“Erre rápido e siga em frente”

Tasso Azevedo conta a história do MapBiomas: de ferramenta criada para aprimorar medição de emissões de gases de efeito estufa no Brasil a rede que monitora uso da terra em 14 países, guiada pela colaboração e pelo compartilhamento aberto de dados
Image: MapBiomas / Bruna Stabuli Arantes

É impossível falar sobre sustentabilidade florestal e combate ao desmatamento no Brasil sem citar Tasso Azevedo. O engenheiro florestal idealizou, cofundou ou participou de várias iniciativas desenvolvidas com esses fins nos últimos 30 anos, entre elas o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), o Fundo Amazônia e o Serviço Florestal Brasileiro. Em 2015, impulsionou a criação do MapBiomas, e desde então coordena essa rede que reúne mais de 70 instituições para monitorar o uso da terra – entre organizações da sociedade civil, universidades e empresas – e já está presente em 14 países. 

O trabalho coletivo do MapBiomas tem sido reconhecido internacionalmente. Em 2022, a rede recebeu o Prêmio Skoll de Inovação Social, concedido pela Fundação Skoll para iniciativas com impacto significativo na busca de soluções para os principais problemas globais, que incluiu uma doação de US$ 2,2 milhões para o projeto. Em 2023, ganhou o prêmio de Inovação Social Coletiva da Fundação Schwab para o Empreendedorismo Social, na primeira vez em que essa categoria foi incluída na premiação com o propósito de destacar modelos inovadores de colaboração e impacto coletivo.

O MapBiomas é um dos exemplos citados no artigo de capa da 13ª edição, “O futuro da inovação é coletivo”. Em conversa com a SSIR Brasil, Azevedo contou como o MapBiomas foi criado e como o trabalho coletivo acontece na prática. Também compartilhou recomendações para quem quer adotar o modelo de rede para promover transformações sociais positivas. 

As falas de Azevedo foram editadas para fins de concisão e clareza.

A criação do MapBiomas

Tasso Azevedo: O MapBiomas nasceu em 2015, a partir de um contexto que vinha de outra iniciativa que criei entre 2011 e 2012: o Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa no Brasil (SEEG). Esse sistema foi pensado para estimar as emissões de todos os setores da economia, como energia, transporte e agricultura.

Tasso Azevedo. Foto: Cortesia MapBiomas

O Brasil está entre os maiores emissores de gases de efeito estufa do mundo, principalmente devido às emissões por uso da terra, que representam cerca de 75% do total – somando os setores de agricultura e mudança de uso da terra. Como esse não costuma ser o principal fator das emissões nos países de alta renda e mesmo em países como China e Índia, o cálculo das emissões por mudanças de uso da terra era feito, na maioria das vezes, a partir de um proxy [dado intermediário usado para representar um dado indisponível]. No nosso caso, usávamos o desmatamento. A lógica era: “O desmatamento é responsável por quase 90% das emissões de uso da terra; se tivermos esse dado, conseguimos estimar praticamente tudo”. 

Isso funcionava quando o desmatamento era muito alto, especialmente na Amazônia. O problema é que, naquele período, o desmatamento havia caído bastante – 2012 teve o menor índice já registrado. Queríamos aplicar de forma mais precisa a metodologia do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) e do inventário brasileiro de emissões, mas para isso seriam necessários mapas anuais de cobertura e uso da terra no país. Até então, não havia, em nenhum lugar do mundo, dados de cobertura da terra com periodicidade anual. 

Foi então que pensamos: “Será que não dá para criar esses mapas?”. Fizemos uma reunião em São Paulo, na Fundação Getulio Vargas (FGV), com especialistas em sensoriamento remoto, para avaliar se seria possível produzir mapas anuais e retroativos até pelo menos 1990.

