Ver o mundo pelas lentes de gênero
Economia feminista oferece ferramentas para abordar desigualdades no mercado de trabalho e violência de homens contra mulheres
Por Aline Gatto Boueri
Qualquer pessoa que nos últimos anos acompanhou uma gravidez ou viu conteúdos sobre preparativos para a chegada de um bebê certamente ouviu falar de chá revelação. Com brincadeiras e, em alguns casos, pirotecnia, o evento é uma reunião de familiares e amigos para divulgar o sexo da pessoa que está por nascer, que pode ser anunciado com algum elemento associado ao masculino ou ao feminino, como um bolo azul, em caso de bebês com cromossomos XY, ou rosa, em caso de bebês XX.
Se antes mesmo de nascer os marcadores de gênero já acompanham os seres humanos, ao longo da vida eles se aprofundam e moldam a experiência de todas as pessoas que habitam nosso planeta, nas relações pessoais, no mercado de trabalho, no amor e na política. Para mulheres e meninas, a centralidade do gênero na organização social as coloca em situação de desvantagem e vulnerabilidade em diferentes campos.
Em Iguais e diferentes – uma jornada pela economia feminista, a economista Regina Madalozzo conta histórias e apresenta dados para apontar as causas e consequências dessa desvantagem e dessa vulnerabilidade, com o emprego da economia feminista como ferramenta de análise.
Em sete capítulos, a autora introduz o público nas contribuições do feminismo para a análise econômica e mostra como a economia pode ser útil para a leitura do mundo com lentes de gênero. A obra é um bom começo para quem se interessa por um dos dois campos, mas ainda não conhece a convergência entre eles.
Com um texto acessível, Madalozzo descreve e sugere soluções para um cenário conhecido por quem já tem familiaridade com o debate sobre desigualdades de gênero e raça: mulheres dedicam mais tempo a trabalhos domésticos e de cuidado desde a infância, ganham piores salários em trabalhos remunerados menos valorizados, são penalizadas pela decisão de ter filhos e essas dinâmicas contribuem para que se tornem mais vulneráveis à violência machista.
O primeiro capítulo evoca uma declaração de Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2019 e 2022, no governo de Jair Bolsonaro (PL): “menino veste azul e menina veste rosa”. Madalozzo faz uma genealogia de como as cores passaram a marcar o sexo das crianças e como essa é apenas a ponta do iceberg da percepção de que estamos, homens e mulheres, determinados biologicamente a seguir certas ocupações e manifestar interesses específicos.
A economista traz o dado de que mulheres eram 70% dos alunos no curso de ciências da computação da Universidade de São Paulo em 1974 e 15% em 2016. “O início da ciência da computação foi muito baseado em máquinas de tabulação, com a confecção e o uso de cartões perfurados, algo bem pouco glamouroso e, na época, o tipo de trabalho de baixo status. Dito de outra forma, um ‘trabalho para mulheres’”, escreve Madalozzo.
Dados históricos sobre segregação ocupacional apresentados pela autora ajudam a visualizar como homens e mulheres, brancos e negras, se inserem de maneira diferente no mercado de trabalho devido a estereótipos de gênero e raça, que operam do momento da contratação até a negociação salarial. Esse é o assunto do segundo capítulo, que traz informações úteis para quem está em posições de liderança, precisa montar equipes e quer burlar os vieses que podem levar a escolhas baseadas em estereótipos.
Madalozzo apresenta um estudo sobre recrutamento de musicistas para orquestras, que provou que audições às cegas aumentaram em até 50% a probabilidade de mulheres passarem à segunda rodada do processo seletivo. Os vieses de gênero determinam que mesmo mulheres talentosas podem ser rejeitadas para cargos para os quais estão capacitadas pelo simples fato de serem mulheres. Se elas têm filhos, a penalização é ainda maior.
O peso do gênero
No livro A mão esquerda da escuridão, a escritora norte-americana Ursula K. Le Guin cria uma sociedade em que as pessoas não têm gênero nem sexo definido ao nascer. Durante o período fértil, seus corpos se transformam de acordo com a outra pessoa com quem têm relações e esse processo é aleatório. Qualquer pessoa pode ser pai ou mãe daquele bebê e é possível ser ambas as coisas para diferentes bebês. Nessa sociedade em que o gênero não existe, o cuidado com os filhos não está determinado por ele.
O terceiro capítulo do livro de Madalozzo é uma amostra de uma sociedade em que, de maneira oposta, gênero tem um peso enorme sobre quem decide ter filhos e cuidar deles.
A experiência de um pai e de uma mãe em casais heterossexuais está definida não por suas aptidões, mas pela forma como são percebidas suas funções no trabalho reprodutivo, ou seja, “o conjunto de tarefas necessárias para nossa manutenção como seres humanos […]. Cuidar de uma criança – alimentar, brincar, dar banho, trocar de roupa – é parte do trabalho reprodutivo, assim como cuidar de idosos ou de pessoas com alguma deficiência e, também, cuidar para que a roupa de alguém que sai para trabalhar esteja limpa e pronta para ser utilizada quando for necessário”.
O maior uso do tempo por parte das mulheres para exercer esse tipo de trabalho tem relação com os estereótipos de gênero que a sociedade imaginada por Le Guin apagou. Licenças parentais ou a ampliação da licença-paternidade não conseguem, por si só, garantir uma maior participação dos homens na criação dos filhos, como Madalozzo demonstra a partir da experiência de países nórdicos, onde benefícios desse tipo são mais antigos e generosos. A educação para uma socialização mais equitativa revela-se mais eficiente na redução da sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidado sobre as mulheres.
