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Quando a comunidade cresce junta

Para dar certo, a transformação de comunidades marginalizadas precisa levar em conta as características do lugar, ter a participação ativa da população local e abrir caminhos inovadores para recursos externos. Bonton Farms, nos Estados Unidos, é um exemplo desse tipo de iniciativa

Por Seth D. Kaplan


Por que publicamos este texto

O artigo apresenta um modelo alternativo e replicável de desenvolvimento comunitário baseado no fortalecimento de vínculos internos e na criação de conexões estratégicas com instituições externas. O modelo de Bonton oferece lições sobre o potencial de soluções enraizadas no território para articular bem-estar, geração de renda, inclusão e protagonismo comunitário.


 

Na primeira vez em que foi a Bonton, Daron Babcock não tinha nenhum plano em mente. Era 2011 e Babcock estava à procura de um novo rumo após dez anos difíceis. Depois da morte da esposa, aos 31 anos, ele havia lutado contra a depressão e a dependência química – e se jogado no trabalho e na criação dos dois filhos. Foi nesse período que conheceu Bonton, um bairro de Dallas, no estado do Texas. No começo, era voluntário em um projeto cristão chamado BridgeBuilders, que ajudava homens em busca de uma transformação de vida. 

Ilustração de Jason Holley

Depois de um tempo, Babcock sentiu-se chamado a deixar sua vida confortável para se dedicar a Bonton. Quando os filhos se mudaram (um foi para a faculdade, outro para a Marinha), vendeu sua casa em um bairro nobre nos arredores de Dallas, deixou o cargo bem remunerado em uma empresa de capital privado e foi dividir uma casa do programa habitacional Habitat for Humanity em Bonton com um ex-presidiário. Segundo ele, só assim seria possível “compartilhar da vida” daquela comunidade.

Babcock logo percebeu o pouco que sabia a respeito do lugar e de seus habitantes. Quase todos os moradores tinham passagem pela prisão e, embora quisessem trabalhar, problemas de saúde, falta de transporte e antecedentes criminais eram um entrave.

“Até então, não tinha tido nenhum contato com esse tipo de realidade, era completamente ignorante”, diz Babcock. “Não sabia o impacto que a pobreza tem na mobilidade e descobri que há comunidades inteiras de pessoas adoecendo e morrendo simplesmente por não terem acesso a comida.”

Babcock decidiu criar um projeto agrícola para atender o bairro, uma iniciativa que com o tempo se converteu em muito mais que isso. A Bonton Farms, instituição que acabou fundando, serviu de catalisadora para o desenvolvimento de outras instituições e atividades para a melhoria da comunidade e seus moradores.

A organização que Babcock ajudou a criar transformou a dinâmica social em Bonton. Hoje, os moradores têm um espaço para socializar, trabalhar, aprender, obter renda e fazer serviço voluntário. O objetivo da Bonton Farms é muito mais que produzir alimentos – trata-se de construir uma rede de apoio sólida na própria comunidade, munindo cada vez mais indivíduos de habilidades e conexões para assumir um papel de liderança e, isso feito, servir de ponte entre a comunidade e instituições externas para promover o desenvolvimento da área. Criar uma parceria entre aquilo que a comunidade tem a oferecer e recursos de fora é muito mais eficaz para quem busca sair da pobreza ou superar um histórico de criminalidade e dependência química do que a oferta isolada de serviços.

“Soluções fragmentadas de transporte, moradia ou acesso a alimentação saudável sempre deixam a desejar. Já quando mudamos o enfoque e investimos na autonomia das pessoas e da comunidade, há esperança”, sustenta Daniel Herrig, um engenheiro local de mobilidade urbana. “Há um novo horizonte para Bonton à medida que empregos e investimentos vindos de dentro começam a revitalizar o bairro.”1

Diversos fatores podem levar uma localidade a se tornar desconectada e isolada, com instituições e vínculos sociais frágeis ou inexistentes. Às vezes, isso é circunstancial, como quando uma cidade industrial perde uma empresa da qual dependia – e, junto com ela, seus principais laços econômicos e sociais. Em outras, a desconexão é intencional, resultado de um legado de segregação. Era o caso de Bonton. Localizado a cerca de seis quilômetros do centro de Dallas, Bonton foi desde o início um exemplo de como um bairro pode oprimir as pessoas. Hoje, graças à Bonton Farms, virou um modelo de como esses lugares – e seus moradores – podem ser transformados.

Várias formas de exclusão

Pensado e construído para trabalhadores negros, Bonton surgiu no início do século 20 em uma área de várzea do rio Trinity. Foi planejado não só para ser alagado quando o rio transbordasse, mas para servir de barreira natural contra a inundação de outras áreas da cidade. As próprias comportas que evitavam cheias em Dallas foram estrategicamente posicionadas para reter a água em Bonton – só na década de 1990 foi construído um dique para proteger o bairro. Na década de 1960, a construção de uma rodovia isolou ainda mais a área, agravando problemas como a criminalidade e a deterioração urbana. 

