Sabedoria milenar para sonhar o futuro

Kaká Werá apresenta a arte indígena do bem-viver como caminho de reconexão com o presente e cura para a humanidade em tempos de crise

A percepção de que vivemos um tempo de transformações velozes e profundas é global. Uma pesquisa realizada em 2023 com cerca de 30 mil pessoas em 31 países1 revelou que quase oito em cada dez sentem que o mundo está mudando rápido demais. A crise climática, a inteligência artificial e a hiperconectividade alimentam angústias específicas que já têm até nome: ecoansiedade e tecnoansiedade. Nessa ânsia de olhar para o futuro, o passado perde importância. No entanto, revisitar o passado, não com nostalgia, mas com curiosidade e escuta, pode oferecer respostas a muitos dos males contemporâneos. 

Kaká Werá ensina que já existe, há milhares de anos, uma filosofia que ensina a viver bem, aproveitar o presente e sonhar com o futuro. Chamada de tekoá-porã pelos Guarani, sumak-kawsay pelos Quéchua e suma-qamana pelos Aymara, ela se disseminou, com algumas modificações, por inúmeros povos indígenas das Américas. O processo colonizatório que teve início no século 16 visou eliminar símbolos e arquétipos dos povos originários, vistos como pagãos. Mas hoje, intelectuais, artistas e lideranças comunitárias indígenas nos apresentam a oportunidade de conhecer e colocar em prática essas ideias.

Em Tekoá: Uma arte milenar indígena para o bem-viver, Werá oferece uma jornada pelo descobrimento da sua ancestralidade Tapuia2, enquanto revela a ancestralidade do continente americano. Nascido e criado em São Paulo, o autor teve poucas referências sobre o seu povo durante os primeiros anos de vida. Em casa, os pais evitavam comentar sobre as razões que motivaram a migração para a periferia da cidade grande, vindos do norte de Minas Gerais. Havia a história vaga de uma tia-avó pajé, mas nada muito concreto que o conectasse com suas origens. Fora de casa, o apagamento persistia. “Aprendi na escola pública lições a respeito do meu povo e dos meus parentes como se nem eles nem eu existíssemos mais”, conta.

Foi apenas como jovem adulto, trabalhando no departamento de cultura da Prefeitura de São Paulo, que ele visitou pela primeira vez uma aldeia indígena Guarani, nos arredores da capital. O contexto foi a gravação de um documentário sobre os fluxos migratórios indígenas, história que se conectava com a sua própria. A identificação foi instantânea. “Demorou, hein, sobrinho?!”, ouviu do pajé Alcebíades Werá no primeiro encontro. A partir daí, começou a jornada pessoal do autor e, com ele, a do leitor, rumo à arte do bem-viver.

O que é o bem-viver?

Para praticar o bem-viver, Kaká Werá conta que é preciso cuidar de três aspectos: o lugar interior, o lugar que o indivíduo ocupa no mundo e o lugar como uma entidade coletiva chamada comunidade. Da mesma forma, o bem-viver pode ser experimentado a partir da junção do trio bem-pensar, bem-sentir e bem-fazer.

“É muito diferente do viver bem, que para algumas pessoas pressupõe a falsa ilimitada vida consumista e consumidora de si e para outras pessoas, um certo verniz social em que a aparência vale mais que a essência. No bem-viver, a riqueza e a beleza estão nesse lugar interior representado pelo coração, que, por sua vez, com toda a certeza irá refletir, sim, em riqueza e beleza exterior, devido à ênfase na qualidade das relações e no cuidado com o espaço onde se vive”, afirma.

Ao longo de 12 capítulos, o livro apresenta de maneira acessível e sensível diversos aspectos da cosmovisão indígena relacionados ao bem-viver, como a importância dos ritos e das histórias de sabedoria ancestral. Com linguagem simples, mas poética, o autor facilita o entendimento de quem está tendo o primeiro contato com essa filosofia milenar, tão enraizada na história do Brasil quanto pouco conhecida pelo grande público.

