Um plano para a libertação
Aida Mariam Davis, fundadora da Decolonize Design, desafia paradigmas colonialistas e propõe novo caminho para equidade racial
por Aria Florant

Na última década, houve avanços concretos na luta por justiça racial nos Estados Unidos. Os norte-americanos viram vitórias políticas tangíveis: experimentos para desinvestir no policiamento e reinvestir nas comunidades; políticas locais e estaduais de reparação; ordens executivas do ex-presidente Joe Biden sobre equidade racial; e o dia 19 de junho, o Juneteenth, foi instituído como feriado nacional para comemorar o fim da escravidão.
Juntamente com esses avanços, instituições progressistas têm se empenhado em aprimorar o alinhamento entre sua missão e suas práticas, e esse objetivo envolve a cura individual de seus membros. Pessoas que se encontram na organização de movimentos e estão construindo poder – e, portanto, lidando com o trauma historicamente associado a ele – devem se restabelecer desse trauma para aprender como ter, distribuir e exercer o poder para alcançar justiça. É um longo caminho, porque nos obriga a agir tanto no nível micro como no macro. Precisamos nos comprometer com nossa cura como indivíduos e transformar as instituições para que não perpetuem ciclos de danos. Muitas vezes, esse fardo recai sobre aqueles que suportam a carga mais pesada da opressão social estrutural. Desaprender formas opressivas de operar, em especial em nosso capitalismo racial, é um trabalho constante e exaustivo.
Pessoas como Prentis Hemphill e Adrienne Maree Brown estão abrindo esse caminho, e o primeiro livro de Aida Mariam Davis, Kindred Creation: Parables and Paradigms for Freedom (em tradução livre, Criação fraterna: parábolas e paradigmas para a liberdade, sem publicação no Brasil), segue nessa linha. A autora traça um caminho para a cura de povos negros e oprimidos por meio de um processo coletivo de recusa ao colonialismo de ocupação. Seu texto “mergulha em nossas raízes para entendermos o contexto, construirmos novas relações de parentesco, estudarmos e lutarmos juntos e, mais importante, cuidarmos do desenvolvimento espiritual uns dos outros”, explica Davis. Criar esse parentesco “não é reformar ou decolonizar o design”, continua Davis, em sutil referência a seu trabalho como fundadora da consultoria Decolonize Design. Em vez disso, “trata-se de resgatar quem somos […], sem a imposição da sociedade dos colonos, e de preservar as práticas e sabedorias culturais dos povos tradicionais de matriz africana”. Em suma, o livro lembra a pessoas negras, indígenas e oprimidas que somos os agentes de nossa própria cura e que, se olharmos para o nosso interior, veremos que a liberdade que buscamos está ali, pronta para ser cultivada.
A estrutura tripartite do livro – re-lembrar o colonialismo, recusar o pensamento e as instituições coloniais e resgatar culturas e sabedorias para criar novas formas de parentesco – apresenta um guia de práticas de liberdade para negros, indígenas e oprimidos. As ideias de Davis nascem de textos de escritores e pensadores de diversas épocas, gêneros e geografias – ela as extrai de poesia e prosa, parábolas e profecias, bem como de conceitos de design organizacional e liderança.
A primeira prática, re-lembrar, implica decolonizar nossas mentes aprendendo com a história e o pensamento negro e indígena. Davis explica que o hífen [no termo em inglês re-member] é “deliberado para ilustrar o sentido primário da palavra – reunir membros ou pessoas da ocorrência ou experiência que está sendo lembrada”. Em breves seções sobre terra, linguagem, estilo de vida e trabalho, a autora demonstra como a estrutura colonialista permeia nossa vida e, ao mesmo tempo, aponta novas formas de conhecimento que a re-lembrança oferece. Por exemplo, ela elucida o papel da re-lembrança na continuidade do respeito à terra: “A terra é o solo regenerativo sagrado que nos conecta aos nossos ancestrais, o lar de nossos parentes não humanos, nossa comida e farmácia, nossa biblioteca e a fonte de tudo o que nos sustenta”, escreve. A reconexão permite o que ela chama de “mudança de paradigma” – a terra é “cultural e recíproca”, não “comercial e mercantilizável”. É difícil não levar a sério a potencialidade dessa mudança de paradigma, especialmente em relação ao mundo natural. Imagine, por exemplo, como seria muito mais fácil enfrentar a crise climática se os sistemas econômicos e democráticos globais tivessem sido construídos para intensificar a reciprocidade entre os seres humanos e a terra, em vez de tratar a terra como simples mercadoria.
