Instituído como um dia de doação popular, celebrado na terça-feira após o Thanksgiving (Dia de Ação de Graças), depois de dois dias de grande consumo – Black Friday e Cyber Monday –, o GivingTuesday é hoje um movimento global que ocorre ao longo do ano todo e arrecada centenas de milhões de dólares em doações anualmente nos Estados Unidos e continua a se espalhar por dezenas de países em todos os continentes* (leia aqui texto sobre o movimento no Brasil escrito por João Paulo Vergueiro). Ao desenvolver este trabalho, pude perceber como os líderes do setor social em todo o mundo estão enfrentando os desafios comuns que afetam todos nós. Os exemplos desses líderes nos ajudam a entender as mudanças que precisamos fazer.

Por ser uma ideia flexível, que atende a diferentes necessidades, em diferentes momentos e diferentes públicos, o GivingTuesday pode ser explorado como uma experiência de aprendizado. Embora tenha contribuído com a arrecadação das instituições sem fins lucrativos, a data é mais do que um simples dia de captação de recursos. É um movimento on-line e off-line, no qual ideias e recursos são criados e compartilhados, e onde a cultura da generosidade, o alicerce de uma sociedade civil saudável, está prosperando.

O Poder da Rede

#GivingTuesday foi criado em 2012, na 92nd Street Y, famosa instituição cultural de Nova York (sem histórico de ter criado movimentos de mídias sociais). Na época, o Twitter estava engatinhando. E nem se imaginava que movimentos como #MeToo e #NeverAgain atingiriam as proporções que atingiram. No início, o GivingTuesday tinha por objetivo tentar responder a uma série de perguntas sem resposta: as mídias sociais poderiam ser usadas para disseminar a generosidade e fazer as doações viralizarem?; seriam capazes de mudar as normas e comportamentos culturais sobre doação?; e as pessoas iriam querer fazer posts sobre questões com as quais se preocupavam da mesma forma como postavam quantos quilômetros haviam corrido naquela manhã ou o que haviam pedido de almoço?.

As respostas foram todas afirmativas. #GivingTuesday gerou uma onda de entusiasmo no primeiro ano de vida tanto no setor social como entre a população. Foram US$ 10 milhões de doações on-line, com 2.500 organizações sociais apoiando a ideia. Nos Estados Unidos, o valor doado aumentou em percentuais de dois dígitos a cada ano. Em 2017, somente nas 24 horas do GivingTuesday, as doações on-line ultrapassaram  US$ 300 milhões. 

E não foi só isso. Temos certeza de que esses números são muito maiores, já que as doações on-line equivalem a aproximadamente 10% do total doado. E o valor arrecadado corresponde ao total de somente algumas das cerca de 150 plataformas de doação. Cerca de 75% das pessoas que doam para o GivingTuesday são doadores recorrentes e 25% são estreantes, o que mostra que a data tanto envolve colaboradores fixos como arrebanha novos interessados. O movimento também arrecada doações em outros dias do ano, como, por exemplo,  durante campanhas de assistência humanitária. Ele gera um pico de doações, mas não há uma queda correspondente nas doações ao longo do resto do ano.

O GivingTuesday se tornou onipresente. Só nos Estados Unidos foram criadas mais de cem campanhas de comunidades locais, desde estados inteiros como Illinois e Nova York até pequenas cidades como Bethel, no Alasca, e Botothbay Harbor, no Maine. Porém o fato mais notável é que se espalhou pelo mundo todo, com movimentos oficiais em mais de 75 países e atividades não oficiais em vários outros. Os líderes desses movimentos – que representam entidades sociais, alianças sem fins lucrativos, plataformas de doações, empresas de marketing, associações de captadores de recursos e fundações comunitárias – provêm de todos os cantos do mundo, falam inúmeros idiomas e atuam em cenários culturais, filantrópicos e históricos extremamente diversificados.

Apesar da diversidade, esses líderes construíram uma rede próspera e altamente interconectada para resolver problemas comuns. Eles se comunicam ao longo do ano todo – via WhatsApp e por e-mail –, promovem encontros e reuniões presenciais  e discutem o progresso do movimento em suas regiões, os erros cometidos, as lições aprendidas e as melhores práticas descobertas. Os princípios informais nos quais a rede se baseia são generosidade, transparência, humor, iteração e fortalecimento e encorajamento mútuos. Eles questionam o conhecimento tradicional das entidades filantrópicas e se frustram com a estagnação e a repetição. O principal tema de interesse da rede é a doação, mas os líderes também compartilham um profundo comprometimento com a justiça social e os valores democráticos.

Lições Aprendidas

O que aprendemos até agora com os resultados do GivingTuesday, com sua rede de líderes e com o laboratório de inovação global de doações que eles estão construindo juntos? Eu destacaria sete lições.

Pensar no setor social como uma rede global de soluções. Nesta era, é extraordinário como uma nova grande ideia ultrapassa as fronteiras rapidamente. Os desafios comuns que enfrentamos são bastante conhecidos. Mas, mesmo quando nosso trabalho é extremamente local, é preciso pensar em como ampliar nosso raio de ação para compartilhar ideias que possam beneficiar mais pessoas. Se aprendermos as formas como os líderes globais do GivingTuesday compartilham as melhores práticas ao longo do ano, e as replicarmos, as ideias serão facilmente assimiladas e os experimentos se espalharão em grande escala por diferentes esferas, tão rápido como se disséssemos ao colega da mesa ao lado: “Ei, tente fazer assim…”.

