“Virada crítica” na filantropia: tendências e desafios a partir do 13º Congresso Gife
Evento debateu a desconcentração de poder, conhecimento e riquezas, um desafio complexo da filantropia
Por Patrícia Kunrath e Sara Costa
Uma das mesas de debate do 13º Congresso Gife. Foto: Divulgação Gife
A desigualdade social e as injustiças socioambientais vêm impactando populações ao redor do mundo, de forma sem precedentes. No Brasil não é diferente: um dos países mais desiguais também sofre com estas questões, que atingem com maior intensidade as comunidades mais vulneráveis nos territórios e ameaçam formas de vida e grupos étnicos inteiros.
A concentração de poder, conhecimento e riquezas é um desafio complexo, que a filantropia institucionalizada se propõe a endereçar migrando de práticas mais tradicionais – feitas de formas mais verticais, com a imposição da lógica dos financiadores – para uma ação dedicada a efetivamente mexer em estruturas que sustentam estas desigualdades.
Alguns pesquisadores, a exemplo da antropóloga inglesa Jessica Sklair, vêm chamando esse avanço de “virada crítica” na filantropia. Tal mudança pode se concretizar em práticas de maior justiça social ou servir como apropriação da crítica feita por atores que se beneficiam das desigualdades para manter o status quo. O tempo e a ação irão dizer qual caminho foi tomado.
A tarefa não é simples e a filantropia não tem a pretensão de esgotar respostas. No entanto, pode se apresentar como um meio importante na redistribuição de recursos para os territórios e grupos mais afetados.
O setor filantrópico ainda se encontra bastante concentrado em termos de regionalidade, temas de atuação, estratégia de investimento e perfil de conselhos. Temos 63% das 137 organizações respondentes do Censo Gife 2022-2023 com sede em São Paulo, e 71% atuando em educação. Esta área concentra cerca de 41% dos R$ 4,8 bilhões totais mobilizados em investimento social privado (ISP) em 2022.
Além disso, 55% das organizações são mais executoras de projetos próprios, 92% dos conselheiros são pessoas brancas e 66% são homens. Ainda assim, os ponteiros vêm se mexendo progressivamente, com tendência de aumento de recursos repassados para terceiros, especialmente para organizações da sociedade civil (OSCs). Observa-se, ainda, gradual crescimento de organizações mais financiadoras e maior atenção das lideranças a questões de pluralidade nos espaços de conselhos e tomadas de decisão.
O Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), por meio da articulação de redes e da qualificação do campo e de suas práticas, vem ajudando a pautar estes caminhos para um fazer filantrópico mais transformador e plural. Foi nesse tom que a organização recebeu cerca de 1,2 mil pessoas no 13º Congresso Gife, realizado entre os dias 7 e 9 deste mês de maio, em Fortaleza.
Abigail Disney em plenária do 13º Congresso Gife. Foto: Divulgação Gife
A plenária de abertura do encontro, com a presença da filantropa estadunidense Abigail Disney, focou em temas que desafiam o universo das elites financeiras e do ISP: o protagonismo das mulheres na economia do cuidado e seus papéis como futuras herdeiras de somas que deverão ultrapassar U$ 100 trilhões até 2048, segundo relatório publicado pelo Bank of America Institute no último mês de março.
Disney também abordou a necessidade de taxação de grandes fortunas e do reconhecimento de que a filantropia corporativa muitas vezes tenta apenas abordar externalidades negativas de seus negócios.
A prática de grantmaking (repasse sistemático de recursos para terceiros) foi um dos eixos do 13º Congresso Gife, que contou com 185 palestrantes e 34 atividades. O encontro também tratou de temas como desenvolvimento institucional de OSCs, bioeconomia, meio ambiente, equidades racial e de gênero, filantropia feminista, conhecimento de povos tradicionais, educação, infância, inteligência artificial e big techs, entre outros.
Durante os três dias, o público foi também convidado a responder a uma pesquisa que ilustra tendências para o setor. Os questionamentos abrangeram temas emergentes, motivações de doações e percepções sobre o Congresso.
