Filantropia e financiamento

Um novo modelo para financiar o desenvolvimento comunitário

O modelo tradicional é limitado pelo conservadorismo do mercado e pela ênfase na escala em detrimento do controle local; é preciso um paradigma novo, que priorize o impacto social, promova estratégias de financiamento flexíveis e criativas e faça valer a voz da comunidade

Por David Fukuzawa, Nancy O. Andrews e Rebecca Steinitz

Ilustrações de Matt Chase

modelo

B oyle Heights, um bairro de Los Angeles, é um dos berços da história e da cultura mexicano-americanas da cidade. A Mariachi Plaza é um antigo ponto de encontro de bandas de mariachi em busca de trabalho. Lá está uma estátua de Lucha Reyes, atriz e cantora mexicana conhecida como a rainha da música ranchera, e um mural de Nossa Senhora de Guadalupe. Embora o bairro leve o nome do imigrante irlandês Andrew Boyle e tenha recebido ondas de imigrantes da Europa e da Ásia ao longo do tempo, 94% de sua população hoje é latina.

Em 2016, Boyle Heights foi palco de protestos contra a crescente gentrificação, que expulsa os locais dali e ameaça a identidade do bairro. Como em boa parte de Los Angeles, o custo da moradia disparava e ameaçava expulsar a população – 75% dela de locatários – das zonas centrais.

Em resposta, a Inclusive Action for the City (IA), organização sem fins lucrativos que concedia microcréditos para vendedores ambulantes, sugeriu que a saída para evitar o deslocamento dos moradores seria a compra de imóveis. Como não tinha recursos para tirar a ideia do papel, a IA associou-se à Genesis LA, instituição financeira de desenvolvimento comunitário (CDFI, na sigla em inglês), e a duas organizações do campo, a East LA Community Corporation e a Little Tokyo Service Center, que tinham equipes experientes e mais recursos financeiros.

Juntas, elas criaram o programa Community Owned Real Estate (CORE). A meta era abrir caminho para que locatários pudessem ter sua casa própria. A abordagem no curto prazo era adquirir prédios, manter negócios existentes, oferecer espaço comercial a empreendedores locais e disponibilizar assistência técnica e outros recursos para ajudar inquilinos a expandir os próprios negócios e organizações e, em última instância, a comprar os imóveis.

Um mecanismo de incentivo fiscal ao qual a Genesis LA tinha acesso, o New Markets Tax Credits (NMTC), foi um elemento central da estratégia financeira do CORE. Esse crédito fiscal, que incentiva investimentos privados em projetos de apoio ao desenvolvimento comercial e crescimento econômico em zonas de baixa renda, funciona como um subsídio, permitindo que CDFIs certificadas concedam capital para investimento em condições mais favoráveis a projetos como o CORE, ao mesmo tempo reduzindo o risco para investidores. O pacote de US$ 10 milhões em financiamento incluía cerca de US$ 3 milhões em NMTCs, que ajudaram a viabilizar a captação de outros US$ 5,6 milhões; o restante, US$ 1,4 milhão, veio de participações e doações de parceiros filantrópicos.

Usando empréstimos de curto prazo da Genesis LA, o CORE adquiriu cinco propriedades comerciais em Boyle Heights e arredores. No segundo semestre de 2019, vários moradores assinaram contratos de locação nessas unidades. A pandemia de covid-19 dificultou as coisas; hoje, porém, quatro dos edifícios estão totalmente ocupados por pequenas empresas e entidades sem fins lucrativos. O quinto, cuja reforma atrasou devido à demora na emissão de alvarás, está quase pronto. Há pouco, o conselho da Inclusive Action aprovou a compra de um sexto imóvel.

O investimento do CORE teve êxito em várias frentes: conseguir financiamento, sobreviver à pandemia e sustentar negócios e a comunidade. Recentemente, o projeto lançou uma nova campanha para levantar capital, buscando apoio de fundações locais para aumentar subsídios e garantir que os imóveis permaneçam acessíveis quando os NMTCs vencerem. No momento, está fazendo a migração dos imóveis da carteira para um regime de propriedade comunitária e vendo a possibilidade de criar uma holding com missão social que possa adquirir imóveis com rapidez até que proprietários de longo prazo possam levantar fundos. Colaboração entre setores, esquemas criativos de financiamento e participação de inquilinos seguirão sendo importantes à medida que o programa cresce. 