Adquirir fluência em dados. O #GivingTuesday Data Collaborative foi criado em 2015 pela equipe de liderança do GivingTuesday, com o objetivo não só de ampliar o movimento, mas também de medir e explorar ao máximo os dados disponíveis sobre tendências de doações e comportamentos de uma forma mais genérica. Não precisamos ser cientistas de dados, mas sim “code switchers” (alternadores de códigos) – pessoas que fazem a ponte entre os que conhecem bem os dados e aqueles que precisam entender suas aplicações, riscos, e possibilidades –, ou ter acesso a eles. Precisamos saber qual a melhor forma de utilizar os próprios dados – produtivamente, com segurança e responsabilidade – e também saber quando e como juntá-los para elaborar análises coletivas e gerar conhecimento. Compartilhar pode ser um risco, mas aumenta o potencial da recompensa.

Repensar o “branding”.  #GivingTuesday é, propositalmente, um movimento “sem marca”. Por isso, diferentes comunidades, organizações ou pessoas podem se tornar seus donos, ou coproprietários, e alterá-lo e adaptá-lo para refletir diferentes identidades. A ideia de copropriedade é fundamental para o crescimento do movimento, pois ela é formulada por várias pessoas, dirigida por várias pessoas e alterada por várias pessoas. A geração atual hiperconectada interage com as causas que defende (e com tudo mais) de forma muito diferente da geração passada. Não se pode mais esperar que os doadores sejam inquestionavelmente fiéis a uma marca. Sua relação com o ato de doar é mais reservada e muda com rapidez. O GivingTuesday tem ressonância, porque doar é um ato coletivo, comemorativo e mais transformador que transacional.

Adaptar-se à tecnologia em constante evolução. Em 2017, o Facebook causou um rebuliço no #GivingTuesday ao contabilizar US$ 45 milhões em doações e, no dia seguinte, anunciar sua intenção de isentar permanentemente as doações de quaisquer taxas e instituir um programa de financiamento coletivo anual na empresa. Outras grandes plataformas de tecnologia seguiram seu exemplo ou estão em via de entrar no jogo da doação on-line. As implicações disso – e da doação direta de pessoa a pessoa, doações no local de trabalho, doações mensais recorrentes e doações elevadas feitas on-line e por celular, sem mencionar os efeitos globais da própria mídia social – ainda estão longe de ser claras. Mas estão acontecendo e, enquanto analisamos os pontos positivos e negativos, precisamos ser suficientemente ágeis para usar as ferramentas disponíveis a nosso favor.

Mudar de mentalidade de escassez para mentalidade de colaboração. Na campanha #GivingTuesday de 2017, a previsão era que haveria um número menor de doações devido à “fadiga do doador”. Tínhamos acabado de passar por um período com dois grandes picos de doações – depois dos furacões Harvey e Maria – e por um recorde de doações motivadas por políticas e ativismo. No entanto, em 2017, o GivingTuesday registrou um aumento de aproximadamente 80% nas doações em relação ao ano anterior. 

Durante vários anos, as entidades sociais competiram entre si pelo mesmo bolo de contribuições dos doadores. E se esse bolo, porém, for muito maior do que imaginávamos? Os doadores estão prontos e dispostos a doar, e potenciais doadores só estão esperando serem convidados para o banquete. Neste momento, em que um grande contingente de pessoas mais jovens, Millennials e Geração Z, se transforma na próxima geração de doadores, mudar de mentalidade é crucial. Quando trabalhamos juntos, e quando nossa história coletiva sobre o que estamos tentando alcançar faz sentido, podemos aproveitar mais e melhor as doações – talvez mais do que imaginamos ser possível.

Reinventar o líder de entidades sociais do século 21. Henry Timms, criador do #GivingTuesday, é coautor do best-seller O Novo Poder (Editora Intrínseca, 2018), uma reflexão profunda sobre novos líderes emergentes que souberam do crescimento do #GivingTuesday. Esses líderes, escreve Timms, serão capazes de aproveitar as paixões das comunidades de base e “estruturar uma participação” – ou seja, criar organizações, movimentos e iniciativas que possam ser moldadas por várias outras. Isso significa ser um líder que não só cria vários outros líderes, mas que cultiva e apoia redes inclusivas e geradoras de líderes. Se a rede de líderes do GivingTuesday servir de referência, aqueles com maior potencial do setor serão empáticos, empreendedores, colaborativos, transparentes, competitivos, fluentes em dados e dispostos a inovar e replicar o que já deu certo. Mesmo que sejam visionários e possam ser carismáticos, são humildes e com baixo ego.

Entender como os movimentos são importantes. #BlackLivesMatter, #NeverAgain e #MeToo marcaram o início de mudanças reais. O movimento #GivingTuesday gerou centenas de milhões de dólares em doações e uma colaboração filantrópica global. Está na hora de parar de discutir se as mídias sociais podem ter impactos materiais e começar a aproveitar e canalizar suas redes de comunicação e poder.

Precisamos entender também que esses movimentos e seus líderes não serão mais o que eram no passado. Suas vozes e habilidades são mais importantes que nunca – como deveriam ter sido antes – e quanto mais preparados estivermos para ouvi-los, melhor.

 

A AUTORA

Asha Curran é diretora de inovação na 92nd Street Y e diretora do Belfer Center for Innovation & Social Impact.

*Esse texto foi publicado na edição de outono de 2018 de Stanford Social Innovation Review. A autora hoje é CEO do GivingTuesday. 

 



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