A inteligência artificial (IA) chegou à educação para ficar. O desafio, no entanto, é definir como integrá-la de forma consciente e com quais propósitos. O entusiasmo com o potencial transformador da IA é crescente, impulsionado principalmente pelos avanços recentes em modelos generativos. Ao mesmo tempo, há um entendimento cada vez mais sólido entre especialistas de que o debate sobre a IA na educação não deve ser apenas tecnológico: precisa ser também pedagógico, social e ético. Esse cuidado é ainda mais crucial em países marcados por profundas desigualdades, como o Brasil.
O debate não deveria partir da pergunta “O que a IA pode fazer na educação?”, mas sim “Quais são os desafios educacionais urgentes que a IA pode ajudar a enfrentar?”. Isso significa tratar a IA não como um fim em si mesma, mas como um meio para apoiar e potencializar a atuação de professores e gestores, fortalecer redes de ensino e, consequentemente, a aprendizagem dos estudantes. O foco deve ser resolver problemas reais respeitando os direitos dos estudantes, e não a busca de soluções genéricas ou imitações de outros contextos. Além disso, é indispensável refletir sobre o que se ensina: os avanços da IA fortalecem a necessidade de rediscutir o currículo escolar e suas prioridades.
Este artigo levanta algumas questões sobre como a inteligência artificial está sendo empregada na educação e quais impactos pode gerar, especialmente no contexto brasileiro. São abordadas questões críticas que precisam ser consideradas nesse processo, como a equidade no acesso à infraestrutura e aos benefícios da IA; os diferentes usos da tecnologia em sala de aula, na gestão escolar e na gestão das redes de ensino; o atual estágio de evidências sobre o que de fato funciona para impulsionar a aprendizagem; os riscos relacionados à proteção de dados e à privacidade. O texto também argumenta sobre a necessidade de se repensar o currículo escolar em um mundo cada vez mais permeado por sistemas de inteligência artificial e, por fim, advoga que essa nova tecnologia só pode fazer sentido se vier atrelada ao compromisso do poder público com uma educação mais inclusiva e de qualidade.
O Brasil precisa estar nesse debate, com protagonismo e senso de prioridade. É urgente construirmos caminhos para uma inovação educacional que seja, simultaneamente, tecnológica, humana e brasileira.
VOCÊ SABIA?
- Só 37,5% das escolas públicas urbanas brasileiras têm internet rápida para atividades pedagógicas
- 58,3% dos estudantes do ensino médio público acessam internet só pelo celular
- No Nordeste, apenas 24,6% das escolas urbanas têm internet de alta velocidade
- 45,2% das escolas públicas rurais não possuem nenhum tipo de acesso à internet
- 43% dos professores nunca receberam formação para usar tecnologia digital na educação
Fonte: Anuário Brasileiro da Educação Básica 2024 – Todos Pela Educação.
Usos atuais da IA na educação
A inteligência artificial já está presente na educação, embora de maneira desigual e incipiente. No Brasil e em outros países, redes de ensino, escolas e professores começam a explorar o potencial da IA para apoiar tanto o processo de ensino e aprendizagem como a gestão escolar e das redes de ensino.
Na sala de aula, uma das aplicações mais comentadas é o uso de plataformas com tutoria automatizada, que oferecem feedback personalizado e adaptativo para estudantes. Há também ferramentas que auxiliam professores na elaboração de atividades, diagnóstico de aprendizagem, planejamento de aulas e correção de avaliações. Modelos generativos de linguagem têm sido testados, por exemplo, para explicar conceitos, criar textos adaptados ao nível do aluno, gerar exemplos personalizados e promover acessibilidade.
Na gestão escolar, ferramentas de IA estão sendo utilizadas para otimizar a organização de horários, a distribuição de estudantes por turmas, a comunicação com responsáveis, a gestão de recursos e o acompanhamento de indicadores. Em redes mais estruturadas, esses usos vêm ganhando escala com sistemas que analisam dados administrativos e pedagógicos em tempo real para orientar a tomada de decisão por diretores e coordenadores.
No âmbito da gestão das redes de ensino, a IA pode ser usada para análises preditivas, identificação de estudantes em risco de abandono escolar, diagnósticos em larga escala, planejamento de políticas, alocação de recursos e desenho de intervenções personalizadas. Essas possibilidades têm atraído o interesse de governos, inclusive como caminho para aumentar a eficiência da gestão educacional e a efetividade de políticas públicas.