Em termos de estratégia adotada pelas organizações respondentes à pesquisa, quase metade (48%) relata distribuir os recursos em diferentes causas, mas dentro de um mesmo tema, o que revela aderência a uma agenda específica. Em consonância, aproximadamente um em cada três respondentes relataram que o alinhamento aos valores pessoais ou da empresa/instituto é o principal fator para a escolha do destino das doações.
Além disso, tanto para doadores (93%) quanto para captadores (94%), a crença na importância da causa é vista como a principal motivação para a doação regular. Ou seja, a filantropia atua orientada para os projetos e negócios que conversam com temas prioritários.
No geral, os respondentes mencionaram que o desenvolvimento institucional e o campo da educação são os temas que devem ser prioridade para o ISP. Comparando os perfis de organizações captadoras e doadoras, nota-se que enquanto as primeiras mencionam prioritariamente o desenvolvimento institucional, as últimas priorizam a educação – cenário alinhado aos dados da série histórica do Censo Gife.
A importância de práticas de monitoramento e avaliação de projetos também foi abordada durante o 13º Congresso Gife. Segundo essa pesquisa de percepção que circulou durante o evento, sete em cada dez organizações consideram que a avaliação de impacto é realizada de forma incipiente. Isso é apontado por um em cada quatro respondentes como motivo para falta de retorno das organizações captadoras, revelando um descompasso entre a expectativa por métricas concretas e a capacidade institucional de implementá-las.
No quesito de orientação da atuação do ISP nos próximos anos, mudanças climáticas, inclusão produtiva sustentável e equidade racial figuram com os maiores percentuais de relevância. Também há consenso entre captadores e doadores de que equidade racial e mudanças climáticas são temas prioritários para o ISP, percepções que devem aparecer em outros debates sobre esses temas, como a COP30 em Belém (PA), que será realizada em novembro deste ano.
A pesquisa ainda abordou as imbricações do cenário externo com o ISP brasileiro, destacando a percepção de que o novo contexto político nos Estados Unidos deverá impactar negativamente no financiamento estrangeiro de organizações sociais no Brasil.
A democracia foi sinalizada como um dos temas de relevância para 81% dos respondentes. Por fim, a grande maioria (95%) considera que os temas discutidos durante o 13º Congresso Gife estavam alinhados com os desafios de suas organizações.
A percepção que temos é de que existe uma lacuna em narrativas do ISP quanto a discussões da filantropia brasileira que busca a desconcentração de poder, conhecimento e riquezas, tema central deste Congresso Gife. “Conversas difíceis” no campo do ISP brasileiro – como debates acerca de reparação, redistribuição e mesmo decolonização, que já se fazem presentes no cenário internacional – vêm sendo colocadas em pauta pelo Gife. Não há, porém, a pretensão de se chegar a uma resposta única, o que colocaria em xeque o projeto de uma filantropia plural.
No plano estratégico trienal do Gife, que se encerra no final deste ano, a defesa de temas como democracia, meio ambiente e equidade racial – que se mostram tendências no setor – é um ponto central. Repasse de recursos a terceiros, aumento de doações a OSCs e decolonização de práticas e de governança também são desafios colocados em destaque no referido planejamento e para a filantropia institucionalizada neste momento de virada.
Se por um lado o cenário político internacional pode intimidar ou assustar, por outro temos uma oportunidade de fazer mais e fazer diferente. Essa foi a mensagem deixada aos participantes do 13º Congresso Gife: um chamado à ação, de maneira coletiva e articulada, para mudarmos a chave e passarmos do discurso crítico à prática transformadora.
AS AUTORAS
Patrícia Kunrath Silva é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora de Conhecimento do Gife.
Sara Costa Pedreira é mestranda em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) e analista de Conhecimento do Gife.
*A Stanford Social Innovation Review Brasil é parceira de mídia do 13o Congresso Gife.