O sucesso do CORE revela uma mudança de paradigma há muito necessária no financiamento do desenvolvimento econômico de comunidades. Em décadas anteriores, a dependência excessiva do mercado para catalisar soluções sociais levava a práticas de investimento que priorizavam escala em detrimento da missão social e menosprezavam soluções customizadas, baseadas no contexto local. Já o novo paradigma prioriza a equidade, respostas flexíveis às necessidades locais e a voz da comunidade.

Já passou da hora de repensar o modelo de financiamento do desenvolvimento comunitário. Queremos mostrar como e por que esse setor crucial precisa reformular o papel de especialistas financeiros e do mercado, reequilibrar relações de poder e priorizar a voz da comunidade. Neste artigo, incentivamos instituições financeiras de desenvolvimento comunitário a ampliarem sua visão para além da simples viabilização de mercados em áreas subatendidas. O setor hoje possui força e penetração para incorporar soluções locais customizadas de modo mais assertivo. Ele deve promover a divisão de poder com atores envolvidos no desenvolvimento comunitário que não sejam financiadores. Instamos a filantropia a apoiar essa mudança estratégica com capital de longo prazo que saiba esperar e confie nas comunidades que busca atender. 

 

A luta contra a pobreza e o racismo

A origem do desenvolvimento comunitário nos Estados Unidos remonta ao final da década de 1960, com a guerra contra a pobreza e o Movimento dos Direitos Civis. No final dos anos 1980, com a ascensão do neoliberalismo, o financiamento para o desenvolvimento comunitário buscou estimular mercados para reverter o desinvestimento em zonas carentes, fomentar o crescimento econômico e corrigir décadas de injustiça racial. A ideia era que o crescimento econômico traria maior prosperidade e, junto com a promoção dos direitos civis, poria fim ao racismo e seus efeitos, criando uma vida melhor para todos. Ao expandir essas iniciativas e fazer com que mercados operassem nessas comunidades, o desenvolvimento comunitário atenderia o maior número de pessoas com o uso mais eficiente de recursos públicos, privados e filantrópicos. Ao melhorar a economia de comunidades pobres em larga escala, o setor eventualmente faria a transição para um modelo de investimento autossustentável, capaz de bancar suas operações básicas.

Essa abordagem focada no mercado produziu resultados, sobretudo quando em paralelo com o crescimento econômico nos EUA e no mundo. O PIB norte-americano saltou de US$ 2,9 trilhões em 1980 para US$ 28,8 trilhões em 2024. O financiamento para desenvolvimento comunitário ganhou escala e hoje é um parceiro robusto da política social do país, mobilizando todos os anos bilhões de dólares em capital para projetos sociais em milhares de comunidades.

Apesar do crescimento desse modelo de desenvolvimento, ainda há muito a ser feito. A pobreza e o racismo persistem. A segregação racial aumentou na maioria das regiões metropolitanas do país. Grandes cidades como Detroit, Cleveland e Chicago se tornaram mais segregadas, apesar de décadas de investimento comunitário. Vários atores envolvidos no desenvolvimento comunitário – especialistas, investidores, moradores – hoje questionam os limites da abordagem baseada no mercado e buscam criar uma alternativa mais inclusiva. O modelo convencional não só frustrou a expectativa de que combateria a pobreza e o racismo, mas não conseguiu garantir sustentabilidade financeira para organizações de desenvolvimento comunitário.

É preciso, com urgência, reavaliar velhas verdades e ajustar-se às evidências e lições dos últimos 40 anos. Soluções de mercado têm efeito limitado, e acreditar que o mercado pode resolver todo e qualquer problema social é ilusão. Defendemos uma revisão dos pilares do financiamento para o desenvolvimento comunitário – mercado, escala e autossustentabilidade – e um reequilíbrio das relações de poder entre modelos de investimento comunitário e vozes da população. E incentivamos o mundo filantrópico a apoiar essas mudanças com capital e doações pacientes, de longo prazo e fundados na confiança.