Muitas coincidências ajudaram a viabilizar o projeto. Logo após a reunião na FGV, participei do fórum mundial de empreendedorismo social promovido pela Fundação Skoll em Oxford, na Inglaterra, em abril de 2015. No último dia do evento, estive em uma mesa com Rebecca Moore, responsável pelos projetos de mapas da Google. Conversamos e dali nasceu a possibilidade de parceria. Sem a capacidade computacional e o acesso a imagens que a Google podia oferecer, seria quase impossível realizar o projeto.

Como o MapBiomas funciona

TA: O que fazemos é diferente do método tradicional de elaboração de mapas, em que se cria o mapa de um ano e, no seguinte, apenas se atualiza o que mudou. Esse processo manual, à época, era caro, lento e não permitia voltar no tempo para criar séries históricas.

Nossa inovação foi mudar o foco: em vez de identificar objetos inteiros nas imagens, analisamos cada pixel individualmente, verificando se pertence ou não a determinada classe. Classificamos todos os pixels ao longo da série histórica e, depois, sobrepomos os mapas para criar um único resultado integrado na forma de uma coleção de mapas anuais detalhados da cobertura e do uso do solo no Brasil.

Isso permite que os melhores especialistas de cada área trabalhem com foco no seu tema, como pastagem, agricultura, floresta, mangue e área urbana. Juntamos o melhor mapa de cada tema e geramos o mapa do país inteiro.

Esse modelo só é viável em rede. No MapBiomas, especialistas mapeiam biomas ou temas que conhecem profundamente, usando a mesma tecnologia desenvolvida coletivamente, mas adaptada à sua expertise.

Desde 2015, processamos tudo na nuvem. Cada um trabalha a partir de sua organização, de forma remota, mas integrada pela plataforma. As camadas são independentes, mas na etapa de integração decidimos como combiná-las.

Temos três tipos principais de especialistas: em sensoriamento remoto, que trabalham com as imagens de satélite; em ciência da computação, que trabalham com os algoritmos e toda a parte computacional; e em biomas e temas. Eles atuam de forma integrada. Muitas vezes, quem mapeia um bioma também colabora no mapeamento de fogo, água ou solos. A principal característica da rede é a confiança: cada um sabe que sua parte vai se encaixar na dos outros, pois todos usam a mesma plataforma, compartilham códigos e avançam juntos.

O espírito é compartilhar enquanto se constrói, para que todos possam absorver e utilizar. Nosso objetivo não é só que o trabalho individual funcione, mas que o coletivo avance. Isso gera um senso de responsabilidade – “eu tenho que fazer a minha parte para que o grupo avance” – e de cooperação – é interesse de todos que todo mundo trabalhe bem, porque se um não avança, não há produto.

O MapBiomas se financia basicamente com recursos da filantropia. Usuários dos dados também podem contribuir com doações. Mas essas são totalmente voluntárias, sem nenhuma relação com o uso do dado, pois tudo que fazemos está disponível gratuitamente, inclusive para uso comercial. Isso inclui não só os dados, mas também a metodologia e os códigos usados na confecção e na publicação dos dados.

Como manter a coesão no trabalho em rede

TA: As pessoas costumam chegar ao MapBiomas porque estão interessadas no tema ou na tecnologia. Começam colaborando e, depois, assumem responsabilidades específicas. Formalizamos essa entrada por meio de uma carta de compromisso, na qual a organização descreve sua expertise e como vai contribuir.

Com o tempo, criamos o “DNA do MapBiomas”: um documento que define o que somos. Alguns pontos essenciais: somos uma rede colaborativa, sem organização central; tudo que produzimos é compartilhado de forma aberta e gratuita; temos independência total para publicar dados; somos imparciais e não emitimos opiniões. Nossos relatórios são estatísticos, sem recomendações ou adjetivos. As análises ficam a cargo das organizações que coordenam temas específicos, mas não em nome do MapBiomas.

Também compartilhamos tudo: os códigos estão no GitHub, plataforma de desenvolvimento colaborativo de softwares, e podem ser usados inclusive comercialmente. Qualquer um pode replicar nossa infraestrutura.