Davis descreve várias estratégias para praticar a re-lembrança, incluindo a subversão da estrutura colonialista, de modo a inverter a maneira como os indivíduos entendem o mundo. De acordo com Davis, “a escravização e o genocídio não devem ser considerados história negra ou indígena, mas história branca, pois esse é o passado violento, abominável e vergonhoso dos colonizadores brancos”. Esse reenquadramento da história é pedagógico e abre um mundo de questões e possibilidades: e se o aprendizado sobre escravização e genocídio não se limitasse ao Mês da História Negra nos EUA, mas integrasse um currículo cujo propósito fosse criar agentes de reparação do dano provocado? E se oferecessem um caminho para separar a branquitude da supremacia branca?
Recusar, a segunda prática, convida o leitor a levar a colheita da re-lembrança para o processo de resistência. Esse caminho inicia-se pelo processo de “definir-se para si próprio”, escreve Davis. “Ninguém tem mais proximidade com sua experiência vivida do que você. Ninguém entende as memórias, traumas, alegrias e circunstâncias que o levaram até onde você está hoje – ninguém além de você.” Se re-lembrar estrutura a aspiração por um novo modelo de ação, recusar desvela as práticas de fuga do status quo em direção a essa aspiração. Recusar o status quo gera tensão e, portanto, exige uma força de propósito inabalável que só pode ser obtida por meio de uma compreensão íntima de si mesmo.
Davis propõe uma gama de recusas, como dormir, boicotar, até nos permitirmos sentir todo o espectro de nossas emoções. Ela se aventura em recusas estruturais ao confrontar referenciais como design thinking e diversidade, equidade e inclusão, explicando por que essas teorias permanecem insuficientes: esse trabalho não diz respeito apenas àquilo que devemos desmantelar, mas também ao que devemos construir. Davis conta que ela mesma teve uma revelação enquanto escrevia o livro – o que levou a uma mudança de título, de Decolonize Design para Kindred Creation. A distinção é sutil, mas clara: criar tem uma energia diferente, mais voltada para o futuro, do que decolonizar.
Combinados, o trabalho de re-lembrar e o de recusar criam espaço para resgatar, explica Davis, não apenas em termos de “recuperação ou restituição de algo que foi roubado ou perdido”, mas também no sentido de um desenvolvimento prospectivo. Ela descreve maneiras de resgatar a liberdade por meio de relacionamentos, narrativas e cuidados.
A engenhosidade de Kindred Creation está em como o design entrelaça todo o seu conteúdo. Davis aborda um aspecto bastante subestimado: pessoas projetaram nossos sistemas para serem racistas e supremacistas; portanto, pessoas podem redesenhá-los. Com muita frequência nos atolamos na crença de que o que é sempre será – mas a história nos mostra que nada é imutável. O livro ilumina como nossos sistemas foram projetados para a dominação. Um fato deprimente, mas, se mudarmos o enquadramento, também promissor: podemos redesenhá-los para a reparação e a liberdade.
Por exemplo, Davis aponta como a branquitude foi arquitetada como uma ferramenta para acumular e manter o poder – “Foi uma construção social concebida para estabelecer uma suposta superioridade de um grupo sobre outros” – e pondera como a resistência de povos oprimidos favorece “a restauração da dignidade do opressor ao permitir que ele repare o dano”. Conectar esses pontos fornece um roteiro para erradicar o racismo internalizado. Para pessoas negras que tentam sobreviver em sistemas fundados na supremacia branca, é o bálsamo final a ser lembrado: a superioridade branca é uma farsa, embora mortal, e segurar esse espelho cura não apenas as pessoas negras, mas as brancas também.
Embora eficaz em elencar exemplos do pensamento colonialista, o livro carece de uma análise mais profunda sobre por que certos exemplos são prejudiciais. Por exemplo, Davis chama a disciplina Design para o pertencimento da Universidade Stanford de “insultante” e “intelectualmente preguiçosa” por não oferecer “cuidado, propósito e rigor aos mais prejudicados pela subjugação, exploração e violência”. Como graduada por essa universidade, estou ciente das práticas problemáticas e do legado da instituição; seu presidente fundador, David Starr Jordan, foi um eugenista proeminente. No entanto, Davis não explica por que ou como a disciplina é insultante, então a alegação permanece infundada.
Além disso, a obra foi escrita expressamente para negros, indígenas e outros grupos oprimidos e quase não se refere ao papel de pessoas brancas ou descendentes de colonizadores. O escopo de Davis é deliberado e admirável: negros, indígenas e oprimidos precisam de obras direcionadas apenas para nós e não focadas nos opressores. No entanto, isso cria uma tensão basilar porque nos Estados Unidos, em 2024, quem é apenas opressor ou oprimido? Acompanhando a orientação de Davis, que afirma as identidades íntegras e complexas de todas as pessoas, acho muito difícil categorizar a maioria das pessoas como apenas uma coisa ou outra.
