Em 1989, assistentes sociais encontraram Gangadhar Vinode nas ruas de Mumbai. Com as roupas esfarrapadas, o adolescente parecia desnutrido e estava com a perna quebrada. Os profissionais levaram o jovem de 18 anos para um abrigo no subúrbio de Mumbai e, logo depois, um psiquiatra visitante, Bharat Vatwani, transferiu-o para seu centro de recuperação, a Shraddha Rehabilitation Foundation. O rapaz começou a se recuperar após iniciar um tratamento para esquizofrenia. À medida que os detalhes de sua identidade surgiam, Vatwani levou-o para a cidade de Pune, no oeste da Índia, e reuniu-o com sua família – três meses após seu desaparecimento.
“Eu estava voltando para casa de um acampamento em Kolhapur [a 228 quilômetros de Pune], mas não desci do ônibus e acabei nas ruas de Mumbai”, lembra Vinode, agora um incorporador imobiliário de 52 anos. “Quando me encontraram, eu não sabia onde estava, como fraturei minha perna nem como sobrevivi nas ruas. Ainda não sei o que aconteceu comigo naquele ônibus.”
Vinode é um dos mais de 10 mil moradores de rua com alguma doença mental na Índia que, graças à Shraddha Rehabilitation Foundation, foram resgatados, tratados e reconectados a suas famílias. O que começou em 1988 como um abrigo instalado em um apartamento de dois cômodos em Mumbai tornou-se uma organização sem fins lucrativos que administra uma unidade de 120 leitos localizada num terreno de 2,6 hectares em Karjat, a 67 quilômetros de Mumbai. Em 2018, Vatwani recebeu o Prêmio Ramon Magsaysay por sua “coragem e compaixão curativa ao acolher a população em situação de rua com doenças mentais da Índia, além da dedicação firme e magnânima ao trabalho de restaurar e afirmar a dignidade humana até mesmo dos mais excluídos em nosso meio”.
Cerca de 200 milhões de indianos vivem com doenças mentais, mas o país investe apenas 1% de seu orçamento de saúde em saúde mental. A Índia também sofre com um grave déficit de profissionais da área: tem apenas 0,3 psiquiatra por 100 mil pessoas, em comparação com mais de 6,6 psiquiatras por 100 mil pessoas em países ocidentais. O renomado psiquiatra indiano Dayal Mirchandani diz que, além daqueles que deixam seus lares, “indivíduos com doenças mentais são com frequência abandonados pela família devido ao estigma social arraigado”. Segundo o último censo, realizado em 2011, a Índia tinha cerca de 1,7 milhão de pessoas em situação de rua, das quais perto de 50% eram, provavelmente, portadoras de doença mental.
Vatwani fundou a Shraddha após um encontro com uma pessoa esquizofrênica há pouco mais de 37 anos. O médico estava em um restaurante de Mumbai com a esposa, também psiquiatra, quando notou um jovem recolher água suja de uma sarjeta. Vatwani se aproximou enquanto o rapaz faminto e desgrenhado engolia a água. Então o casal levou-o para o abrigo que administrava e ministrou-lhe um tratamento para a esquizofrenia. Dias depois, Vatwani soube que o jovem tinha formação universitária, mas fora consumido pela doença mental que o atirou às ruas de Mumbai. Cerca de dois meses após seu resgate, Vatwani reconectou-o com sua família no estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia.
“A doença mental pode reduzir uma pessoa a condições desumanas. Depois de encontrar aquele jovem, percebemos que não havia nenhuma organização lidando com essas pessoas na Índia”, diz Vatwani sobre a criação da Shraddha. Hoje, a entidade sem fins lucrativos, conduzida apenas pelos Vatwani, evoluiu de seu humilde começo para uma organização de larga escala com cinco gestores, quatro psiquiatras, 16 assistentes sociais com pós-graduação, 13 funcionários de meio período, 12 enfermeiros, dois contadores, dois motoristas de ambulância e dois cozinheiros.
Resgatar, reunir, reeducar
A Shraddha persegue sua missão de três maneiras: resgate e tratamento; reunião com a família e/ou comunidade; e workshops para promover a conscientização a respeito das doenças mentais.
Hospitais em todo o país transferem seus pacientes para a Shraddha, e colaboradores, policiais e outras organizações também informam rotineiramente a fun-dação sobre pessoas em situação de rua. Após receber as informações, uma equipe médica da Shraddha vai com a ambulância da fundação para resgatar a pessoa. Se o paciente estiver em uma organização governamental ou sem fins lucrativos em outra cidade, será transferido para a Shraddha por trem.
O trabalho da equipe médica nem sempre é fácil. Às vezes, os pacientes ficam agressivos durante o resgate, alguns têm lesões físicas que atrasam e/ou restringem o tratamento psiquiátrico e outros, ainda, falam apenas dialetos nativos. Além disso, os médicos não têm acesso ao histórico dos pacientes, o que torna o tratamento mais desafiador.
Quando os pacientes chegam, os funcionários atendem às suas necessidades médicas antes de tratar suas doenças psiquiátricas, diz Swarali Kondwilkar, uma dos quatro psiquiatras da Shraddha. Uma vez que os pacientes começam a se recuperar, os médicos iniciam a segunda fase do programa, com perguntas sobre sua identidade – seu nome, nomes dos familiares e de sua aldeia ou cidade, de sua escola, assim como os festivais que celebravam na infância, entre outras questões. Os assistentes sociais da Shraddha, que vêm de todos os estados da Índia e falam uma variedade de línguas e dialetos, ajudam a identificar os vilarejos, cidades e municípios dos pacientes.
Ao longo dos anos, a fundação promoveu reencontros em todos os estados indianos e até mesmo em outros países. No entanto, em um a cada dez casos as famílias relutaram em receber o parente, sobretudo devido a seu histórico de violência ou comportamento nocivo. Kondwilkar diz que, nessas ocasiões, eles orientam as famílias sobre as doenças mentais e, na maioria das vezes, a empatia prevalece e a família o aceita de volta.
“Usamos as oportunidades [de reencontro] para promover a conscientização sobre saúde mental”, diz Kondwilkar, referindo-se à terceira fase do programa. A psiquiatra recorda uma ocasião em que, após reintegrar um homem a sua família em Bengala Ocidental, vários moradores da região a procuraram em busca de ajuda, relatando doenças mentais entre seus familiares. Em resposta, ela realizou um acampamento de dois dias para a comunidade, oferecendo consultas psiquiátricas gratuitas e derrubando mitos sobre doenças mentais.
A Shraddha é financiada por doadores individuais, organizações governamentais, como a General Insurance Corporation of India, e organizações não governamentais, como a Shree Babulnath Mandir Charities e a Sir Ness Wadia Foundation. Ex-pacientes e suas famílias também contribuem. Por exemplo, em 2014 um homem doou 120 mil rúpias (US$ 1,4 mil) depois que a organização reconectou seu irmão com a família. Em uma carta, ele escreveu: “Nossa família estava desesperada. Cada dia de sua ausência era difícil de suportar. A gentileza, o cuidado e o esforço de vocês para garantir seu retorno seguro foram tão grandes e tão avassaladores que nos deixaram sem palavras”.
Combate ao estigma e à discriminação
Desde que foi registrada como uma organização sem fins lucrativos, em 1991, a Shraddha enfrenta desafios – de processos judiciais a dificuldades na reintegração de pacientes a suas famílias. Naquele ano, por exemplo, uma mulher e o filho de cinco anos foram levados aos cuidados de Vatwani depois que a encontraram carregando nos braços uma segunda criança, que estava morta e já em estado de decomposição. Após alguns meses, quando sua saúde melhorou, a mulher disse a Vatwani que era de Baroda, uma cidade no estado de Gujarat, no oeste da Índia. Ele a levou para Baroda, mas ninguém a reconheceu. Incapazes de localizar a família, a mulher e o filho residem na Shraddha até hoje.
A experiência, diz Vatwani, “me colocou frente a frente com a realidade de que as mulheres na Índia rural são com frequência tão analfabetas que, exceto pelo nome de sua aldeia, não têm ideia de onde vêm realmente. Isso ainda dificulta nossos reencontros, 30 anos depois”.
A Shraddha ganhou atenção pública quando um proeminente professor da Escola de Arte Sir J. J. em Mumbai foi resgatado e tratado em 1993. Para expressar sua gratidão, alunos e professores organizaram uma exposição com 141 artistas de todo o mundo. A mostra arrecadou US$ 22.357 para a organização, que os Vatwani usaram para comprar um terreno no norte de Mumbai a fim de construir uma unidade de 20 leitos com a ajuda de profissionais voluntários e assistentes sociais. Antes de sua inauguração em 1997, no entanto, moradores locais exigiram que a Shraddha deixasse a vizinhança, por medo de que estivessem trazendo “elementos mentalmente perturbados” para a comunidade, diz Vatwani.
Os moradores “ameaçaram fisicamente a mim e a minha esposa, fizeram protestos, espalharam faixas enormes por todo o bairro e, em uma ocasião, cerca de cem pessoas invadiram as instalações, cercaram minha esposa e nos insultaram aos gritos. Na confusão, ela foi jogada no chão”, lembra o psiquiatra. Os moradores então entraram com duas petições contra a fundação. Felizmente, o Tribunal Superior de Mumbai rejeitou ambas as ações.
Embora a saúde mental continue estigmatizada na Índia, filmes, livros e várias organizações focadas na educação sobre saúde mental catalisaram uma mudança cultural. A Shraddha não enfrenta mais tanta resistência quanto na década de 1990 e, no ano passado, até estabeleceu uma segunda unidade de 14 leitos na cidade de Nagpur, no centro da Índia.
Vatwani diz que a sociedade indiana por fim se abriu para a causa da população em situação de rua com doenças mentais. “A história é testemunha de que a mudança na sociedade é de fato um processo muito, muito lento. Mas a maré dá sinais de que está mudando e algum socorro parece ao alcance das pessoas com doenças mentais nas ruas”, conclui.