Apesar desses avanços, o cenário permanece fragmentado, com iniciativas isoladas, assimetrias de acesso, falta de regulação clara e ausência de diretrizes públicas sobre como – e para quê – a IA deve ser utilizada na educação. Paralelamente, cresce o interesse de startups, grandes empresas e investidores em ocupar esse espaço com soluções próprias. Há iniciativas inovadoras e promissoras, mas também outras ainda desconectadas do projeto pedagógico das escolas ou das prioridades das redes públicas.
O uso da IA na educação é, portanto, uma realidade em expansão. Mas segue sendo incerto, desigual e carente de direção estratégica, especialmente no Brasil. Reconhecer esse panorama é essencial para qualificar o debate e orientar os próximos passos. É a partir dele que podemos discutir o que realmente funciona, para quem, em quais condições e com quais finalidades.
O que funciona, afinal? A lacuna de evidências
Apesar do entusiasmo com o potencial da inteligência artificial na educação, ainda existe pouca evidência consistente sobre o que, de fato, funciona para melhorar a aprendizagem dos estudantes. Muitos projetos são lançados com promessas de transformação, mas nem sempre são acompanhados de avaliações rigorosas ou transparência sobre os resultados obtidos. O ritmo das inovações, nesse campo, costuma ser muito mais rápido que o das comprovações.
Trabalhos recentes de acadêmicos e organismos internacionais indicam que, embora existam experimentos promissores – como tutores de IA aplicados ao ensino de matemática ou de escrita –, seus efeitos variam muito de acordo com o contexto, o desenho pedagógico da intervenção, a formação dos professores e o alinhamento com os objetivos educacionais. Esses dados reforçam a constatação de que a tecnologia, por si só, não gera impacto: ela precisa estar inserida em uma estratégia educacional clara, contextualizada e bem implementada.
No Brasil, são raras as iniciativas que incorporam avaliações independentes desde o início, com medição sistemática dos efeitos sobre a aprendizagem. Além disso, grande parte das soluções ofertadas pelas empresas não passa por testes em larga escala nem por validação em contextos públicos.
Mais do que nunca, é fundamental investir em pesquisa aplicada. O desenvolvimento e uso de IA na educação precisa caminhar junto com uma cultura de monitoramento, avaliação e aprendizado. Só assim será possível diferenciar o que é inovação real daquilo que é apenas entusiasmo passageiro.
A falta de evidências robustas não deve paralisar a ação – mas precisa orientar a cautela e fortalecer o compromisso com o aprendizado institucional. Em um ramo tão recente, testar, medir, ouvir os usuários e fazer ajustes contínuos é parte crucial de um processo de inovação responsável.
IA para quem? A centralidade da equidade
A incorporação da inteligência artificial na educação não acontece num vácuo. No Brasil, ela se insere em um contexto profundamente desigual, em um sistema educacional que ainda falha em garantir o direito à aprendizagem para todos. Ignorar essa realidade pode significar aprofundar desigualdades já existentes.
Desde o início, a equidade deve ser um dos pilares fundamentais do desenvolvimento e uso da IA na educação. Algumas perguntas têm de ser feitas: Quem são os estudantes que mais precisam de apoio? Quem tem acesso aos recursos e condições necessárias para se beneficiar da IA? Como garantir que a tecnologia não reforce vieses, discriminações ou exclusões históricas?
As desigualdades de infraestrutura digital ainda são grandes no Brasil. Em muitas regiões, faltam conectividade adequada e equipamentos suficientes nas escolas. Mesmo em redes mais estruturadas, o uso efetivo da tecnologia enfrenta barreiras de formação docente, sobrecarga de trabalho e ausência de apoio continuado. Além disso, o uso extraclasse também é desigual: estudantes com mais recursos tendem a ter mais acesso a dispositivos e conectividade em casa.
A cautela com os próprios algoritmos é outro aspecto crítico a ser considerado. Ferramentas de IA são treinadas com bases de dados que muitas vezes refletem desigualdades sociais. Sem mecanismos de correção, isso pode levar a recomendações enviesadas, diagnósticos equivocados ou reforço de estereótipos.