Os capítulos 4 e 5 mostram como esses estereótipos, acompanhados da desigualdade salarial entre homens e mulheres, têm impacto nas relações familiares. A autora recupera trabalhos sobre economia da família para registrar, com dados, que uma contribuição financeira menor para a renda da casa reduz o poder de barganha das mulheres na hora de negociar a divisão das tarefas domésticas e de cuidado. E que a “solução” para esse desequilíbrio implica, no caso de famílias com essa possibilidade, a contratação de trabalho doméstico, realizado majoritariamente por mulheres negras, de maneira precária e com baixa remuneração.
A economista lembra que a pouca valorização do trabalho doméstico e de cuidado não remunerado – no Brasil, nem sequer é medido como parte do Produto Interno Bruto (PIB) – se reflete também no caso das pessoas ocupadas nessa categoria, que está feminizada e racializada.
A divisão sexual do trabalho acontece desde a infância, quando meninos e meninas assumem diferentes papéis na vida familiar e realizam diferentes tarefas. Essa socialização, que especializa umas para o trabalho doméstico e de cuidado e outros para o trabalho fora de casa, também tem impacto na forma como vão se relacionar entre si no futuro, quando e se formarem suas próprias famílias.
O impacto da covid-19
No sexto capítulo, Madalozzo recupera a experiência da pandemia de covid-19 para reforçar que, além de gênero e raça, a classe social foi outro fator que aprofundou os impactos desiguais na renda e na vida dos brasileiros.
Pessoas ocupadas em trabalhos que podiam ser realizados de maneira remota, homens e mulheres, tiveram a possibilidade de repartir o trabalho doméstico e de cuidado de maneira mais equitativa e resguardar a saúde ao ficar menos expostas ao contágio pelo vírus. Já em favelas e periferias, a pandemia reorganizou o trabalho de outra forma. Madalozzo participou de uma pesquisa realizada pelo Insper que entrevistou 141 moradoras da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, e de Heliópolis e Jardim Colombo, em São Paulo.
“Enquanto […] os 10% mais ricos em nossa sociedade tiveram a oportunidade de trabalhar online ou em sistema híbrido durante toda a pandemia, as moradoras de favelas – grande parte delas trabalhando como diaristas, empregadas domésticas e cuidadoras – foram as primeiras pessoas a serem afastadas de seus empregos”, escreve a autora.
Foram elas também que organizaram suas comunidades para o cuidado coletivo. Em Paraisópolis, elas eram 90% dos chamados presidentes de rua, pessoas designadas para gerenciar as necessidades dos moradores de cada quadra e acompanhá-los em casos de emergência.
Ainda que tenham executado tarefas importantes para a manutenção da vida durante a pandemia, um número significativo de mulheres – principalmente aquelas ocupadas em trabalhos menos valorizados, como o doméstico – se retirou do mercado de trabalho.
A economista mostra que a pandemia provocou um retrocesso à década de 1990 em termos de indicadores de participação feminina no mercado. O dado é público e está disponível para qualquer pessoa que tenha interesse em trabalhar com informações históricas sobre mercado de trabalho. O que Madalozzo traz aqui é a lente de gênero: é preciso perguntar onde estavam as mulheres, brancas e negras, ao longo da história, para saber que regredimos 30 anos com a pandemia.
Conforme argumenta a autora, a recuperação econômica precisa acontecer a partir do desenho de políticas públicas com perspectiva de gênero, com atenção especial à ampliação da oferta e do horário de atendimento de creches e escolas, serviços imprescindíveis para quem precisa cuidar de crianças e depende dessa rede para exercer tarefas remuneradas.
O livro encerra com a análise da faceta mais cruel e letal dos estereótipos de gênero: a violência machista. “O feminicídio, a forma mais brutal de violência contra a mulher, escancara uma crença de que a disparidade de força e oportunidades entre homens e mulheres seja ‘natural’. É através dessa visão de superioridade com relação às mulheres que alguns homens acreditam ser parte de seus direitos agredir e matar, por exemplo, as companheiras que pedem separação, quando isso não é também um desejo deles”, escreve a autora.
Ela lembra que a economia feminista oferece ainda ferramentas para analisar a violência de gênero, uma vez que esta “influencia e é influenciada pelas características de trabalho, de qualificação e alternativas de vida que as próprias mulheres têm”.
Ainda assim, na mesma medida em que as licenças por nascimento de filhos não são suficientes para garantir maior participação masculina nas tarefas de cuidado, a independência financeira não basta para que uma mulher decida deixar uma relação violenta. Madalozzo aponta que também nesse aspecto é preciso uma transformação cultural muito mais profunda, que engendre relações de poder mais equilibradas entre homens e mulheres.
Iguais e diferentes – uma jornada pela economia feminista
por REGINA MADALOZZO
Zahar, 2024, 248 págs., R$ 89,90
A AUTORA
Aline Gatto Boueri é jornalista de dados especializada em coberturas sobre direitos humanos, gênero, raça, sexualidade e direitos sexuais e reprodutivos. Também cuida de uma criança todos os dias.
*Artigo publicado originalmente na edição 12 da SSIR Brasil; leia aqui a edição completa
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