Felizmente, desde 2010, desenvolvedores e investidores têm trabalhado por uma nova abordagem de mobilização de capital. Os dois pilares dessa nova visão são que a transformação de sistemas é tão importante quanto escala e que a voz da comunidade é crucial para o real desenvolvimento comunitário

Quarenta anos atrás, a tese dominante era que o investimento de capital seria crucial para o desenvolvimento e que especialistas em desenvolvimento comunitário e financiadores teriam sucesso se adotassem práticas empresariais disciplinadas, criassem modelos de negócios viáveis, ganhassem escala e se tornassem autossuficientes. Esse modelo refletia a ideia do “duplo retorno”: fazer o bem seria bom para os resultados. A meta era atrair capital no mercado, garantir retorno sobre o investimento, provar a viabilidade de soluções propostas, crescer e criar uma plataforma para maximizar o impacto da missão. Os três grandes princípios desse modelo eram:

 

  • MERCADOS, se bem utilizados, eliminarão a pobreza e o racismo;

  • ESCALA é o objetivo final (atender ao maior número possível de pessoas) e confiar no mercado é a melhor maneira de alcançar isso;

  • AUTOSSUSTENTABILIDADE, idealmente de três a cinco anos (padrão definido por financiadores), deveria ser a meta de entidades sem fins lucrativos de combate à pobreza e ao racismo.

 

A filantropia foi fundamental na mobilização do poder de mercados para o desenvolvimento comunitário. Sua abordagem foi melhorar as condições econômicas de comunidades urbanas e rurais por meio de investimentos vinculados a programas e missões, criando infraestrutura (CDFIs), defendendo mudanças em políticas públicas e formando lideranças. Sob muitos aspectos, o sucesso desse modelo foi notável.

Hoje, as CDFIs priorizam escala e atraem grandes somas de investimento privado. Já mobilizaram bilhões de dólares em capital para investimento, adotaram práticas disciplinadas, receberam ótimas classificações de agências de risco como Standard & Poor’s, criaram produtos de crédito bem definidos e reproduzíveis, influenciaram políticas públicas e fizeram a ponte entre projetos com missões específicas e mercados de capital privado. Uma sondagem da Opportunity Finance Network com mais de 400 CDFIs revelou que, somente em 2022, essas instituições destinaram mais de US$ 10 bilhões a comunidades carentes de investimento.

São conquistas imensas e importantes. No entanto, cada passo no sentido da replicação de modelos de mercado, da escala e da autossuficiência tirou flexibilidade e criatividade do desenvolvimento comunitário. Para garantir sustentabilidade às próprias operações, CDFIs priorizam a eficiência e plataformas operacionais (relativamente) grandes. O financiamento do desenvolvimento comunitário foi ficando cada vez mais parecido com a indústria do capital privado – com a escala, o volume e a disciplina que isso implica. Muitas vezes, essa abordagem sacrificou a participação da população e soluções criativas e customizadas aos desafios da comunidade. A visão de organizações e projetos que se sustentam com receitas próprias raramente se concretizou. Agora, o setor tem a oportunidade de reequilibrar dinâmicas de poder entre CDFIs e organizações comunitárias e adotar abordagens novas e flexíveis ao capital.

 

Da escala à transformação sistêmica

Para produzir impacto em grande escala no desenvolvimento comunitário é preciso mobilizar grandes somas de capital com um grau de risco conservador, capaz de atrair e reter investidores privados, públicos e filantrópicos. O resultado é um ciclo virtuoso de expansão de capital, ampliação de investimentos e maior penetração. Contudo, é cada vez mais evidente que, para produzir o impacto desejado, o investimento em comunidades precisa enfrentar de maneira mais eficaz os obstáculos do racismo estrutural e sistêmico, das complexidades locais e de visões excessivamente limitadas sobre o uso da filantropia e de investimentos. Felizmente, desde 2010, desenvolvedores e investidores têm trabalhado por uma nova abordagem de mobilização de capital. Os dois pilares dessa nova visão são que a transformação de sistemas é tão importante quanto escala e que a voz da comunidade é crucial para o real desenvolvimento comunitário.