Colocar a equidade no centro implica desenvolver e usar a IA com atenção especial aos estudantes que mais precisam, para que não sejam deixados para trás. Isso significa priorizar contextos de maior vulnerabilidade e assegurar infraestrutura, formação, apoio e governança adequados. Só assim a tecnologia poderá ser uma ponte – e não uma barreira – para o direito a uma educação de qualidade.
Governança, proteção de dados e o papel do Estado
O uso de inteligência artificial na educação também traz consigo importantes implicações éticas, legais e institucionais. A coleta massiva de dados, a opacidade de muitos algoritmos e os riscos associados à privacidade e à segurança da informação impõem desafios significativos. Não basta adotar tecnologias inovadoras: é preciso fazê-lo com responsabilidade, transparência e proteção aos direitos de estudantes, professores e comunidades escolares.
A maioria das ferramentas de IA depende da coleta e análise de grandes volumes de dados – muitas vezes sensíveis. Isso inclui informações sobre desempenho acadêmico, comportamento online, perfil socioeconômico e até aspectos emocionais. Em um cenário de crescente digitalização, o risco de usos indevidos, vazamentos ou discriminações algorítmicas aumenta substancialmente.
Por isso, a governança da IA na educação precisa ser orientada por princípios claros: transparência sobre o funcionamento dos sistemas, prestação de contas por parte das empresas e governos, proteção rigorosa de dados e mecanismos efetivos de supervisão. Isso inclui a definição de marcos legais e regulatórios específicos para o uso de IA no setor educacional, algo ainda incipiente no Brasil.
O Estado tem papel central nesse processo. Cabe ao poder público estabelecer diretrizes, regular o uso da tecnologia, promover a segurança jurídica e garantir que os interesses educacionais e os direitos das crianças, jovens e profissionais da educação estejam acima dos interesses puramente comerciais.
A construção de uma governança responsável da IA na educação é, portanto, um desafio urgente. Exige capacidade regulatória, articulação institucional e compromisso com os direitos fundamentais. Mais do que acompanhar a inovação, trata-se de moldá-la de acordo com os valores de uma educação pública, equitativa e de qualidade.
IA como meio, não como fim
A inteligência artificial tem gerado enorme expectativa no campo educacional, mas é preciso cuidado para que o fascínio pela tecnologia não desvie o foco dos objetivos centrais da política educacional. A IA deve ser vista como um instrumento – poderoso, mas ainda assim um instrumento – para resolver problemas concretos e apoiar a aprendizagem dos estudantes. Quando se transforma em fim em si mesma, corre-se o risco de priorizar a adoção da ferramenta em detrimento da efetiva melhoria dos resultados educacionais.
A história da educação é marcada por ciclos de entusiasmo com novas tecnologias que, muitas vezes, não resultaram em transformações estruturais. A chegada da IA deve evitar repetir esse padrão. É necessário perguntar: Qual problema educacional específico essa tecnologia ajuda a enfrentar? Quais são os ganhos reais de aprendizagem, equidade ou eficiência que ela pode gerar? Como garantir que o uso da IA esteja alinhado ao projeto pedagógico e às metas da política educacional?
Esse olhar pragmático é ainda mais importante em contextos de escassez de recursos, como o brasileiro. O investimento em tecnologia deve ser precedido de uma análise de custo-benefício, de impacto potencial e de viabilidade de implementação em escala. Também deve ser acompanhado de medidas que garantam formação, infraestrutura, apoio técnico e avaliação constante.
A IA pode ser valiosa para personalizar trajetórias de aprendizagem, apoiar o trabalho docente, qualificar a gestão escolar e fortalecer a tomada de decisão nas redes. mas isso demanda um projeto educacional claro. A bússola deve ser pedagógica e não tecnológica
A IA pode ser valiosa para personalizar trajetórias de aprendizagem, apoiar o trabalho docente, qualificar a gestão escolar e fortalecer a tomada de decisão nas redes de ensino. Mas isso só se concretiza se ela estiver a serviço de um projeto educacional claro, centrado no desenvolvimento integral dos estudantes. A bússola deve ser sempre pedagógica – e não tecnológica.
Evitar a visão de que a tecnologia sozinha resolve tudo e adotar uma abordagem centrada nas pessoas são procedimentos essenciais para que a IA contribua de fato para o direito à educação de qualidade. A inovação precisa estar a serviço da aprendizagem – e não o contrário. Se bem planejada, regulada e implementada, a inteligência artificial tem o potencial de ser uma grande aliada na transformação positiva da educação brasileira – mais equitativa, mais eficiente e mais centrada no desenvolvimento dos estudantes.