“Virada crítica” na filantropia: tendências e desafios a partir do 13º Congresso Gife
Evento debateu a desconcentração de poder, conhecimento e riquezas, um desafio complexo da filantropia
Por Patrícia Kunrath e Sara Costa
Uma das mesas de debate do 13º Congresso Gife. Foto: Divulgação Gife
A desigualdade social e as injustiças socioambientais vêm impactando populações ao redor do mundo, de forma sem precedentes. No Brasil não é diferente: um dos países mais desiguais também sofre com estas questões, que atingem com maior intensidade as comunidades mais vulneráveis nos territórios e ameaçam formas de vida e grupos étnicos inteiros.
A concentração de poder, conhecimento e riquezas é um desafio complexo, que a filantropia institucionalizada se propõe a endereçar migrando de práticas mais tradicionais – feitas de formas mais verticais, com a imposição da lógica dos financiadores – para uma ação dedicada a efetivamente mexer em estruturas que sustentam estas desigualdades.
Alguns pesquisadores, a exemplo da antropóloga inglesa Jessica Sklair, vêm chamando esse avanço de “virada crítica” na filantropia. Tal mudança pode se concretizar em práticas de maior justiça social ou servir como apropriação da crítica feita por atores que se beneficiam das desigualdades para manter o status quo. O tempo e a ação irão dizer qual caminho foi tomado.
A tarefa não é simples e a filantropia não tem a pretensão de esgotar respostas. No entanto, pode se apresentar como um meio importante na redistribuição de recursos para os territórios e grupos mais afetados.
O setor filantrópico ainda se encontra bastante concentrado em termos de regionalidade, temas de atuação, estratégia de investimento e perfil de conselhos. Temos 63% das 137 organizações respondentes do Censo Gife 2022-2023 com sede em São Paulo, e 71% atuando em educação. Esta área concentra cerca de 41% dos R$ 4,8 bilhões totais mobilizados em investimento social privado (ISP) em 2022.
Além disso, 55% das organizações são mais executoras de projetos próprios, 92% dos conselheiros são pessoas brancas e 66% são homens. Ainda assim, os ponteiros vêm se mexendo progressivamente, com tendência de aumento de recursos repassados para terceiros, especialmente para organizações da sociedade civil (OSCs). Observa-se, ainda, gradual crescimento de organizações mais financiadoras e maior atenção das lideranças a questões de pluralidade nos espaços de conselhos e tomadas de decisão.
O Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas), por meio da articulação de redes e da qualificação do campo e de suas práticas, vem ajudando a pautar estes caminhos para um fazer filantrópico mais transformador e plural. Foi nesse tom que a organização recebeu cerca de 1,2 mil pessoas no 13º Congresso Gife, realizado entre os dias 7 e 9 deste mês de maio, em Fortaleza.
Abigail Disney em plenária do 13º Congresso Gife. Foto: Divulgação Gife
A plenária de abertura do encontro, com a presença da filantropa estadunidense Abigail Disney, focou em temas que desafiam o universo das elites financeiras e do ISP: o protagonismo das mulheres na economia do cuidado e seus papéis como futuras herdeiras de somas que deverão ultrapassar U$ 100 trilhões até 2048, segundo relatório publicado pelo Bank of America Institute no último mês de março.
Disney também abordou a necessidade de taxação de grandes fortunas e do reconhecimento de que a filantropia corporativa muitas vezes tenta apenas abordar externalidades negativas de seus negócios.
A prática de grantmaking (repasse sistemático de recursos para terceiros) foi um dos eixos do 13º Congresso Gife, que contou com 185 palestrantes e 34 atividades. O encontro também tratou de temas como desenvolvimento institucional de OSCs, bioeconomia, meio ambiente, equidades racial e de gênero, filantropia feminista, conhecimento de povos tradicionais, educação, infância, inteligência artificial e big techs, entre outros.
Durante os três dias, o público foi também convidado a responder a uma pesquisa que ilustra tendências para o setor. Os questionamentos abrangeram temas emergentes, motivações de doações e percepções sobre o Congresso.