O princípio central do investimento social é que não só é possível, mas essencial, que ele traga resultados sociais e ambientais em grande escala. Afinal, os problemas em pauta são imensos. Em 2019, a Global Impact Investing Network ouviu 266 investidores de impacto com um total de US$ 239 bilhões em ativos destinados a investimento dessa modalidade. Eles reconhecem que a busca simultânea de impacto e escala exige concessões, e cada investidor aceita abrir mão de algo pelo impacto social. Mas, para que o investimento em comunidades de baixa renda evite resultados extrativos, é preciso priorizar o impacto social, a flexibilidade e a voz da comunidade.

modelo

Muitos líderes no desenvolvimento comunitário e na filantropia já incorporaram essa ênfase em resultados sociais a suas operações e investimentos. Mas isso não basta. Se o investidor quiser apoiar comunidades de baixa renda, a população dessas comunidades precisa ter um papel de liderança na iniciativa. Logo, entes financiadores do desenvolvimento comunitário devem fazer um esforço maior para ceder poder e tomada de decisões a moradores e organizações impactadas pelo capital e pela forma como especialistas o administram.

Não somos os únicos a defender essa mudança. Nos EUA, muitos lugares já começam a adotar as novas práticas. Indivíduos que atuam no setor têm acumulado uma rica experiência ao lidar com deficiências atuais do desenvolvimento comunitário e explorar novos modelos e abordagens para enfrentar o racismo e promover o desenvolvimento. Um relatório de 2023 intitulado Anti-Racist Community Development Research Project, da organização comunitária ThirdSpace Action Lab, de Cleveland, destaca o crescente ceticismo de muita gente da área em relação à ideia de que o modelo de desenvolvimento promovido pelo mercado pode resolver o problema do racismo. O relatório sugere abordagens mais explícitas da questão racial, específicas para o lugar em questão e promovidas pela comunidade.

Com base no trabalho da ThirdSpace Action Lab e em nossa experiência, sugerimos que o financiamento do desenvolvimento comunitário promova três mudanças estratégicas:

Do mercado para a missão e a voz da comunidade | Quando o mercado é o alicerce de uma teoria de mudança, o financiamento do desenvolvimento comunitário costuma ir para projetos que servem tanto um modelo de negócios como uma missão, geram pouco impacto e tiram poder da comunidade. Além disso, é praticamente impossível ganhar escala em muitas comunidades de baixa renda – onde é muito difícil, por exemplo, cobrir custos de projetos habitacionais sem subsídios pesados. Essa constatação levou muita gente no universo do financiamento comunitário a redefinir normas de investimento. O crescimento resultante do investimento de impacto criou maiores volumes de capital que colocam pessoas – e a justiça racial, social e ambiental – acima do retorno financeiro. 

Além disso, há cada vez mais evidências de que investir diretamente nas pessoas é transformador. Estudos sobre educação e cuidados na primeira infância, por exemplo, mostram o impacto duradouro na trajetória profissional e no sucesso do indivíduo ao longo da vida. Pesquisas recentes sobre mobilidade social, sobretudo as conduzidas pelo economista Raj Chetty e pelo cientista político Robert Putnam, também revelam a importância do capital social, que é produto da coesão, da conectividade e do engajamento comunitário, para a superação da pobreza entre gerações. Novos modelos de desenvolvimento devem priorizar o benefício comunitário e o investimento direto em capital humano – tanto quanto, ou mais que, o retorno financeiro. Envolver a população e organizações comunitárias na definição dos benefícios e no direcionamento dos investimentos é essencial para o sucesso desses modelos.