Com a criação de iniciativas em outros países, nos tornamos uma rede de redes. Cada país tem sua própria rede e dois representantes na rede global, que se reúne mensalmente.

Para lidar com a diversidade cultural e estrutural nos vários países, criamos o Guia de Boas Práticas. Ele traz orientações sobre como construir a rede, gerenciar infraestrutura, desenvolver legendas, definir mapeamentos e usar classificadores. É um guia vivo, sempre atualizado online.

Temos também treinamentos e capacitações, coordenados por uma secretaria sediada no Brasil. Diversas missões são realizadas para treinar equipes em outros países. A ideia é que cada país desenvolva a capacidade de produzir seus próprios mapas, relevantes e atualizados.

Nosso modelo segue etapas claras: formar a rede, aprender fazendo (e leva cerca de um ano até o primeiro conjunto de dados ficar pronto), publicar os dados, promover o uso (treinando usuários para usar a plataforma), avaliar o impacto (entender como os dados estão sendo usados pelos usuários) e, por fim, multiplicar a experiência para outros países.

Desafios da internacionalização

TA: Normalmente, quando se faz um projeto que envolve ciência e produção de dados, a tendência é padronizar as coisas para que tudo tenha um determinado formato e jeito de fazer, e então se reproduz isso em todos os lugares.

No MapBiomas, fazemos diferente: adaptamos o trabalho ao contexto de cada país. Isso traz desafios. Temos que preparar rapidamente um grupo grande de organizações que está aprendendo a fazer e adaptando as ferramentas à sua realidade local e, ao mesmo tempo, produzindo dados com elas.

Às vezes, encontramos grupos à espera de que alguém dê uma ordem e diga “é para ir por aqui”. Mas não fazemos assim: construímos juntos, de forma que cada um possa ter um sistema de mapeamento adaptado à sua realidade local.

Quando o MapBiomas era apenas brasileiro, o objetivo era gerar mapas de qualidade. Hoje, o objetivo da rede global é garantir que todos os países tropicais tenham essa capacidade internamente.

Recomendações para o trabalho em rede

TA: Para o trabalho coletivo, é importante gerar relações de confiança claras. Cada um, ao fazer a sua parte, deve poder confiar que os outros estarão fazendo as suas respectivas partes ou se esforçando ao máximo para isso.

Outro aspecto é entender que é muito diferente aquilo que somos como coletivo e aquilo que somos como instituição. Ter claro qual é o propósito do coletivo, independentemente dos propósitos específicos de cada organização, é chave para que o coletivo opere bem no dia a dia.

Também é fundamental trabalhar de forma aberta e transparente, para que possamos melhorar pelo olhar e pelas ideias dos outros. 

Outro ponto importante é não burocratizar: não criar estruturas, governança, conselhos e formalidades excessivas que desacelerem o coletivo e o façam perder o timing de fazer as coisas acontecerem. O foco deve estar no que se quer fazer, e depois se constrói a governança conforme o trabalho avança.

Outro aspecto é evitar organizações centrais em uma rede coletiva. Quando se cria uma organização central para operar pela rede, há o risco de, em vez de fortalecer, enfraquecê-la, pois à medida que essa organização cresce, diminui o interesse das demais em participar. Além disso, a organização central pode acabar competindo por recursos e tempo com as próprias organizações da rede. Então, se houver uma secretaria ou organização central, que seja exclusivamente de suporte à iniciativa, com o menor número possível de pessoas, para não ocupar o lugar da rede.

Errar depressa e seguir adiante

TA: Não me lembro de uma frustração ou erro específico na trajetória do MapBiomas. Todos os dias erramos e fazemos coisas que poderiam ser feitas de outra forma, mas não há nada que se destaque.

É um projeto coletivo, com muita gente, e errar ou tentar e não conseguir é parte do nosso dia a dia. Nosso lema é: “erre rápido e siga em frente”. Se é para errar, que seja de uma vez, entendendo o que aconteceu e avançando. 

Leia também: O futuro da inovação é coletivo

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