O bem-viver é revelado como um estado de equilíbrio em que as ações do indivíduo refletem uma coerência entre pensamento, sentimento e prática, sempre em conexão com o coletivo. A comunidade e a natureza não são elementos externos à existência, mas partes constitutivas dela; especialmente a natureza, compreendida não como recurso, mas como integrante da família. Werá enfatiza a importância dos nomes na cosmologia indígena, explicando como as palavras moldam nossa relação com o mundo. Critica o uso do termo “planeta”, que evoca distância e abstração, e defende o uso de “Mãe Terra”, que expressa vínculo, intimidade e responsabilidade afetiva.

Para o autor, o bem-viver é uma abordagem holística da existência, que propõe a harmonia entre os seres humanos, a natureza e todos os seres sencientes. Essa experiência começa de dentro para fora: é no cultivo do lugar interior que se estabelece o lugar que ocupamos no mundo. Inversamente, quando esse território interior está em desequilíbrio, abre-se espaço para conflitos e sofrimentos.

Na tradição guarani, Anham é a entidade que representa os males, obstáculos e forças desestruturantes que habitam esse espaço interno. Werá mostra como os rituais de contemplação, escuta e reconexão com a ancestralidade ajudam a reconhecer e transmutar essas forças, transformando-as em caminhos de cura e fortalecimento pessoal e coletivo.

Narrar para sobreviver

O tekoá-porã oferece não apenas um modo de vida, mas também uma narrativa possível para orientar nossas escolhas em tempos de desorientação. O filósofo Byung-Chul Han, em seu livro A crise da narração, argumenta que vivemos em uma sociedade saturada de informações e carente de histórias com sentido. O desaparecimento das grandes narrativas, como a cristã, esvaziou a experiência de pertencimento e continuidade. “O vácuo narrativo em uma sociedade da informação faz com que as pessoas se sintam descontentes, especialmente em momentos de crise […]. As pessoas inventam narrativas para explicar um tsunami de números e dados desorientadores”, disse Han em 2023.3 

Nesse cenário, o bem-viver pode ocupar o lugar de uma narrativa regenerativa, que conecte as ações humanas com as necessidades de um planeta em crise. “O tekoá-porã passou a ganhar força nestes tempos de caos social e ecológico global como uma forma de resistir a um modelo de desenvolvimento predatório e excludente. Não se trata de uma teoria ideológica ou sociológica para contrapor uma visão dominante. Para cumprir a proposta do bem-viver, é necessário retomá-lo a partir do fio da meada de sua origem histórica ancestral, compreendê-lo como síntese de uma soma de experiências de diversas culturas, e não a construção de um conceito teórico”, escreve Werá.

Para o autor, a ancestralidade funciona como uma bússola que orienta em direção à abundância, à sabedoria e ao equilíbrio. Na mitologia Tupinambá, fala-se da existência de três humanidades anteriores à nossa, todas destruídas por padrões recorrentes de pensamento e comportamento autodestrutivo. Esses relatos ancestrais, longe de serem apenas alegorias do passado, ecoam advertências profundamente atuais: revelam o poder das ações humanas de ferir a Mãe Terra e, com isso, comprometer a própria continuidade da vida, como já se evidencia nos desastres climáticos. “Nessas histórias da tradição, não é o ser humano que, diante do caos que plantou com seu mal-pensar, mal-sentir e malfazer, precisa salvar o planeta; é ele próprio quem precisa salvar-se, individual e coletivamente.”

Sonhar o futuro

Para os Guarani, sonhar é um ato coletivo. Antigamente, havia entre eles um membro da comunidade, o nhe-ngá oiko-angá, ou sonhador de caminhos, capaz de sonhar o lugar ideal para estabelecer a aldeia. Fundamentais para a sobrevivência, os sonhadores encontravam locais com melhores condições para produzir alimento, caçar, pescar e rezar. Hoje, essa habilidade pode nos inspirar a cultivar não só bons lugares físicos, mas também novos futuros possíveis. 

A sonhadora de caminhos Tijary Warejú foi uma das pessoas que introduziu Werá na arte do bem-viver, incentivando a busca pela cura de males individuais e coletivos. Segundo ele afirma no livro, ela dizia: “Os animais e as plantas não produzem guerras porque eles não possuem nenhuma das cinco coisas que fazem distorcer a consciência: não têm orgulho, nem dúvida, nem ficam fixados nas suas feridas, nem ignoram sua origem, nem desenvolveram repugnância pelas outras espécies”.