Da escala para a mudança sistêmica | Desigualdades raciais e pobreza estão profunda e historicamente ligadas a estruturas, instituições e sistemas da sociedade. Investimentos de capital em grande escala, por si só, não vão erradicar o problema. Não é difícil entender por que a escala em si virou a grande meta, sobretudo diante da escassez de moradia acessível e de qualidade nas cidades. Isso posto, o foco na produção de unidades habitacionais acabou obstruindo a visão do contexto humano e social das comunidades. Além disso, uma longa história de segregação e exclusão sancionadas pelo poder público impediu que gerações de comunidades não brancas tivessem acesso a oportunidades. Modelos alternativos que combinem investimentos públicos, privados e filantrópicos, levem em conta o contexto local e incentivem a genuína colaboração das comunidades já se mostraram eficazes tanto para promover equidade como para gerar crescimento econômico. Soluções flexíveis, inspiradas e lideradas pelas próprias comunidades são mais duradouras, aumentam a agência e a confiança da população e derrubam a resistência a soluções impostas lá do alto. O resultado é a verdadeira mudança sistêmica.

Cada passo no sentido da replicação de modelos de mercado, da escala e da autossuficiência tirou flexibilidade e criatividade do desenvolvimento comunitário. Essa abordagem sacrificou a participação da população e soluções criativas e customizadas aos desafios das comunidades

Da autossustentabilidade ao investimento de longo prazo para o retorno social | Ciclos de financiamento de curto prazo (três anos, em geral) de muitas fundações e investidores de impacto criam expectativas irreais. Para promover mudanças sociais duradouras é preciso paciência e um investimento de muito mais tempo, como qualquer investidor de longo prazo sabe. E a transformação necessária para enfrentar as causas da desigualdade racial e econômica requer uma visão de longo prazo. Organizações e projetos que atingem sustentabilidade de verdade são a exceção, não a regra. A filantropia precisa ter um horizonte maior de investimento, que abrace o capital “paciente”. 

Além de adotar essa nova mentalidade, financiadores precisam repensar o próprio modelo de investimento, deixando de considerar apenas em que projetos irão investir para pensar também em seu impacto no investimento comunitário como um todo. Temos duas recomendações:

Resultado esperado do investimento deve passar de incremental a transformador. Desde a década de 1960, o sistema de desenvolvimento comunitário vem medindo o progresso em unidades: número de moradias construídas, área total de empreendimentos comerciais, empregos criados e assim por diante – que, naturalmente, foram e continuam sendo indicadores importantes de avanço. Mas poucos diriam, hoje, que esses resultados pontuais eliminaram a pobreza ou a segregação racial. Investidores de impacto interessados em enfrentar problemas complexos, como a mudança climática ou entraves à mobilidade social, não se contentam com avanços graduais. Querem investimentos transformadores. Recursos destinados a ideias como a renda básica universal não visam simplesmente criar um programa assistencial de sucesso, mas explorar um modelo potencialmente revolucionário para romper o ciclo da pobreza. Novos fundos com recursos combinados como o Fair Food Fund e o Potlikker Capital não se veem apenas como programas de crédito a pequenas empresas ou produtores rurais, mas como instrumentos para transformar todo o sistema alimentar. Quem investe no desenvolvimento comunitário também precisa olhar além de projetos isolados e focar na transformação de comunidades inteiras.

Horizonte do investimento deve passar de sustentabilidade para impacto generativo. No paradigma anterior, financiadores e investidores buscavam promover a autossuficiência financeira. Já a nova visão de investimento busca gerar um grau de transformação no qual o investimento inicial leve a mudanças na percepção daquilo que é possível. Esse ideal não necessariamente implica um retorno financeiro significativo ou a replicação em grande escala. A ideia é identificar investimentos capazes de incentivar a inovação, romper com o status quo e abrir caminho para soluções mais eficazes, equitativas e duradouras. Um exemplo é a narrativa sobre os fatores sociais da saúde, segundo a qual o contexto social e ambiental determina a saúde das pessoas. Projetos-piloto nessa arena rapidamente ganharam tração nos sistemas de saúde público e privado, começando a transformar fundamentalmente a forma como o cuidado é prestado e até o que planos de saúde cobrem. Esse impacto social generativo extrapola em muito o investimento inicial. O novo paradigma do investimento comunitário busca uma trajetória transformadora semelhante.

