Imprimir artigo

Ser dono do impacto

No Brasil, a dificuldade para acessar recursos no Brasil e para que beneficiários definam seu uso é real, por isso a Redes da Maré está pondo em prática um pioneiro fundo comunitário; veja outras respostas neste debate aqui 

Por Eliana Sousa Silva e Gisele Ribeiro Martins

Ilustração de Adams Carvalho

O caminho da filantropia no Brasil ainda é pouco claro quanto aos seus objetivos e alcance. Há enormes desafios para que determinados setores da sociedade civil a acessem, tornando sua viabilidade prática algo, muitas vezes, inalcançável. De forma geral, temos grande potencial para desenvolver uma cultura de doação, como mostrou o período da pandemia, mas isso não se configurou como algo consistente e perene após o período de disseminação mundial do coronavírus. 

A Redes da Maré, instituição de base comunitária, fundada na sua maioria por pessoas com origem em alguma das 15 favelas da Maré, no Rio de Janeiro, é um exemplo genuíno da facilitação do acesso a recursos na pandemia. Grandes filantropos, historicamente inatingíveis, se dispuseram a doar diretamente a organizações com atuações territoriais que, até então, não haviam acessado um volume significativo de recursos para seus projetos. 

Essa mudança por parte dos doadores foi determinante para mitigar os efeitos do coronavírus, especialmente junto às populações empobrecidas. Muitas ações se espalharam, com resultados concretos. A Redes da Maré foi uma delas, chegando a contribuir com mais de 20 mil famílias, em muitas frentes de trabalho, relacionadas a segurança alimentar, prevenção em saúde, geração de renda, comunicação, entre outras.

Com longa atuação na região das favelas da Maré, que reúne 140 mil pessoas – maior que 96,4% das 5.565 cidades brasileiras –, a Redes da Maré tem buscado, na sua trajetória institucional voltada para o desenvolvimento territorial, constituir um projeto que, de fato, contribua para a efetivação de direitos e materialização de uma melhor qualidade de vida dos moradores. 

Os desafios são enormes quando pensamos nas muitas violações de direitos que ocorrem no bairro Maré, em função da existência de redes ilícitas e criminosas e, ainda, pela negligência histórica por parte dos governos em relação à garantia de políticas públicas. 

Nesse contexto, a Redes da Maré, como outras instituições da sociedade civil, tem exercido papel fundamental no que concerne à produção de conhecimento, à mobilização e à articulação comunitária, à formulação de projetos e, também, na incidência junto aos governos. Mas há um longo caminho a ser percorrido quando pensamos, de forma estrutural, sobre os obstáculos que precisamos transpor; o próprio Estado é um dos maiores violadores de muitos dos direitos que os habitantes da Maré precisam acessar. 

Uma reflexão crítica sobre nossa atuação histórica como moradores de favelas e ativistas nos mostrou o quanto precisamos mudar em termos de estratégia e de modo de fazer a mudança. Incessantemente lutamos e inventamos caminhos para que aconteçam transformações no âmbito da garantia de direitos tão básicos quanto o próprio direito de existir.  

Nessa perspectiva, nosso trabalho, inicialmente pautado na realização de projetos, muitas vezes pulverizados em ações, por mais relevância que tenha, precisa atingir dimensão estrutural. Temos de pensar, de forma urgente, estratégias de trabalho que estejam politicamente calcadas no enfrentamento das desigualdades sociais e territoriais. 

É preciso enfrentar a inércia dos governos e cobrar sua responsabilidade constitucional de efetivar políticas públicas com igualdade de oportunidades para o conjunto da população. Do contrário, podemos desenvolver projetos lindos e significativos para as populações de favelas sem jamais ver a verdadeira transformação social.

Esse olhar crítico sobre nosso próprio trabalho tem nos levado a tentar entender o porquê de tanto desperdício de recursos – não só no âmbito dos governos, mas também no setor da filantropia. 

Às vezes, nos indignamos ao constatar que muitos projetos da sociedade civil, desenvolvidos de forma genuína e com intenções claras de mudanças, n‹o conseguem influenciar aqueles que decidem o direcionamento de recursos. São camadas invisíveis que fazem com que grupos que detêm os recursos os ricos, no caso da filantropia brasileira – se coloquem num lugar de poder, inspirados, na sua maioria, no modelo predominante dos Estados Unidos. 

Estes acreditam saber onde suas doações devem ser usadas. O fato de disporem dos recursos lhes dá o poder e a justificativa para decidir – na maioria dos casos, sem coerência com o contexto – a melhor forma de aplicá-los. Diálogo com o beneficiário direto é algo que não faz parte da prática dos doadores no Brasil. 