A chegada dos europeus a partir do século 16 gerou conflitos não apenas entre os indígenas e os colonizadores, mas também dos povos originários entre si. A razão seria o envenenamento do bem-viver, que mantém a harmonia das comunidades com a natureza. Da mesma forma, o caminho para paz está em cuidar do bem-pensar, bem-sentir e bem-fazer. Após a apresentação desses conceitos, Werá oferece uma atividade meditativa no apêndice do livro, facilitando a sua aplicação.

A arte do bem-viver, portanto, não é uma utopia romântica, mas uma prática concreta e ancestral que começa no cuidado com o lugar interior e extrapola para o exterior. Ao recuperar o fio da ancestralidade, Werá nos convida a construir novos mundos possíveis, não a partir de fórmulas abstratas, mas da memória viva, da escuta profunda e do reencontro com a Terra como lar. Em tempos de colapso climático, ansiedade tecnológica e fragmentação narrativa, o tekoá-porã pode ser o solo fértil de onde brotam outros modos de existir. 

Tekoá: Uma arte milenar indígena para o bem-viver. Por Kaká Werá. BestSeller, 2024, 176 págs., R$ 54,90.

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VITRINE

Outros títulos que ajudam a refletir sobre o campo.

A escritora brasileira Cidinha da Silva compartilha em Só bato em cachorro grande, do meu tamanho ou maior: 81 lições do Método Sueli Carneiro o que aprendeu em três décadas de convivência com uma das maiores intelectuais do país. As lições de Carneiro versam sobre posturas éticas, políticas e afetivas em temas como ancestralidade, justiça, poder e amor, e são apresentadas por Silva em textos breves que sistematizam frases, gestos e ensinamentos vividos. Além de ser um manual para ativistas, o livro apresenta um olhar sobre a luta de uma mulher negra por um mundo igualitário.

(Rosa dos Tempos, 2025, 208 págs., R$ 59,90)


O que aconteceria se deixássemos de ver as plantas como um recurso e começássemos a enxergá-las como cidadãs de pleno direito? Em Nação das plantas, o botânico italiano Stefano Mancuso propõe uma revolução em nossa relação com o mundo vegetal. O autor nos convida a repensar a convivência no planeta segundo as leis de uma fictícia constituição da nação das plantas. A partir de informações científicas, ele defende que as plantas, por sua inteligência, capacidade de adaptação e papel essencial na manutenção da vida, têm muito a ensinar para melhores decisões ecológicas e políticas.

(Ubu, 2024, 128 págs., R$ 64,90)


Em Animais arquitetos, o arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa analisa as construções dos bichos na natureza, tais como ninhos de pássaros, cupinzeiros e formigueiros. O livro usa ciência e arquitetura para demonstrar a inteligência dos animais e a maestria das suas criações. Para o autor, a relação entre os animais e seus ambientes sugere que a arquitetura pode ser entendida como uma extensão da ecologia. Os princípios de adaptação e sobrevivência usados nessas construções podem inspirar projetos humanos a considerarem não apenas a funcionalidade estética, mas também a interação com a natureza.

(Olhares, 2024, 188 págs., R$ 79,00)


A historiadora brasileira Mary Del Priore volta o olhar para a relação da sociedade brasileira com os idosos através dos séculos no livro Uma história da velhice no Brasil. Com ampla pesquisa documental, a obra mostra como a sociedade percebeu, tratou e representou a velhice em diferentes épocas. Ao analisar o passado, a autora levanta questões pertinentes hoje, como desafios contemporâneos diante do envelhecimento da população brasileira, o tratamento destinado aos idosos na atualidade e os caminhos para envelhecer com dignidade.

(Vestígio, 2025, 320 págs., R$ 74,90)

Notas

  1. GlobeScan, “People feel overwhelmed by pace of change in the world”, 25 jan. 2024. ↩︎
  2. Kaká Werá escreve no livro: “Meus antepassados habitavam o norte mineiro, rodeados pelos Xacriabá, Aranã, Krenak, Caetité e Kaxixó. Povos pertencentes a diferentes etnias e que falavam línguas distintas, mas, pelo fato de habitarem regiões do cerrado e das montanhas, foram chamados de Tapuia”. ↩︎
  3. Outras Palavras, “Byung-Chul Han expõe sua aposta na Arte”, 05 mai. 2023. ↩︎

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