 

Um novo equilíbrio de poder 

Uma coisa é definir novos princípios de ação. Outra, bem diferente, é colocar isso em prática. Nenhuma instituição pode, sozinha, reconstruir uma comunidade. O trabalho exige colaboração entre atores com um amplo leque de habilidades e perspectivas. Instituições de financiamento do desenvolvimento comunitário, as CDFIs, devem trabalhar com entidades de desenvolvimento econômico e outros grupos comunitários, com foco na igualdade de poder entre parceiros. Organizações de serviços humanos também precisam participar. A filantropia e os setores público e privado também desempenham um papel decisivo.

Nos últimos 40 anos, alguns atores conquistaram mais influência e recursos do que outros, apesar do importante papel que cada um desempenha. CDFIs passaram a ter uma influência desproporcional em iniciativas de desenvolvimento comunitário, pois controlam a alocação de capital e o investimento em infraestrutura.

Líderes no desenvolvimento comunitário de distintos setores precisarão ajudar o campo a mudar formas arraigadas de agir e pensar, testar novas abordagens, promover mudanças em incentivos e políticas e migrar de uma perspectiva voltada a problemas para uma visão de mudança sistêmica

O modelo de CDFIs tem vantagens e desvantagens. Cresceu e distribuiu até o momento centenas de bilhões de dólares. Criou, nos EUA, uma legislação federal de apoio e recursos que amplificam sua voz em discussões de políticas sociais. O setor hoje cobre uma parcela considerável de seus custos operacionais – um desdobramento que garantirá uma plataforma mais sustentável para o futuro. Mas, para ganhar escala e influência, CDFIs tiveram de restringir aquilo que oferecem, limitar customização e riscos e formalizar procedimentos operacionais. Tudo isso é um entrave à criatividade e à flexibilidade.

Devido à sua escala, CDFIs hoje têm uma voz poderosa, até dominante, na formulação de estratégias comunitárias. Mas, para colocar em prática os princípios que apresentamos acima, é preciso mudar o equilíbrio de poder entre atores do desenvolvimento comunitário. É preciso abrir espaço na mesa para outras vozes. Uma solução seriam parcerias de investimento comunitário que coloquem a estratégia nas mãos da população e de organizações da comunidade, deixando às CDFIs um papel técnico.

Isso não só é possível, como já está ocorrendo. Abrimos este texto com o relato do trabalho da CORE em Boyle Heights, bairro de Los Angeles. Vejamos mais dois exemplos para aprofundar o modelo dirigido pela comunidade e mostrar como os novos princípios estão transformando e melhorando o desenvolvimento comunitário. 

 

Mais moradias na Califórnia

O We Lift, programa do Fundo Catalisador de Moradias no Vale de Coachella, na Califórnia, é um excelente exemplo de como mudar o equilíbrio de poder no desenvolvimento comunitário. O fundo é uma parceria entre várias entidades: a Lift to Rise (LTR), uma organização comunitária voltada a promover estabilidade habitacional e mobilidade econômica no Vale de Coachella; duas CDFIs (a Low Income Investment Fund, ou LIIF, e a Rural Community Assistance Corporation, ou RCAC); e o Condado de Riverside. A parceria foi estruturada para recalibrar o poder entre a voz da comunidade, representada pela LTR, e o conhecimento das CDFIs em investimentos de capital.

Em 2018, a LTR realizou sessões de escuta em todo o Vale de Coachella para elaborar uma lista de prioridades e estratégias comuns para a região. Com a ajuda da iniciativa Connect Capital, do Center for Community Investment, a LTR usou informações colhidas junto à população para estabelecer a meta de criar 10 mil novas moradias acessíveis em um prazo de dez anos. A meta era especialmente ousada porque entre 2012 e 2017 apenas 259 unidades habitacionais acessíveis tinham sido erguidas na região.

Atingi-la exigiria um fundo com capital de US$ 100 milhões. Para arrecadar essa cifra, a LTR precisaria trabalhar com CDFIs – daí o convite para que LIIF e RCAC se juntassem à organização na criação de um novo Fundo Catalisador de Moradias. 

Para levantar recursos, CDFIs normalmente dão o próprio patrimônio como garantia e atuam como agentes de captação de recursos. Essa abordagem, no entanto, coloca as próprias organizações em risco e as obriga a aderir a parâmetros conservadores para garantir a própria sustentabilidade. Além disso, transfere o grosso do poder em uma parceria de desenvolvimento comunitário para a CDFI.

