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A Miragem do Investimento de Impacto Social

É hora de os financiadores serem realistas sobre o que os empreendedores sociais precisam para ter sucesso em seus investimentos de impacto.

Por Amanda Levinson e Natasha Freidus

(Foto por iStock/GarySandyWales)

Em 2021, nossa startup de impacto social atingiu um marco inalcançável para 96% das fundadoras do sexo feminino: atingimos US$ 1 milhão em receita. A sensação se parecia a de alcançar o cume de uma montanha que quase todo mundo dizia ser impossível de escalar.

Começamos a NeedsList com a ideia de criar uma “lista de presentes para ajuda” – uma solução de software para combinar necessidades a recursos em tempos de crise. Imaginamos que a empresa fosse mais do que apenas uma startup de tecnologia; nossa ambição era ajudar a reparar nosso sistema de ajuda humanitária, que, a cada nova crise, se mostra mais antiquado quanto à sua capacidade de fornecer recursos às comunidades.

Desde 2016, conseguimos não apenas levantar fundos para empreendimentos, mas também atingir essa meta de receita impensável e triplicar nosso impacto. Em junho de 2022, fechamos uma parceria com a Google.org para ampliar a escala do nosso modelo. Isso significa que finalmente, no ano passado, começamos a algo parecido com o auge do sucesso de uma startup, o momento em que atingimos estabilidade.

No entanto, não queremos comemorar. Sabemos que, para os empreendedores sociais que tentam resolver os desafios globais, há um sistema que funciona como uma rede de segurança. Por trás de cada conquista, existe um cenário de financiamento profundamente comprometido para a inovação social. Também sabemos que muitas dessas conquistas só foram possíveis porque somos brancas, temos passaporte americano e  bons contatos. Este artigo explorará nossa jornada muitas vezes desanimadora para aumentar o investimento por meio de investidores de impacto, parcerias corporativas, subsídios e concursos. Compartilharemos nossa experiência e a de nossos colegas para argumentar que esse ecossistema de financiamento precisa ser reimaginado para de fato apoiar os empreendedores sociais e abordar coletivamente os problemas globais que enfrentam.

 

A falsa dicotomia entre empresas com e sem fins lucrativos: onde começam os problemas

 

Decidimos desde o início estabelecer a NeedsList como uma empresa com fins lucrativos  voltada para um propósito. Nosso raciocínio era direto: não queríamos que organizações sem fins lucrativos que usam nosso software nos vissem como competidores no aspecto do financiamento. Também tínhamos um plano sólido para tornar a plataforma financeiramente sustentável, cobrando uma taxa das empresas que usavam o software. Tínhamos a convicção de que uma empresa com fins lucrativos era o caminho certo para expandir e alcançar impacto. Não estávamos sozinhos. Recentemente, conversamos com Aline Sara, fundadora da NaTakallam, que nos disse: “Abrimos uma empresa com fins lucrativos  porque queríamos garantir um modelo de negócios sustentável que dependesse menos de doações e, portanto, potencialmente, tivesse um impacto maior a longo prazo.”

Os investidores questionaram nossa decisão. Nos eventos de lançamento, apesar de nosso claro plano de negócios para gerar receita adicional, muitas vezes nos perguntavam por que não éramos uma organização sem fins lucrativos, como se ser uma empresa lucrativa que também resolvesse problemas globais fosse imoral.

Manal Kahi nos disse que teve uma experiência semelhante. Kahi é a CEO e fundadora da Eat Offbeat, uma empresa de alimentos voltada para refugiados que oferece refeições criadas e preparadas por refugiados. Eat Offbeat serviu mais de 250.000 refeições em Nova York desde a sua criação e ganhou vários prêmios por seu impacto. Mas, como Kahi relata, o investimento é fugidio. “Quando conversamos com investidores sobre um negócio socialmente consciente e impactante, eles imediatamente o colocaram naquele balde de ‘sem fins lucrativos’ e relutaram em investir… esse foi um dos maiores desafios que enfrentamos.”

Devido à ideia persistente de que apenas organizações sem fins lucrativos podem e devem resolver problemas sociais urgentes, muitos empreendedores sociais sentem que estão em apuros. Ou dependemos de doações e financiamento de doadores, ou devemos continuamente explicar para investidores e público por que nosso empreendedorismo é relevante para resolver algumas das questões mais prementes de nosso tempo.

 

A Miragem do Investimento

 

Um obstáculo ainda maior é a escassez de mecanismos de financiamento para empresas de impacto em estágio inicial. Os que existem tendem a ser inadequados ou aprisionam a empresa em um modelo capitalista de risco que exige rápida expansão e retornos a qualquer custo. O financiamento por subvenções é quase inexistente. E, apesar da fama em torno do investimento de impacto, existem poucos fundos para apoiar os empreendedores nos estágios iniciais de conceito ou “semente”. Em 2020, apenas 2% de todos os ativos passíveis de investimento foram para empresas de impacto. Adicione preconceito racial e de gênero à mistura – em 2021, apenas 2% de todo o financiamento de capital de risco foi para mulheres, enquanto as startups lideradas por fundadoras negras e latinas receberam menos de 1% — e você começa a ter uma ideia de como os jovens passaram fome.