Com esse olhar, definimos que a sustentabilidade de nosso trabalho nas favelas da Maré passava pela constituição de um fundo patrimonial. Sempre nos chamou atenção o fato de determinadas instituições terem um capital aplicado, cujos rendimentos lhes permite definir prioridades e fazer escolhas de atuação. Constatamos, também, que essas organizações foram criadas, historicamente, por pessoas que detém fortunas, movidas pelo desejo central de deixar um legado – sendo este, certas vezes, direcionado para um interesse individual e/ou familiar, ligado a alguma causa ou território. 

O Fundo Comunitário da Maré nasceu da nossa aspiração de sustentar um trabalho que tem raízes profundas no enfrentamento das desigualdades territoriais e sociais. Não dispomos de uma fortuna a partir da qual escolher como tornar nossa atuação mais estratégica. Ao contrário, buscamos os meios para a manutenção cotidiana de projetos e ações que possam nos levar às transformações requeridas nas favelas da Maré.

A viabilidade desse plano vem sendo pensada desde 2018, quando nos debruamos um pouco sobre a gênese dos fundos patrimoniais e seus sentidos mundo afora. Logo no início percebemos que não seria fácil criar tal mecanismo no maior conjunto de favelas do Rio. Ao mesmo tempo, ficou evidente a necessidade da inovação e adequação ao contexto. Nossa riqueza e legado eram o nosso trabalho duradouro, como moradores de favelas e ativistas, pela efetivação de nossos direitos mais básicos. 

Compreendemos que o movimento de criação do fundo teria de ser orgânico. Nossa capacidade de sistematizar a relevância, a idoneidade e os impactos gerados até agora permitiriam sua constituição. Precisávamos sair à busca de possíveis doadores que, conhecendo o trabalho, passassem a desejar ser parte dele. 

O Fundo Comunitário da Maré foi formalizado em 2022 e tem quatro objetivos básicos: 

1) dar sustentabilidade concreta ao trabalho de desenvolvimento territorial construído pela Redes da Maré, ao longo do tempo; 

2) investir de forma sistemática em indivíduos, lideranças, coletivos e instituições que tenham como prioridade de atuação um olhar territorial para o conjunto de favelas da Maré e comunguem de valores e práticas para o cumprimento de uma agenda de desenvolvimento sustentável e participativa na região; 

3) fomentar a qualificação técnica e política dos diferentes agentes da sociedade civil local, de modo a garantir práticas republicanas e democráticas no acesso e uso dos recursos do fundo;

4) ousar na materialização de uma agenda de transformações urgentes na região das 15 favelas da Maré. 

O fundo está estruturado a partir de uma governança que passou pela constituição dos conselhos de investimento e de projetos. Foi feita uma projeção inicial dos recursos necessários para formar o patrimônio, além de um escalonamento para a captação do valor básico a ser adquirido para permitir o início das atividades a partir dos rendimentos do fundo.

Uma vez estabelecidos os objetivos e metas de captação, conseguimos atingir o primeiro patamar para constituir o fundo. Nove doadores se mostraram sensíveis e abertos a conhecer o trabalho da Redes da Maré e à relevância de um fundo patrimonial que permitisse o acesso e a gestão de recursos de forma autônoma, a partir de uma instituição de base comunitária, como é o nosso caso. 

A experiência tem nos mostrado a necessidade de repensar o sentido, o alcance e o futuro da filantropia no país e fora dele. De fato, a reflexão sobre quem decide o destino e o uso dos recursos precisa ser deslocada. 

Enquanto houver uma concentração de poder e decisão nas mãos de quem detêm os recursos materiais e humanos, será difícil considerar a dimensão dos impactos estruturantes que a filantropia poderia ter no enfrentamento das desigualdades. Trabalhar para reconhecer o papel que a filantropia pode ter nesse quadro e colocar em prática o compartilhamento dos recursos à o primeiro passo para buscarmos a possibilidade de equidade social no país.

Essencialmente, o que precisa ser compreendido é que cabe às pessoas e grupos socialmente vulnerabilizados decidir as estratégias para usar os bens que precisam acessar com urgência. Em muitos casos, elas dizem respeito a direitos negados pelo racismo estrutural, situação que não temos mais como aceitar. 

AS AUTORAS

Eliana Sousa Silva é diretora fundadora da Redes da Maré.

Gisele Ribeiro Martins é coordenadora do setor de captação de recursos e relacionamento institucional da organização.



Newsletter

Newsletter

Pular para o conteúdo