A LTR adotou um modelo diferente. Conseguiu US$ 17 milhões do estado da Califórnia e do Condado de Riverside para garantir proteção contra perdas para as CDFIs. Mais importante ainda, a LTR reteve esses fundos em seu próprio balanço, em vez de ceder o controle para as CDFIs. Com isso, a LTR garantiu que as CDFIs assumissem o risco maior de trabalhar em uma região com um mercado fraco, subdesenvolvido, mas manteve o controle da visão e da estratégia do fundo nas mãos da comunidade. Embora tenha delegado a gestão da carteira e decisões de crédito às CDFIs, a LTR administra o rumo estratégico e o desempenho do fundo e tem autoridade para substituir as CDFIs parceiras, se necessário.

A LTR também usou sua autoridade para envolver ainda mais os moradores do Vale de Coachella e organizações locais nas atividades do fundo. Foi criado um Comitê Consultivo Comunitário (CCC) para nortear a ação do fundo. O comitê se reúne a cada três meses para rever e avaliar o desempenho do fundo com base em critérios que garantam que a alocação do capital esteja alinhada com as prioridades da comunidade. Ao controlar o capital destinado a absorver perdas em operações de investimento comunitário, a LTR também conseguiu reequilibrar de forma permanente o poder de decisão sobre os rumos estratégicos do fundo, que migrou de parceiros financeiros para representantes da comunidade.

Hoje, o nascente mercado habitacional do Vale de Coachella está atendendo às necessidades da população local e dando mostras de vitalidade. De 2017 para cá, foram construídas 2.007 novas unidades habitacionais, com outras 5.700 a caminho. O Fundo Catalisador de Moradias desembolsou mais de US$ 35 milhões para apoiar esses projetos. O CCC se reúne regularmente para definir a direção estratégica das operações e as CDFIs parceiras da LTR dão a assessoria técnica necessária para o investimento desse capital.

 

Investindo nos Apalaches

A Invest Appalachia (IA) é outro bom exemplo de como redistribuir poder entre a expertise financeira e a voz da comunidade. À primeira vista, a IA pode ser descrita de modo convencional: é um fundo
de investimento comunitário similar a uma CDFI que já angariou US$ 35,5 milhões em investimentos de impacto e quase US$ 3 milhões em doações para capital flexível e destinado a absorver riscos. A IA começou a operar oficialmente no final de 2022. No primeiro ano, liberou US$ 6,3 milhões em capital misto (empréstimos flexíveis e fundos recuperáveis) para apoiar empreendimentos e projetos de desenvolvimento econômico comunitário na região dos Apalaches em seis estados: Kentucky, Carolina do Norte, Tennessee, Virgínia, Virgínia Ocidental e Ohio. Nos primeiros oito meses de 2024 desembolsou outros US$ 6,5 milhões.

A IA, porém, resolveu operar de uma maneira nova. Como uma organização sem fins lucrativos, atua como gestora e sócia geral do fundo IA. Assim como a LTR, contratou uma CDFI, a Locus, como gestora de investimentos do fundo. A Locus se encarrega de funções administrativas, incluindo a gestão da carteira, a análise de crédito e a coordenação de serviços de terceiros (como contabilidade e administração).

A IA também segue altos padrões em relação à colaboração e à governança comunitária. Sua abordagem, que privilegia parcerias, e sua robusta rede de relacionamentos tiram proveito do ecossistema de investimento existente na comunidade, que inclui entidades filantrópicas, CDFIs e ONGs de desenvolvimento comunitário. A IA se descreve como uma organização que representa a região e aposta em estruturas interligadas de governança de stakeholders para definir rumos estratégicos, tomar decisões de financiamento, aprovar investimentos do fundo e prestar contas à comunidade. Seu conselho de administração inclui atores regionais com uma diversidade de identidades e perspectivas – representando CDFIs, fundações e organizações comunitárias. Um CCC formado por líderes comunitários e organizações de base representa uma população diversa. O comitê de investimentos é composto por profissionais pautados por valores, incluindo membros do conselho, CDFIs parceiras e vozes nacionais. Os membros do conselho e do comitê de investimentos são aprovados pelo conselho, com contribuição da equipe, enquanto os membros do CCC indicam e aprovam novos integrantes.