Nossa história é um exemplo dessa luta. Apesar de obter receita desde o dia em que lançamos nossa plataforma beta, trabalhamos por quase 18 meses para garantir um investimento pré-seed de US$ 800 mil. Os mentores geralmente nos davam o mesmo conselho: ir atrás de investidores que estejam mirando gênero. Candidate-se a programas de aceleração. Participe de quantas competições puder. Então fizemos tudo isso. O problema que estamos tentando resolver abrange todos os grupos demográficos imagináveis, e apenas uma pequena fração de todos os investidores se volta para gênero, mas fomos atrás deles de qualquer maneira. Fomos aceitos em uma aceleradora de impacto de prestígio na Noruega. Ganhamos outra aceleração da Village Capital no Ben Franklin Technology Partners, na Filadélfia. Fizemos apresentações em vários eventos patrocinados por empresas.

No final de 2020, decidimos parar de participar de concursos e competições de lançamento. Apesar de serem uma das formas mais acessíveis de colocar sua empresa diante de potenciais investidores, esses eventos nos desiludiram. As corporações aderiram ao movimento do empreendedorismo de impacto social a todo vapor, muitas vezes patrocinando concursos desse tipo com promessas de prêmios em dinheiro e compromissos de defender mulheres ou empresas lideradas por minorias em sua publicidade. Mas as premissas pareciam estranhas. Apresentamos nosso trabalho em vários eventos patrocinados por grandes marcas que se beneficiam do marketing gratuito de “embaixadores” de impacto social. Esses eventos oferecem, na melhor das hipóteses, uma ninharia em prêmios, em comparação com o investimento que colocam na gestão de eventos, comunicação e em ocasiões que rendam boas fotos. E por que estávamos competindo com outros fundadores de negócios de impacto por pequenos prêmios em dinheiro ou pela vaga promessa de “orientação” e conexões? Sara, fundadora da NaTakallam, concorda que esses eventos são para financiadores, não para empreendedores sociais. “As competições podem ser caras para o empreendedor, com inscrições complicadas, julgamento politizado e prêmios em dinheiro relativamente pequenos, se comparados aos ganhos dos organizadores em marketing e relações públicas positivas. Não é raro que especialmente mulheres e minorias fundadoras de empresas se sintam usadas como uma ferramenta de marketing ou se perguntem se todo o tempo e esforço valeram a pena no final.”

Na pior das hipóteses, esses concursos podem acabar explorando empreendedores desesperados por visibilidade e financiamento. Veja o exemplo de um programa acelerador de impacto amplamente divulgado, o Laudato Si’, que incentivou startups dedicadas a resolver problemas relacionados à crise climática a competirem por uma oportunidade de ir ao Vaticano e receber um prêmio de 100 mil dólares. Depois de participar de um longo processo de inscrição, as startups vencedoras foram informadas de que, se quisessem o prêmio em dinheiro, precisariam fazer um crowdfunding para os prêmios.

As promessas corporativas de “parcerias” e de alavancar o poder de compra de empresas sociais também podem ser enganosas. Em 2020, a SAP anunciou o programa 5 & 5 by 25. A empresa prometeu que 5% de seus gastos seriam despendidos em empresas sociais e lideradas por fundadores sub-representados até 2025. Em outras palavras, o que a empresa está dizendo é que 95% de seus gastos com compras ainda virão de empresas tradicionais lideradas por homens brancos.

E quanto aos fundos do setor público ou doações de fundações? Embora a grande maioria deles ainda esteja restrita a organizações sem fins lucrativos ou de caridade, a boa notícia é que há uma abertura crescente nesses setores para financiar entidades com fins lucrativos que estejam trabalhando em soluções de impacto social. A NeedsList se beneficiou de subsídios do governo para testar e dimensionar nosso software em outros países, e esse financiamento se mostrou fundamental para nos permitir experimentar nosso modelo.

A desvantagem é que o financiamento público é extremamente lento, e tanto as candidaturas quanto os relatórios requisitados são longos e consomem enormes quantidades de tempo e recursos. Veja o nosso próprio caso: mesmo no início da pandemia, o NeedsList recebeu só no começo de 2021 um “financiamento de resposta rápida” para uma doação aprovada em junho de 2020. As startups não têm a mesma equipe interna que universidades, empresas maiores, ou ONGIs (Organizações Não-Governamentais Internacionais). Um financiador exigiu que enviássemos cópias de nossos cartões de embarque para provar que estaríamos presentes em um evento que eles organizaram e no qual seríamos palestrantes, e outro pediu capturas de tela de chamadas do Zoom, incluindo da lista de participantes, para provar que de fato realizamos reuniões. Esses e outros requisitos oneram a inovação e, às vezes, a sufocam mortalmente.

 

O que vem a seguir?

 

É hora de repensar o financiamento de impacto social. Na última década, a pandemia da Covid-19, os conflitos e as catástrofes climáticas expuseram falhas das instituições em todo o mundo. À medida que esses problemas aumentam, o investimento em soluções promissoras também deve aumentar. A manutenção de um panorama de investimentos míseros em inovação social só garantirá o fracasso.