Em termos de estratégia adotada pelas organizações respondentes à pesquisa, quase metade (48%) relata distribuir os recursos em diferentes causas, mas dentro de um mesmo tema, o que revela aderência a uma agenda específica. Em consonância, aproximadamente um em cada três respondentes relataram que o alinhamento aos valores pessoais ou da empresa/instituto é o principal fator para a escolha do destino das doações.
Além disso, tanto para doadores (93%) quanto para captadores (94%), a crença na importância da causa é vista como a principal motivação para a doação regular. Ou seja, a filantropia atua orientada para os projetos e negócios que conversam com temas prioritários.
No geral, os respondentes mencionaram que o desenvolvimento institucional e o campo da educação são os temas que devem ser prioridade para o ISP. Comparando os perfis de organizações captadoras e doadoras, nota-se que enquanto as primeiras mencionam prioritariamente o desenvolvimento institucional, as últimas priorizam a educação – cenário alinhado aos dados da série histórica do Censo Gife.
A importância de práticas de monitoramento e avaliação de projetos também foi abordada durante o 13º Congresso Gife. Segundo essa pesquisa de percepção que circulou durante o evento, sete em cada dez organizações consideram que a avaliação de impacto é realizada de forma incipiente. Isso é apontado por um em cada quatro respondentes como motivo para falta de retorno das organizações captadoras, revelando um descompasso entre a expectativa por métricas concretas e a capacidade institucional de implementá-las.
No quesito de orientação da atuação do ISP nos próximos anos, mudanças climáticas, inclusão produtiva sustentável e equidade racial figuram com os maiores percentuais de relevância. Também há consenso entre captadores e doadores de que equidade racial e mudanças climáticas são temas prioritários para o ISP, percepções que devem aparecer em outros debates sobre esses temas, como a COP30 em Belém (PA), que será realizada em novembro deste ano.
A pesquisa ainda abordou as imbricações do cenário externo com o ISP brasileiro, destacando a percepção de que o novo contexto político nos Estados Unidos deverá impactar negativamente no financiamento estrangeiro de organizações sociais no Brasil.
A democracia foi sinalizada como um dos temas de relevância para 81% dos respondentes. Por fim, a grande maioria (95%) considera que os temas discutidos durante o 13º Congresso Gife estavam alinhados com os desafios de suas organizações.
A percepção que temos é de que existe uma lacuna em narrativas do ISP quanto a discussões da filantropia brasileira que busca a desconcentração de poder, conhecimento e riquezas, tema central deste Congresso Gife. “Conversas difíceis” no campo do ISP brasileiro – como debates acerca de reparação, redistribuição e mesmo decolonização, que já se fazem presentes no cenário internacional – vêm sendo colocadas em pauta pelo Gife. Não há, porém, a pretensão de se chegar a uma resposta única, o que colocaria em xeque o projeto de uma filantropia plural.
No plano estratégico trienal do Gife, que se encerra no final deste ano, a defesa de temas como democracia, meio ambiente e equidade racial – que se mostram tendências no setor – é um ponto central. Repasse de recursos a terceiros, aumento de doações a OSCs e decolonização de práticas e de governança também são desafios colocados em destaque no referido planejamento e para a filantropia institucionalizada neste momento de virada.
Se por um lado o cenário político internacional pode intimidar ou assustar, por outro temos uma oportunidade de fazer mais e fazer diferente. Essa foi a mensagem deixada aos participantes do 13º Congresso Gife: um chamado à ação, de maneira coletiva e articulada, para mudarmos a chave e passarmos do discurso crítico à prática transformadora.
AS AUTORAS
Patrícia Kunrath Silva é doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora de Conhecimento do Gife.
Sara Costa Pedreira é mestranda em Economia pela Universidade de São Paulo (USP) e analista de Conhecimento do Gife.
*A Stanford Social Innovation Review Brasil é parceira de mídia do 13o Congresso Gife.