O site da IA declara: “Nossa estratégia de investimento, carteira de projetos, metas de impacto e governança são pautados e norteados por atores comunitários locais”. Essa mudança de poder na definição das estratégias de capital – passando de credores tecnicamente especializados para aqueles que priorizam as necessidades da comunidade – é fundamental para romper com o paradigma tradicional de mercado, escala e sustentabilidade. Estruturas financeiras inovadoras são mais capazes que investidores tradicionais de satisfazer necessidades da comunidade, enquanto a governança comunitária formalizada que a IA adota oferece garantias adicionais de que a voz da comunidade tenha um lugar igual e duradouro na mesa.

Em menos de dois anos, os recursos da IA chegaram a 115 condados, ajudaram mais de 50 mil pessoas (a maioria em zonas rurais afetadas pela mineração de carvão ou regiões de baixa renda) e ajudaram a garantir US$ 33 milhões adicionais em doações e empréstimos de outras fontes de recursos. Quase 80% de seus empréstimos foram possíveis graças aos termos flexíveis e às estruturas de financiamento da IA. No futuro, ela pretende testar outros modelos inovadores de investimento (incluindo colaborar com o governo federal e intermediários do terceiro setor para usar recursos do Fundo de Redução de Gases de Efeito Estufa, da Agência de Proteção Ambiental dos EUA), lançar uma iniciativa regional para apoiar o desenvolvimento comunitário em centros urbanos, colaborar com parceiros regionais para aumentar a resiliência climática e seguir criando novos veículos de investimento e arrecadando capital para necessidades locais que não estão sendo atendidas pelo ecossistema de investimentos atual. Nesse novo modelo, o investimento nos Apalaches estará baseado ali mesmo na região.

 

É tempo de inovar

Para que o financiamento do desenvolvimento comunitário abandone os princípios de mercado, escala e autossuficiência e cumpra a promessa de aumentar a equidade e as oportunidades em comunidades historicamente desfavorecidas, precisaremos de capital e lideranças com paciência e flexibilidade. A filantropia será crucial para essa evolução – mas o mesmo pode ser dito de desenvolvedores públicos e privados, outros parceiros dos setores público e privado e, acima de tudo, uma população e organizações comunitárias com novos poderes, instaladas no centro do processo. 

À medida que se percorre essa trajetória de transformação, iniciativas comunitárias como LTR e IA vão traduzir os anseios da população em planos originais e flexíveis, locais e regionais, para atrair recursos financeiros e permitir que moradores desempenhem um papel significativo na alocação de capital. Organizações de desenvolvimento e capacitação de lideranças, como o Center for Community Investment (cujos programas vêm dando um apoio fundamental aos líderes e à atividade da CORE, LTR e IA), vão construir capacidades locais e compartilhar modelos inovadores com o setor para promover essa mudança de paradigma. 

Líderes no desenvolvimento comunitário de distintos setores precisarão ajudar o campo a mudar formas arraigadas de agir e pensar, testar novas abordagens, promover mudanças em incentivos e políticas e migrar de uma perspectiva voltada a problemas para uma visão de mudança mais sistêmica. Barreiras técnicas e políticas a essa mudança são consideráveis, mas podem ser superadas, como demonstram os projetos inovadores aqui discutidos. Ao seguir esses novos modelos, o campo tem a oportunidade de criar um consenso em torno de uma nova abordagem para financiar o desenvolvimento comunitário e finalmente enfrentar os problemas para os quais foi criado. 

 

Leia também: O esporte como aliado na ação climática

 

OS AUTORES

David Fukuzawa é consultor estratégico e ex-diretor executivo da Fundação Kresge.

Nancy O. Andrews é pesquisadora do Distinguished Careers Institute da Universidade Stanford e ex-presidente e CEO do Low Income Investment Fund.

Rebecca Steinitz é escritora e consultora de comunicação e aprendizado de escolas e entidades sem fins lucrativos, incluindo o Center for Community Investment.

Mantenedores Institucionais

Apoio institucional