Quando se trata de investimento social, investidores filantrópicos e de impacto precisam acelerar o ritmo e o tamanho de seus financiamentos. Uma forma direta de fazer isso é aprovar investimentos que ampliem a escala de soluções com base no cumprimento de marcos ainda no estágio inicial. Os financiadores também podem aumentar os investimentos em emergências para os beneficiários existentes com base na confiança e nas parcerias. Como sugere Katherine Clayton, da Omnivis, um caminho é partir da promessa da filantropia de risco de reduzir restrições e liberar recursos rapidamente. “Se o investimento dado a empresas voltadas para impacto fosse tão rápido quanto o destinado a empresas Web3, poderíamos criar mais impacto”, argumenta ela. “Velocidade é o que permite que você faça isso.”

Em segundo lugar, quanto ao montante investido, a verdade é que não só a velocidade mas também o valor dos cheques deve crescer para atender aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) estabelecidos pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Segundo a Sigma School, “muito capital ainda precisa ser direcionado a investimentos de impacto a fim de para atender à necessidade global… Ainda são precisos trilhões de dólares para enfrentar de forma eficaz os desafios sociais e ambientais mais prementes do mundo hoje”. Os programas de aceleração focados no impacto social são poucos e distantes entre si e, ao contrário dos aceleradores de tecnologia tradicionais, quase nenhum fornece qualquer investimento inicial padrão. Os aceleradores de impacto geram crescimento mais rápido e maior impacto para as empresas sociais, mas precisam ser acompanhados de dinheiro, não apenas de eventos de apresentação e orientação. Em vez de olhar para mudanças incrementais, como na iniciativa da SAP, que tal inverter a narrativa e desafiar as empresas a investir 95% de seus gastos em empresas pertencentes a mulheres e negros ou em empresas sociais?

É igualmente essencial que o setor público amplie fortemente o financiamento de impacto social e outras políticas de promoção de inovação. Alguns governos estão abrindo caminho em termos de prestação de contas e aquisições. O Canadá, por exemplo, começou a se comprometer a comprar de mulheres e empresas pertencentes a minorias. O Reino Unido introduziu o valor social como uma medida de investimento, e a Alemanha está começando a exigir de empresas que sejam responsáveis pela ética nas cadeias de suprimentos. Essas políticas abordam o lado da oferta do financiamento social, mas é igualmente crucial abordar a necessidade de mais investimentos em inovação social. Defendemos o financiamento de emergência, títulos de impacto social, programas de aceleração, perdão de empréstimos para inovação social e investimento público adicional no dimensionamento de soluções bem-sucedidas.

Também acreditamos que os setores filantrópico, privado e público precisam rejeitar o modelo do Vale do Silício, que prioriza expansão e retorno a qualquer custo e competição, em vez de colaboração. Para tal é preciso que a noção de interdependência prevaleça sobre o mito do empreendedor individual. A Coralus, anteriormente SheEO, é um exemplo de ponta no campo do apoio a mulheres e empreendedores não binários. Seu modelo foi projetado para transformar o próprio campo de atuação, ao promover fundos de recursos comunitários e o crowdsorcing para a tomada de decisões, com a finalidade de investir ativamente em empresas que apoiam os ODSs, sem a expectativa de retorno individual.

Precisamos investir em soluções multissetoriais e holísticas. Vamos reunir empreendedores com soluções promissoras, dar a eles alguns milhões de dólares e incentivá-los a trabalhar de forma colaborativa. Vamos abandonar os “concursos” de financiamento e estabelecer colaborações, com investidores financiando parcerias para resolver problemas urgentes. Vamos exigir que as pessoas diretamente afetadas pelo problema se envolvam no desenho da solução do início ao fim. Vamos compensar todos os “finalistas” pelo seu tempo e energia com dinheiro. E, enquanto ocupados fazendo tudo isso, os investidores de impacto devem procurar empresas em estágio inicial com finalidade lucrativa e de impacto, da mesma forma que os investidores de risco procuram startups com base no potencial de retorno financeiro.

A verdade é que muitos empreendedores sociais estão tentando resolver problemas profundamente arraigados, questões sistêmicas que podem não se encaixar no mundo dos aceleradores, capital de risco, escala, competição e grandes retornos. Tentar forçar seus empreendimentos a se encaixarem nesse paradigma acaba por gerar produtos que apenas resolvem problemas de forma marginal. Essa mentalidade e as competições que seguem o modelo “ao vencedor as batatas” criam soluções fragmentadas, em vez de holísticas, que abordam as causas principais.

Temos os recursos, os modelos e o talento para enfrentar esses desafios. Só falta a nossa vontade e a nossa imaginação.

AS AUTORAS

Amanda Levinson (@amanda_levinson) é cofundadora da NeedsList e está na lista das 100 Fundadoras Femininas de 2022 da Inc.

Natasha Freidus (@NFreidus) é cofundadora da NeedsList e está na lista das 100 Fundadoras Femininas de 2022 da Inc.

 



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