O currículo em um mundo com IA
Se a inteligência artificial muda as formas de produzir, acessar e aplicar conhecimento, então ela também nos obriga a repensar o currículo escolar. O que os estudantes precisam aprender para viver, trabalhar, conviver e transformar o mundo em um contexto permeado por IA? Quais capacidades humanas ganham ainda mais centralidade diante de tecnologias que automatizam tarefas cognitivas complexas?
Essa discussão envolve dois movimentos complementares. O primeiro é garantir que todos os estudantes aprendam sobre IA – seus fundamentos, usos, riscos, limitações e implicações éticas. Em um mundo em que decisões são cada vez mais mediadas por algoritmos, compreender como esses sistemas funcionam é parte primordial da formação.
O segundo movimento é ainda mais estrutural: revisar o currículo à luz das transformações que a IA impõe à sociedade. Ainda faz sentido uma escola excessivamente centrada na memorização de conteúdos, quando o acesso à informação é instantâneo e a geração de texto automatizada? Ao mesmo tempo, como garantir o desenvolvimento da capacidade de leitura, de escrita, de pensamento matemático e científico – habilidades que continuam sendo fundamentais, inclusive para interagir criticamente com a IA? É urgente discutir como o próprio ensino das disciplinas tradicionais precisa ser repensado em um mundo com IA acessível. A inteligência artificial reconfigura a disponibilidade e o uso da informação – e isso impõe uma revisão sobre o que e como ensinar. Não há respostas prontas, mas essa é uma discussão inadiável.
No livro Educação para a era da inteligência artificial, o pesquisador francês Charles Fadel e demais autores defendem o desenvolvimento de competências que ganham ainda mais relevância num mundo com IA: pensamento crítico, criatividade, empatia, colaboração, capacidade de resolver problemas complexos. São atributos profundamente humanos, que nenhuma máquina é capaz de replicar plenamente – e que se tornam ainda mais valiosos quando convivem com sistemas inteligentes. Essas competências estão alinhadas com as dez competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelecem como horizonte o desenvolvimento integral dos estudantes.
A IA nos convida, portanto, a uma renovação do currículo que vá além da inserção de uma nova disciplina. É uma oportunidade de reconstruir o projeto pedagógico da escola a partir de uma pergunta essencial: Que tipo de ser humano queremos formar num mundo com inteligência artificial?
Por um compromisso com a aprendizagem
A inteligência artificial pode vir a ser uma aliada poderosa da educação. Mas, para isso, é preciso mais do que interesse por inovações tecnológicas: é necessário um compromisso claro com a aprendizagem, a equidade e os direitos dos estudantes. A IA deve estar a serviço de um projeto pedagógico que tenha esses valores como centralidades.
Para que isso aconteça, o debate sobre IA na educação precisa ser ampliado e qualificado. Portanto, é fundamental envolver educadores, pesquisadores, gestores, estudantes e famílias na construção de caminhos que façam sentido para os desafios do Brasil. O país pode – e deve – participar ativamente da construção de respostas próprias para as oportunidades e riscos trazidos pela IA.
A agenda pública sobre o tema precisa avançar com urgência. Cabe ao poder público liderar esse processo, assumindo alguns compromissos: estabelecer diretrizes, fomentar pesquisas, regular o setor, garantir proteção de dados e criar condições para que redes e escolas possam fazer escolhas informadas. Também é papel do Estado induzir o desenvolvimento de soluções tecnológicas alinhadas às necessidades da educação pública – mas sem travar a iniciativa privada e o terceiro setor, que podem e devem ser aliados estratégicos na promoção de inovações educacionais. O equilíbrio entre regulação e estímulo à inovação é essencial para um ecossistema dinâmico, plural e comprometido com o interesse público.
Mais do que nunca, é hora de colocar a educação no centro da transformação digital – e a transformação digital no rumo de uma educação mais justa, inclusiva e de qualidade. A inteligência artificial pode contribuir decisivamente para isso. Mas só se for guiada pela inteligência humana: aquela que sabe que educar é, antes de tudo, um ato de compromisso com o futuro coletivo.
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