Com a redução da segregação racial na região, quem teve condições ou oportunidade mudou-se de Bonton.2 O resultado, como destacou um plano de reurbanização em 2005, foi que Bonton ficou “isolado do resto da cidade, cercado por rodovias, trilhos de trem e diques. A falta de desenvolvimento e atenção ao bairro deixou a área abandonada à própria sorte por mais de 40 anos, sem nenhum investimento de capital, tempo e esforço externos. […] Seu isolamento, tanto físico como simbólico, fez com que gradualmente desaparecesse do radar de Dallas”.3

O bairro viu a pobreza, a violência e a drogadição se alastrarem. Em meados da década de 2000, cerca de metade da população do bairro vivia abaixo da linha da pobreza; a renda per capita, de US$ 24.445 ao ano, era de apenas dois quintos da média da cidade.4 O cotidiano dos moradores era marcado pela criminalidade, pela ausência de estrutura familiar e pela influência de maus exemplos.

“Crescer em Bonton era como crescer no Afeganistão ou no Paquistão”, lembra Danny George, que foi criado no bairro e voltou para trabalhar como gerente na Bonton Farms. “Todo dia alguém era morto a tiros. Minha mãe usava o próprio corpo para me proteger quando o tiroteio começava.”5

O isolamento do bairro se refletia no dia a dia dos moradores. O transporte público era escasso e o pouco comércio local existente só vendia bebidas alcoólicas e alimentos ultraprocessados, caros e muitas vezes com data de validade vencida. Praticamente dois terços da população não tinha acesso fácil a supermercados com alimentos frescos a preços acessíveis, pois a maioria não possuía carro. Essa realidade impactava diretamente na saúde da população: em meados da década de 2000, índices de doenças cardiovasculares (86%), acidentes vasculares cerebrais (63%) e câncer (71%) entre moradores da área eram muito superiores à média da cidade.6 Índices de obesidade infantil, diabetes, doenças cardíacas, câncer e outras enfermidades eram mais que o dobro do restante de Dallas.

Ao se instalar em Bonton, Babcock teve contato direto com os desafios que a população enfrentava – cada um deles uma forma de exclusão. “As populações vulneráveis que queremos apoiar e fortalecer vêm, em grande parte, de lugares projetados não só para nos separar uns dos outros, mas, de modo ainda mais cruel, para afastá-las de bens, serviços, recursos e oportunidades” que para outros indivíduos são garantidos, escreveu.7 Suas observações, nascidas do convívio diário com moradores do bairro, inspiraram e moldaram a visão de trabalhar junto com eles para combater o isolamento de Bonton e transformar aos poucos a dinâmica do lugar.

Foco no território da comunidade

Cientistas sociais como Raj Chetty, William Julius Wilson, Robert Sampson e Patrick Sharkey já demonstraram que um bairro em condições precárias pode afetar negativamente todos os que vivem nele.8 A concentração de problemas sociais em um mesmo lugar tem um efeito cascata que torna cada problema ainda mais difícil de solucionar: a rede de ensino não aprimora o desempenho escolar, o sistema de saúde não melhora a saúde da população, a polícia não torna as ruas mais seguras. 

A despeito do comprovado efeito de vizinhança, formuladores de políticas, filantropos e organizações sem fins lucrativos há muito encaram a pobreza de forma individualizada, buscando aliviar a carência material pessoa por pessoa. Esse modelo resultou em uma abordagem que busca reduzir a pobreza lidando com cada necessidade de forma isolada. Embora alivie certas carências (ao menos no curto prazo), essa abordagem individualizada é incapaz de promover a real e sustentável ascensão de indivíduos, como evidenciado pela queda na mobilidade social, pelo aumento da população em situação de rua e a crescente concentração geográfica da população mais vulnerável nos Estados Unidos. Apesar de altos dispêndios federais e estaduais no combate à pobreza, o número de zonas urbanas com concentração de pobreza no país mais que triplicou desde 1970 e a quantidade de indivíduos de baixa renda que vivem nesses locais mais que dobrou.9

O setor sem fins lucrativos tem buscado aumentar a eficiência desse modelo por meio de iniciativas inspiradas na abordagem do impacto coletivo. Essa estratégia visa melhorar a prestação de serviços com uma melhor coordenação de instituições e organizações relevantes, incluindo orgranizações sem fins lucrativos, entidades comunitárias, governo e empresas. O modelo do impacto coletivo busca estabelecer uma meta comum para os envolvidos, um sistema único para mensurar resultados e canais de comunicação contínuos. Uma organização central de apoio normalmente fica responsável por gerenciar e coordenar todas as partes envolvidas.

Embora possam trazer resultados concretos, iniciativas de impacto coletivo têm limitações, especialmente se não forem complementadas por uma estratégia voltada a melhorar a localidade como um todo. O foco na prestação de serviços leva o modelo do impacto coletivo a enfatizar a redução de carências específicas. Métricas adotadas podem demonstrar progresso ainda que as condições do lugar permaneçam as mesmas. Um exemplo são iniciativas de impacto coletivo voltadas a aumentar a mobilidade social, que buscam garantir o sucesso de cada criança na escola e na vida com a colaboração entre diversas organizações e a concentração de esforços em um punhado de indicadores de sucesso. Esse modelo pode, sim, dar mais oportunidades a muitos jovens – mas também aumentar a probabilidade de que migrem para outros lugares, privando a comunidade de sua liderança e de recursos futuros. Além disso, o contexto no qual o jovem está inserido (violência e relações sociais frágeis, por exemplo) pode impedir que aproveite essas oportunidades. Outro risco é certas organizações se concentrarem excessivamente em métricas específicas enquanto outros aspectos, como segurança e estabilidade familiar, continuam a se deteriorar.

Ilustração de Jason Holley

Em contrapartida, organizações que trabalham com foco no território (e não só no indivíduo) buscam alterar condições estruturais do ambiente no qual as pessoas vivem, partindo do princípio de que, ao melhorar o contexto socioeconômico, todos serão beneficiados simultaneamente. É o caso da Purpose Built Communities (PBC), organização que atua de forma holística na revitalização de bairros historicamente desassistidos e se sustenta em quatro pilares: moradia de qualidade, educação voltada à inserção no mercado de trabalho, bem-estar comunitário e dinamismo econômico. O objetivo é transformar bairros marginalizados em comunidades prósperas e autossustentáveis. Essa estratégia parte da compreensão de que não é possível atacar problemas de forma isolada quando todos estão interligados: a educação de baixa qualidade e a falta de empregos contribuem para altos índices de criminalidade; o crime afasta o comércio e possíveis fontes de emprego; o isolamento e a falta de oportunidades, por sua vez, podem levar ao êxodo dos indivíduos mais capacitados da comunidade. Para solucionar qualquer desses problemas é preciso abordar simultaneamente os demais.

Modelos baseados na comunidade ou no território têm mais impacto porque agem diretamente sobre fatores sociais de uma determinada localidade, como as relações no interior das famílias e entre famílias, com localidades vizinhas e instituições dentro e fora da comunidade. Com isso, buscam atacar os fatores que impedem o desenvolvimento de certas áreas e melhorar as condições de todos os moradores ao mudar o ecossistema em que vivem. Além disso, o foco no território busca catalisar mudanças autossustentáveis, reduzindo a necessidade de intervenções futuras e permitindo que comunidades marginalizadas cresçam e prosperem. Isso posto, é uma transformação ambiciosa e mais difícil de promover, pois requer uma ação multifacetada e de longo prazo – algo em direto conflito com o modelo de ação de muitos órgãos públicos e entidades sem fins lucrativos.

Nesse sentido, o caso de maior sucesso na abordagem territorial, a PBC, não tem como chegar à maioria dos lugares. Nos EUA, a PBC deu bons resultados em 25 comunidades de 14 estados, mas sua rede está concentrada no Meio-Oeste e no Sul, atingindo uma pequena parcela de cerca de 825 áreas urbanas em situação precária.10 O modelo da PBC enfrenta quatro grandes desafios: bairros muito isolados de zonas dinâmicas das cidades, o que dificulta a transformação; atores essenciais (poder público, organizações influentes) pouco dispostos a colaborar e a remanejar recursos; falta de verbas para viabilizar iniciativas; e bairros em regiões onde lideranças locais e financiadores simplesmente não priorizam esse tipo de investimento (como no nordeste e no oeste).

Em certos casos, a PBC atrai o interesse de possíveis parceiros locais, mas não consegue convencer atores cruciais de setores como o habitacional, o educacional e o imobiliário a adotarem, todos, uma visão voltada à localidade como um todo. E, quando é assim, a organização opta por não seguir adiante. “Nosso sucesso até hoje dependeu em grande medida da capacidade de fomentar esse tipo de colaboração”, diz David Edwards, ex-CEO da PBC. “Quando tivemos de abandonar iniciativas foi, na maioria das vezes, pela incapacidade de convencer algum ator essencial a se unir ao esforço.”11 Logo, ainda que acreditemos na eficácia e na necessidade de um modelo com foco no território, como o da PBC, em muitos locais vulneráveis ou áreas sem acesso direto a centros econômicos dinâmicos pode ser impraticável reproduzir a abordagem.

O modelo da Bonton Farms

Iniciativas de combate à pobreza precisam, portanto, de um outro modelo focado no território que abranja mais bairros, tanto em áreas suburbanas como rurais. Se tivesse como foco combater o isolamento – ou seja, a fragilidade ou ausência de laços sociais e instituições de apoio –, tal modelo não se restringiria apenas às localidades mais vulneráveis, pois o isolamento afeta um número crescente de comunidades. A Bonton Farms traz uma visão desse novo modelo. “Há uma tendência de tratar as pessoas como se a condição humana se resumisse a um único problema”, diz Babcock. “E como se, resolvido esse problema, tudo melhoraria. Mas, assim como uma semente, o ser humano precisa de um ecossistema no qual todas as partes atuem em simbiose para que o todo prospere.”12

O modelo da Bonton Farms demonstra a importância de dois tipos de instituição. A primeira é representada pelos “vínculos” no interior da própria comunidade. Esse capital é formado por famílias sólidas, redes robustas entre famílias, microinstituições informais (como grupos de recreação, encontros de vizinhos, redes de vigilância comunitária, ações de voluntariado), que surge de forma espontânea e se reforça mutuamente, promovendo apoio e cooperação. E também inclui associações e instituições locais (igrejas, pequenos negócios, grupos cívicos) formadas por moradores e voltadas a necessidades da comunidade.

A segunda, que chamamos de “pontes”, exige instituições e lideranças locais fortes e capazes de estabelecer elos e dialogar com grupos sociais influentes e organizações maiores (não só órgãos públicos, mas entidades que ofereçam acesso a oportunidades econômicas, crédito, saúde e educação). Em geral, estão fora do bairro. Quanto mais o lugar estiver conectado a esses atores e organizações – por vínculos sociais, transporte ou acesso –, maior será seu capital social “ponte”.

Nesse modelo, embora mudanças materiais possam ser necessárias, o objetivo maior é fortalecer a comunidade reforçando seu capital social interno (vínculos) e seu capital social externo (pontes). A Bonton Farms mostra como isso pode ser feito. Diferentemente da PBC (criada por uma grande incorporadora imobiliária), a Bonton Farms surgiu de forma bem mais orgânica, de uma série de iniciativas pontuais voltadas a resolver problemas da comunidade e incrementar seu capital social. Enquanto a PBC segue um plano predefinido, a Bonton Farms tem um processo que parte de dentro para fora, focado em colaborar com os moradores para identificar desafios e inovar para criar instituições e conexões necessárias para enfrentá-los. A estratégia é mais gradativa do que uma transformação em larga escala, embora o objetivo final seja parecido. A ênfase no engajamento também produz uma postura diferente. Ainda que não constitua uma nova categoria, o modelo certamente é mais flexível e pode ser adaptado a uma variedade maior de comunidades.

Cultivar laços 

Babcock começou o trabalho dentro do próprio bairro, cultivando vínculos com moradores, ampliando sua atuação de forma gradual e buscando ouvir, da própria comunidade, quais desafios a área enfrentava. “Morar na comunidade me transformou profundamente”, conta. “Sem essa proximidade física, não teria tido oportunidades cruciais de aprendizado.”13

No início, Babcock tinha apenas uma horta no quintal. Depois, começou a criar galinhas. Alguns logo perceberam o que estava fazendo e vieram oferecer ajuda. A Habitat for Humanity foi a primeira, doando dois terrenos na periferia do bairro para que ele ampliasse a área de cultivo. Depois veio a prefeitura, que cedeu outros seis lotes contíguos, elevando a área total a pouco mais de 8 mil metros quadrados. À medida que conhecia os vizinhos – a começar por gente como David Richie, que encontrou numa reunião do BridgeBuilders –, Babcock passou a colaborar com eles para atacar problemas maiores do bairro. A certa altura, Fred Treffinger, dono de uma concreteira que tinha lido sobre a iniciativa em um jornal, decidiu doar um lote de pouco mais de 80 mil metros quadrados em frente à empresa para a instalação de uma segunda área de cultivo, agora chamada Bonton Farm Extension. Ao ver o impacto do projeto, a família Treffinger comprou e doou o lote vizinho, do mesmo tamanho que o anterior, dobrando a área da nova sede. Com essa terra toda, Babcock criou uma das maiores fazendas urbanas do país. A Bonton Farms cultiva uma variedade de hortaliças (tomate, berinjela, couve, pimentão), produz carne suína, caprina e de frango, leite e queijo de cabra, além de ovos. Hoje, abastece restaurantes de Dallas e o centro de treinamento do time de futebol americano Dallas Cowboys.

Com essa estrutura, a Bonton Farms conseguiu trazer um impacto muito maior do que entidades dedicadas a prestar serviços de forma isolada, sem envolvimento real com a comunidade. A fazenda urbana vende ou troca alimentos com moradores, que com isso têm acesso a uma alimentação mais saudável. Além disso, emprega pessoas que teriam dificuldade de conseguir trabalho fora dali, ajudando-as a ganhar experiência. Com o apoio de um de seus parceiros de outra área da cidade (uma lista que só cresce), ajudou moradores a abrir uma produtora de mel, a Bonton Honey. Quando ficou evidente que a população local precisava de mais serviços no bairro, a Bonton Farms criou uma feira de produtores e uma cafeteria. Virou uma comunidade dentro da comunidade, atraindo até gente de fora.

“A comunidade está por toda parte, não importa se estou no trabalho ou em casa”, diz Lance Carter, um gerente da Bonton Farms que, no início, nem sequer podia provar a própria identidade, pois tinha perdido todos os documentos devido à dependência química. “Estou rodeado pela comunidade 100% do tempo, e aí o vício não tem espaço para vencer.”14

O que Babcock fez foi radicalmente diferente de uma iniciativa anterior de Dallas, que tinha acenado com incentivos econômicos para atrair mercearias a uma das mais de 40 zonas da cidade classificadas pelo Departamento de Agricultura do país como “desertos alimentares”. Mas a ideia – que buscava sanar uma deficiência material de forma isolada – fracassou. Para as mercearias grandes o bastante para tirar partido do programa, a conta simplesmente não fechava. Não houve adesão ao projeto.

Assim como uma modificação no ambiente afeta o crescimento das plantas, mudar a natureza das relações pessoais com as instituições transforma as relações dos moradores entre si e com a sociedade de modo geral. Todo lugar tem gente com potencial, mas nem sempre oferece as condições necessárias para que esses indivíduos floresçam e assumam papéis de liderança ou mesmo permaneçam ali. Tornar o ambiente melhor não só contribui para a permanência das pessoas, mas cria oportunidades para que liderem. Sem isso, há uma fuga em busca de oportunidades melhores.

Dentro da comunidade, a abordagem pessoal e relacional de Babcock foi uma novidade se comparada ao que entidades sem fins lucrativos vinham fazendo até então, tentando ajudar com prestação de serviços. Babcock foi viver e trabalhar lado a lado com os moradores para reconstruir o tecido social por meio do exemplo, no convívio diário. O estabelecimento de vínculos não só ajuda as pessoas a avançar, mas serve de proteção contra uma série de riscos. Com o tempo, ao ver os resultados na própria vida e na dos demais, outros moradores aderiram ao projeto, reforçaram o exemplo e incentivaram ainda mais gente a assumir um papel de liderança.

Babcock também organizou diversas atividades para congregar as pessoas, de modo a fortalecer os laços e a confiança entre elas. Embora muitas dessas ações não fossem de natureza religiosa, ele passou a exercer sua fé cristã de uma nova maneira, mostrando por atos e palavras como viver em comunhão, enquanto frequentava as igrejas locais e buscava seu apoio. Moradores de Bonton se reúnem regularmente em grupos de oração e aprendizado, o que propicia um clima de confiança e permite conversas mais francas na hora de agir juntos para resolver problemas concretos. O tamanho reduzido da comunidade foi importante para criar relacionamentos mais próximos. Em um bairro pequeno, com apenas 5,5 mil habitantes, esse tipo de engajamento teve impacto real em normas, expectativas e comportamentos coletivos. Laços mais fortes possibilitam que moradores assumam um papel ativo na segurança do bairro e colaborem para melhorá-lo. Doris Young, que trabalha na Bonton Farms e cuja família vive no bairro há várias gerações, relembra como eram as coisas antes de 2010: “Tinha de tudo – drogas, assassinatos, prostituição na rua. Qualquer atividade ilegal que você imaginasse, Bonton tinha. Hoje, nossa comunidade está se reerguendo”.15

Pontes para o mundo lá fora

Babcock, Bonton Farms e as lideranças locais estreitaram seus vínculos. Com o tempo, já fortalecida, a comunidade conseguiu melhorar seu acesso à região metropolitana de Dallas e ao mundo em geral por meio de pontes que ligavam o bairro a instituições essenciais de saúde, bem-estar, moradia, educação, serviços financeiros e econômicos. Babcock e a equipe da Bonton Farms descobriram e cultivaram, nas palavras dele, a capacidade “dos que estão mais próximos do problema de identificar suas verdadeiras causas e obstáculos para que, juntos, pudéssemos criar soluções inovadoras, viáveis e reproduzíveis para substituí-los por instrumentos realmente eficazes”.16 

A princípio, Babcock tentou resolver por conta própria o problema de mobilidade dos moradores, usando uma van para levar e trazer quem tivesse compromissos em lugares não atendidos pelo transporte público. Logo percebeu, no entanto, que isso seria insuficiente e que a melhor solução seria trazer para o bairro instituições que até então eram ausentes na área. Estar presente fisicamente e estabelecer relações com uma comunidade tem muito mais impacto do que simplesmente prestar um serviço a distância. E aquele bairro carecia de tudo: escolas próprias, supermercados, unidades de saúde, instituições financeiras.

Muitas pessoas ajudaram Babcock a refletir sobre as dificuldades dos moradores de Bonton, e Daris Lee, hoje gerente de saúde e bem-estar da Bonton Farms, teve um papel importante nesse processo. “Foi, provavelmente, quem mais contribuiu para tudo o que aprendi, pois estive com ele no turbulento período em que saiu da prisão e apresentava um quadro avançado de insuficiência renal devido a uma hipertensão não diagnosticada”, contou Babcock. Condenado a 16 anos de detenção por roubo e posse de drogas, Lee cumpriu quase seis anos e saiu com uma dívida de US$ 37 mil. Era um fardo tão grande que, como ele mesmo afirma, às vezes achava que “teria sido melhor continuar preso”.17 Sobre Babcock, Lee diz: “Tudo o que a gente faz na fazenda começa pelas sementes. [Ele tem] a capacidade de enxergar a semente nas pessoas […], de ver seu potencial, não o que fizeram ou o que já viveram, mas aquilo que podem vir a ser”.18 O sentimento é recíproco: “Nós nos vemos um ao outro como modelo, para somar, aprender e crescer juntos”, diz Babcock. “Sou grato por essa amizade.”

Com moradores como Lee, Babcock aprendeu quais instituições eram as mais importantes e que obstáculos impediam as pessoas de acessá-las. Com a Bonton Farms e o apoio de lideranças locais, buscou superar cada barreira. Muitas vezes, isso significou buscar parceiros externos que pudessem ajudar o bairro e criar soluções inovadoras para atender às necessidades específicas da comunidade.

Em geral, bairros vulneráveis são desassistidos porque instituições públicas e privadas marginalizam a área e sua população, que não recebem o apoio de que precisam para progredir. O transporte público, por exemplo, não é prioridade em uma cidade como Dallas, projetada para o automóvel – um bem que muita gente de baixa renda não possui. O acesso a serviços públicos é difícil, seja pela distância, seja por exigir um tempo e um conhecimento que essa população tampouco tem. As instituições financeiras, por sua vez, dificultam o uso de seus serviços por moradores de baixa renda com a cobrança de taxas e a verificação de antecedentes. As pontes para esses recursos, portanto, dependem da localização física dos serviços, da disponibilidade de transporte, do tratamento dispensado a quem consegue se deslocar até eles e até de normas que regulam o acesso às instituições.

A experiência de Babcock mostra que, para atacar o isolamento de um lugar, em geral é preciso questionar velhas ideias sobre como se dá a inovação. O que funciona em regiões mais prósperas pode ser contraproducente em zonas mais pobres. Um exemplo disso são normas que em uma região mais rica da cidade podem até fazer sentido, mas que claramente dificultam a vida em lugares como Bonton. Babcock topou com esse tipo de entrave logo que se dispôs a morar no bairro. Já de início, sua tentativa de comprar uma casa modesta em Bonton foi frustrada. Muitas vezes, porque era difícil estabelecer a posse do bem (devido à burocracia intransponível envolvendo imóveis em processo de execução hipotecária) ou porque a venda era restrita à população de baixa renda (um jeito de manter o lugar pobre). Ele foi aprendendo a superar vários desses empecilhos legais. Para isso, combinou sua rede de contatos dentro no bairro, a tarimba profissional e o status econômico que trazia de fora. Antes de a comunidade lutar por mudanças nas normas do município, era ilegal vender produtos cultivados na propriedade de um morador; um trabalhador do primeiro sítio da Bonton Farms levou uma multa de US$ 70 por isso.

As pontes se materializaram na forma de instituições educacionais capazes de impulsionar a população. A rede de ensino da cidade não trabalhava para atender às necessidades específicas do bairro. Tinha inclusive fechado a escola primária de Bonton como parte de um processo maior de consolidação. Babcock trabalhou com lideranças locais para inaugurar uma pré-escola, fez parcerias com várias organizações em outras zonas da cidade para abrir uma escola particular totalmente subvencionada e focada em necessidades das crianças do bairro (que chegam com muitos traumas) e para lançar um programa de capacitação profissional para adultos.

Agora, as escolas de Bonton estão investindo no envolvimento dos pais para o fortalecimento de vínculos sociais (estudos mostram que a relação entre pais e filhos e entre pais e escola é crucial para o desempenho escolar). Uma vez que 85% da população masculina do bairro já passou pelo sistema prisional e mais da metade dos moradores não concluiu o ensino médio, não chega a surpreender que as escolas públicas raramente tenham priorizado essa participação.

Em vez de buscar apenas melhorar o acesso da população local a serviços de saúde, a comunidade resolveu criar a poucos metros da fazenda urbana um centro de saúde comunitário, o Bonton Farms Wellness Center. Com inauguração prevista ainda para 2025, o centro vai prestar atendimento médico, organizar eventos sobre saúde, dar aulas de ginástica, nutrição, culinária e prevenção de doenças e aplicar os avanços mais recentes da pesquisa médica para tentar melhorar a saúde local.

Uma vez que a população de baixa renda muitas vezes não é bancarizada, a Bonton Farms está criando, em parceria com instituições bancárias locais e nacionais, um banco comunitário – uma espécie de centro de saúde financeira – para atender a região. A ideia é levar a educação financeira a moradores do bairro (incluindo recuperação de crédito e gestão de dívidas), oferecer pequenos empréstimos e contribuir para a construção de patrimônio com a compra da casa própria e a capacitação para empreender. O objetivo, segundo a filosofia da Bonton Farms, é “criar uma escada para que a pessoa possa ascender o próximo degrau sem riscos e com dignidade”.19 O centro vai substituir agentes abusivos que hoje preenchem essa lacuna com empréstimos consignados, casas de penhor e empréstimos em que o automóvel entra como garantia – modalidades de crédito caras, com condições desfavoráveis e que costumam criar um ciclo de endividamento que pode levar o tomador a perder seus bens. O centro financeiro funcionará no mesmo prédio do centro de saúde – no coração do bairro – e poderá, a certa altura, passar a oferecer serviços bancários convencionais.

A fim de ampliar a oferta de alimentos saudáveis, a comunidade fechou uma parceria com a rede de supermercados Kroger para oferecer entrega gratuita na comunidade. A empresa doou computadores para criar uma central de pedidos e entregas e garantir que qualquer pessoa no bairro tenha acesso aos produtos da rede a preços acessíveis. A entrega é feita uma vez ao dia em um ponto fixo em Bonton, cabendo a cada morador ir lá buscar seu pedido; há também um serviço local de delivery para idosos, mães solo e pessoas com dificuldade de locomoção. Agora que viu o potencial de atender um novo público, a Kroger já planeja ampliar o modelo para outros bairros – e não só de Dallas.

Por último, a Bonton Farms tenta preencher a lacuna deixada pela falta de instituições voltadas à habitação. “Infelizmente, Dallas foi feita para atrair gente com dinheiro, o que significa que não temos soluções inovadoras de moradias bonitas e dignas para quem está na base da estrutura socioeconômica”20, diz Babcock, que trabalhou com lideranças locais para a criação de um modelo totalmente novo de habitação, a chamada Roommate House. Graças a parcerias com bancos e fundos de impacto social, foi possível garantir que moradores tenham acesso a crédito hipotecário com juros baixos, algo impossível até então – e isso sem subsídios públicos. Cada casa de dois quartos tem cerca de 120 metros quadrados e, nos fundos, dois estúdios equipados com banheiro e uma cozinha compacta com chapa elétrica e micro-ondas. Essas unidades, que podem ser alugadas por cerca de US$ 250 por mês, são uma alternativa acessível para locatários e permitem que o proprietário do imóvel tenha uma renda adicional para ajudar a pagar o financiamento de 15 anos e construir um patrimônio. Também foram construídas casas compactas de pouco mais de 30 metros quadrados para serem alugadas a valores baixos, com a meta de criar a Bonton Tiny House Village, uma microcomunidade que possa servir de modelo para cidades do país todo em busca de soluções de moradia acessível. Seu objetivo é que o valor do aluguel não ultrapasse 20% da renda do indivíduo, para incentivar a poupança (o teto para moradias populares no país em geral é de 30% da renda e sua construção depende de subsídios públicos).21 

Todas essas iniciativas de construção de pontes surgiram dos vínculos estabelecidos primeiro na comunidade. E, juntas, transformaram o bairro. Ruas estão mais seguras, serviços e escolas melhoraram, o número de instituições sociais, cívicas e econômicas cresceu consideravelmente. Graças ao custo baixo da moradia, à proximidade do centro da cidade e à existência de uma grande área verde nas redondezas, Bonton está atraindo gente que até então jamais cogitaria morar ali, diversificando o bairro tanto racial como socioeconomicamente. A pobreza vem diminuindo (hoje, está em 28%) 22, taxas de emprego da população estão subindo e o desempenho escolar na rede de ensino tem melhorado. A renda média dos lares dobrou e a parcela de moradores que concluiu o ensino médio passou de 54% para 77%.23 A taxa de imóveis desocupados caiu e o valor dos imóveis está subindo, como demonstram unidades recém-reformadas na região. O valor médio de moradias ocupadas pelo proprietário subiu de cerca de US$ 44 mil em 2005 para mais de US$ 100 mil em 2022.24 Até a imagem de Bonton mudou: de lugar a ser evitado, o bairro passou a ser visto como exemplo a ser seguido, oferecendo lições valiosas para o poder público e outras organizações. Já a Bonton Farms tem hoje um orçamento de US$ 4 milhões e cerca de 50 funcionários. Todo ano, cerca de 10 mil voluntários contribuem para suas atividades.

A mudança começa dentro da comunidade

Modelos de transformação focados na comunidade têm um histórico comprovado de sucesso quando bem executados. Mas, uma vez que cada localidade possui contextos singulares, precisamos de mais abordagens além do modelo PBC para chegar a toda área carente de transformação.

É que o modelo PBC, que busca a transformação por meio de uma estrutura já estabelecida, muitas vezes só pode ser aplicado na presença de condições adequadas, específicas. Já o modelo da Bonton Farms, por ser mais determinado pela vivência e por necessidades reais da população de um lugar, é mais flexível e gradual – e, portanto, mais compatível com um número maior de comunidades. Ao identificar problemas em colaboração com moradores e criar soluções de mercado em parceria com distintos atores – dentro e fora do bairro –, o modelo de Bonton busca soluções que podem ser adaptadas e aplicadas a uma diversidade de contextos.

Na maioria das organizações sem fins lucrativos, programas seguem objetivos definidos internamente. Na Bonton, por sua vez, a filosofia é a de envolvimento da população. A ideia é unir forças para eliminar obstáculos que impedem as pessoas de melhorar sua própria situação e a do bairro. Um aspecto fundamental é que seu modelo busca fortalecer vínculos internos antes de tentar criar pontes com o mundo lá fora. Além disso, enquanto a PBC – bem como a maioria das organizações sem fins lucrativos – tem uma agenda relativamente clara desde o início, a ênfase da Bonton Farms em relacionamentos, em alterar regras e normas do poder público, em criar e ampliar novas instituições e em experimentar faz com que seu progresso seja mais gradual, mas também especialmente útil em locais de difícil acesso que não satisfazem os requisitos necessários para o sucesso da PBC.

O modelo da Bonton também traz lições para outras organizações dedicadas a melhorar a vida das pessoas e também as comunidades onde vivem. Em primeiro lugar, embora governos, filantropos e organizações sem fins lucrativos precisem inovar, o modo como atuam pode acabar atrapalhando, em vez de ajudar. Para haver mudança, é preciso seguir outro princípio da filosofia da Bonton: “Mergulhe fundo, não disperse. Invista em poucas áreas e lute por uma transformação real e autossuficiente, e outras naturalmente se somarão”.25 Pode ser difícil implementar essa visão, pois a filantropia costuma adotar indicadores estreitos de sucesso que priorizam o número de pessoas atendidas e o custo por indivíduo. Em contrapartida, o modelo da Bonton requer um horizonte de longo prazo e métricas baseadas na qualidade das relações entre instituições e a população. Em vez de focar no atendimento de indivíduos, iniciativas de transformação comunitária buscam resolver as causas subjacentes ao isolamento, deflagrando um ciclo virtuoso de progresso que alimenta o desenvolvimento econômico. Com isso, empregos são gerados, moradores passam a ter mais acesso a oportunidades e surgem novas instituições no seio da comunidade.

Segundo, para que a situação de uma comunidade realmente melhore, empreendedores sociais e lideranças cívicas precisam remover obstáculos à inovação pelas bases e ao progresso de moradores de zonas marginalizadas. Um número excessivo de regulamentações governamentais, normas de serviços públicos, políticas empresariais e indicadores de organizações sem fins lucrativos acaba prejudicando a população desses lugares. Peguemos a dificuldade de vender produtos agrícolas ou de construir moradias em Bonton. Ou normas para solicitar recursos de programas filantrópicos ou públicos, que dificultam o acesso para organizações menores dirigidas por líderes com menos contatos. Ou instituições financeiras que criam produtos e tabelas de custos compatíveis apenas com certas classes sociais e localidades. Ou agências do governo que ignoram necessidades de bairros mais isolados, física e socialmente, como ocorreu quando autoridades de educação e transporte em Dallas tomaram decisões sobre alocação de recursos que não consideraram o impacto em bairros desconectados e desfavorecidos como Bonton.

Terceiro, incentivar lideranças dentro das próprias comunidades é essencial para o progresso dos lugares. Em vez de buscar mais eficiência no modo como órgãos do governo, ONGs e instituições filantrópicas operam, responsáveis pelo setor social talvez devessem perguntar por que não surgem mais líderes nos lugares mais vulneráveis da sociedade. Talvez seja preciso repensar nossa visão sobre essas localidades e descobrir como oferecer a capacitação, as redes e um ambiente para que líderes possam emergir – ou retornar. Kimberly High, que administrou a filial da Bonton Farms durante vários anos, foi criada em Joppa, bairro logo ao sul de Bonton. Tinha ido embora e estabelecido uma trajetória profissional sólida, trabalhando por 31 anos em uma seguradora. