Repensar a perpetuidade para investir no presente

Em meio a uma crise, como as fundações podem justificar que a perpetuidade continue sendo uma meta? Aumentar as doações caminha lado a lado com uma abordagem de filantropia baseada na confiança, que prioriza o apoio a nossos parceiros 
Ilustração de Brian Stauffer

Em um momento de graves ameaças ao nosso trabalho e às nossas comunidades, doações devem ser motivadas pelas necessidades do momento, não pelo desempenho dos nossos ativos. Se nós, do setor filantrópico, estamos comprometidos em oferecer aos nossos parceiros o apoio do qual precisam, não podemos nos ater à tradicional parcela destinada aos repasses filantrópicos.

Em muitos aspectos, a ameaça que enfrentamos agora é sem precedentes: o atual governo dos Estados Unidos tem mostrado que está disposto a usar o financiamento e o status de isenção fiscal de organizações sem fins lucrativos como armas de coerção contra todos, desde instituições de pesquisa até grupos de defesa dos direitos de imigrantes. Já perdemos trabalhos e recursos essenciais.

Mas não precisamos voltar muito no tempo para encontrar um bom paralelo. No início da pandemia de covid-19, financiadores se viram diante do desafio de apoiar prioridades contínuas ao mesmo tempo que enfrentavam uma crise desestabilizadora que exigia novas intervenções urgentes. Em resposta, nós, do Woods Fund Chicago, fizemos duas mudanças radicais na forma como destinamos recursos a nossos parceiros: passamos a adotar um modelo de filantropia baseada na confiança e aumentamos significativamente nossos repasses.

Uma ética da responsabilidade fiscal

Quando a covid-19 começou a se espalhar, percebemos que o ecossistema de mobilização comunitária e advocacy que financiamos precisaria de ainda mais apoio financeiro. Historicamente, mobilização comunitária e advocacy são subfinanciados, recebendo menos de 3% dos recursos filantrópicos. Durante a pandemia, essas organizações assumiram também o trabalho adicional de liderar esforços de ajuda mútua em suas comunidades, ao mesmo tempo que – assim como todos nós – se esforçavam para se adaptar a um novo cenário de riscos e trabalho remoto. Ficou claro que não poderíamos apoiar nossos parceiros de forma adequada sem aumentar nossas doações. 

Como muitas fundações, nossa política de investimentos (IPS, na sigla em inglês) orientava nossos gestores a manter os ativos da instituição em perpetuidade. Isso significava que éramos uma fundação que repassava, anualmente, 6% de nosso fundo patrimonial. Mas em 2020, nosso conselho decidiu operar fora da IPS e começar a aumentar os repasses. Subimos para 7% em 2020, 7,5% em 2021, 8% em 2022, 11% em 2023, 13% em 2024 e 14% em 2025.

A responsabilidade fiduciária costuma ser usada para garantir a proteção do patrimônio das fundações, com o objetivo explícito da perpetuidade. Contudo, em uma crise, como podemos justificar manter a perpetuidade como uma meta? A definição restrita de responsabilidade fiduciária que orienta a maioria de nossas políticas de investimento tem um custo: o enfraquecimento de uma ética mais ampla de responsabilidade fiscal – aquela que implica agir quando mais importa e não recuar, fortalecendo comunidades ao colocar os fundos patrimoniais para trabalhar agora, em vez de guardá-los para um futuro incerto.

Passamos a concentrar nossos esforços em fortalecer o ecossistema de mobilização e advocacy, adotando um novo entendimento sobre o que significa ser financeiramente responsável. Aumentamos os valores das doações a parceiros já existentes, de US$ 15 mil para US$ 35 mil e de US$ 35 mil para US$ 50 mil, e começamos a implementar subvenções plurianuais. Também ampliamos nosso portfólio com foco nas nossas lacunas de financiamento, aumentando o apoio a iniciativas lideradas por pessoas não brancas. Em vez de manter e expandir nosso fundo patrimonial com o intuito de perpetuá-lo, estamos colocando esses recursos para trabalhar agora, em cumprimento de nossa responsabilidade fiduciária e ética com as comunidades não brancas de Chicago.

Não podemos preservar nossos fundos patrimoniais à custa da sobrevivência dos nossos parceiros. Se não agirmos com coragem agora, precisamos perguntar: a que princípios estamos servindo?

Como conseguimos bancar isso? Em 2020, nosso conselho decidiu investir o retorno total dos ativos em nossos parceiros, em vez de reinvestir uma parte para aumentar o fundo patrimonial. Essa decisão nos proporcionou uma abordagem flexível à medida que as circunstâncias mudam: em 2027, retornaremos a um repasse de 11%. Como sabíamos que tínhamos essa flexibilidade, o repasse de 14% neste ano nos permitiu manter firmes nossos compromissos e oferecer apoio essencial aos parceiros que enfrentam cortes de financiamento governamental nos Estados Unidos.

Esse processo de reformulação exige abrir mão, em certa medida, da ideia de perpetuidade institucional, mas sustentabilidade e doações ousadas não são mutuamente excludentes – provamos que elas podem andar juntas. Ao estruturar o aumento dos repasses e a concessão de subvenções plurianuais, ampliamos nosso planejamento financeiro, criando projeções de longo prazo para garantir que pudéssemos manter nossos compromissos.

Confiança como princípio

A segunda grande atitude que tomamos foi aprofundar nosso compromisso com a filantropia baseada na confiança.

O Woods Fund Chicago reconhece o papel fundamental das organizações de base na construção de movimentos, e esse entendimento orienta nosso compromisso com a filantropia baseada na confiança e com o fortalecimento institucional. O aumento dos repasses nos permitiu responder tanto às necessidades de nossos parceiros como às demandas do ecossistema mais amplo de mobilização e advocacy em Chicago. De forma decisiva, passamos a destinar 95% de nosso portfólio a subvenções plurianuais de custeio geral.

Essas mudanças, voltadas a romper a dinâmica de poder historicamente desigual entre a filantropia e os parceiros apoiados, tornaram nossas doações mais eficazes. Os recursos de custeio geral permitem que as organizações que apoiamos mantenham agilidade diante de contextos em transformação. Durante a pandemia de covid-19, nossos parceiros de mobilização comunitária passaram a atuar em esforços de ajuda mútua, indo aonde estavam as maiores necessidades, mas foram limitados por financiamentos que não acompanhavam o ritmo de seu trabalho.

Como ex-líder de uma organização sem fins lucrativos, conheço bem a ansiedade provocada pela preocupação de não saber se o financiamento será renovado. Subvenções plurianuais permitem que os parceiros planejem e se comprometam, em vez de forçar seu trabalho a um ciclo contínuo de solicitações de financiamento e relatórios de prestação de contas. Além disso, a transição para subvenções plurianuais e para um único ciclo anual de concessões permitiu que nossos funcionários aprofundassem as relações com os parceiros de seu portfólio. Em vez de gastar tempo lendo pedidos de renovação de financiamento e realizando visitas de campo, nossos gestores de programas dialogam com esses parceiros para saber como as coisas estão. Essas conversas nos proporcionam uma compreensão muito mais profunda dos desafios e barreiras enfrentados não apenas por organizações individuais, mas por todo o ecossistema. Assim, temos os dados necessários para orientar mecanismos adicionais de apoio.

Agir com coragem

A crise está posta: cerca de 25% das organizações apoiadas pelo Woods Fund Chicago perderam financiamento governamental e tiveram que reduzir seus serviços neste ano. Ainda assim, esse número não revela toda a dimensão dos impactos causados tanto pelo fim dos recursos do período da covid-19 – que afetou a maioria de nossos parceiros – como pelos efeitos em cascata da realocação de recursos por parte de outros financiadores: outros 25% de nossos parceiros foram informados de que fundações estão restringindo verbas ou mudando suas prioridades. Nossos parceiros e comunidades precisam de um apoio arrojado, que combine intervenções emergenciais e fortalecimento estrutural de longo prazo. Para enfrentar este momento, precisamos aumentar nossas doações e rejeitar uma definição limitante de responsabilidade fiduciária.

Após décadas de desinvestimento no bem-estar nacional, as organizações sem fins lucrativos se tornaram a verdadeira rede de proteção dos Estados Unidos. Diante de um governo federal que se afastou de suas obrigações para com as populações mais vulneráveis do país, é o setor sem fins lucrativos que tem trabalhado para garantir que nossas comunidades possam prosperar e que assumiu a responsabilidade de lutar por justiça para todos.

Enquanto nossos vizinhos mais vulneráveis são alvo de ataques, as organizações mais capacitadas para apoiá-los estão sendo forçadas a reduzir suas atividades ou até fechar as portas. Se acreditamos em nossos parceiros, não podemos preservar nossos fundos patrimoniais à custa da sobrevivência deles. Se não agirmos com coragem agora, precisamos nos perguntar: a que princípios estamos servindo?