Tomando a mim mesma como exemplo, as multidões que contenho como uma CEO negra, birracial e mulher complicam o binário opressor/oprimido. Sou racializada como negra na maioria dos espaços e, portanto, membra de um povo oprimido; ainda assim, tenho pele clara, que representa a brancura do opressor. Detenho poder posicional como CEO de uma organização sem fins lucrativos; no entanto, sou constantemente subestimada como mulher na liderança. Sou obrigada a jogar o jogo para arrecadar dinheiro em nosso atual capitalismo racial a fim de pagar minha equipe e permitir-lhe viver; contudo, dirijo uma organização focada na erradicação do racismo, do qual o capitalismo racial tanto depende para funcionar.
Essas realidades criam questões complexas com as quais lido todos os dias. Tento aplicar muitas das práticas que Davis defende. Re-lembrar seria dizer a verdade sobre a história dos EUA e o que é devido às pessoas negras. Recusar significa rejeitar as estruturas institucionais do status quo e construir uma organização que fortaleça a natureza humana, a integridade e o bem-estar de sua gente. Resgatar inclui infundir cuidado em tudo o que fazemos na Liberation Ventures, uma organização sem fins lucrativos que acelera o movimento pela reparação racial. No entanto, tudo isso exige dinheiro, que exige trabalho, que exige pessoal, que exige dinheiro – e a exaustão aparece. Como uma pessoa em busca da própria liberdade e da liberdade dos outros, continuo a ansiar por mais espaço e apoio para lidar com o fato de que construir um novo mundo muitas vezes requer perpetuar o antigo – e manter o espaço de transição aberto é, às vezes, angustiante.
Em sua parábola sobre a grande mesa, Davis descreve que a mesa representa amplos sistemas sociais e formas de pensar e saber. Ela convida o leitor a fazer perguntas importantes. Por exemplo, para que serve uma mesa e o que faz valer a pena juntar-se a ela? Davis fala sobre seu próprio desejo de rejeitar a mesa colonialista, mas termina aí. Fiquei querendo mais. A rejeição total é realmente possível? Que outros caminhos e papéis existem? Como pessoas em diferentes papéis podem trabalhar juntas?
Para consertar o mundo, acredito que precisamos de todos nós, jogando em posições diferentes. Alguns na mesa distraem nossos opressores enquanto corroem a madeira por baixo. Alguns na sala ao lado constroem uma nova mesa. Alguns projetam uma estrutura que não é uma mesa, mas algo novo. E devemos estar estrategicamente conectados e em profunda relação uns com os outros, realizando os movimentos que precisamos fazer, a fim de alcançar a liberdade que todos merecemos.
A AUTORA
ARIA FLORANT é cofundadora e CEO da Liberation Ventures.
Kindred Creation: Parables and Paradigms for Freedom – Black worldmaking to reclaim our heritage and humanity
por Aida Mariam Davis
North Atlantic Books, 2024, 224 págs., disponível em inglês na Amazon (R$ 120,65, em ebook)
VITRINE
Outros títulos que ajudam a refletir sobre o campo
Uma vez que são as pessoas brancas que se beneficiam do racismo, cabe a elas o trabalho de desconstrução das estruturas que subalternizam pessoas não brancas. Branquitude: diálogos sobre racismo e antirracismo reúne conversas entre pensadores e ativistas como Cida Bento, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, Robin DiAngelo e Liv Sovik, que aconteceram durante um seminário realizado em agosto de 2020 pelo Instituto Ibirapitanga. As discussões abordam o papel das pessoas brancas nas dinâmicas raciais e sua responsabilidade na perpetuação ou no enfrentamento do racismo no Brasil. (Fósforo, 2023, 356 págs., R$ 79,90)
O que pode o design diante de desafios globais como mudanças climáticas, desigualdade social e crises de saúde pública, como a pandemia de covid-19? Em Design como atitude, a escritora e crítica britânica Alice Rawsthorn discute as transformações no campo do design frente a emergências e seu papel na promoção de diversidade e inclusão em diferentes contextos sociais. A autora apresenta o design como força transformadora, enfatizando seu potencial para provocar mudanças positivas na sociedade por meio de abordagens criativas e colaborativas. (Ubu, 2024, 272 págs., R$ 69,90)
Há mais entre o distrito paulistano de Pinheiros e o município amazonense de Ipixuna do que os 3.200 km que os separam. O economista Pedro Fernando Nery explora as muitas distâncias entre os brasileiros em Extremos: um mapa para entender as desigualdades no Brasil. Com histórias e dados, ele sustenta que a má distribuição de recursos não apenas prejudica os mais pobres, mas também entrava o crescimento econômico geral, afetando toda a sociedade. E convida à reflexão sobre as realidades do país e os caminhos possíveis para um Brasil mais justo. (Zahar, 2024, 368 págs., R$ 119,90)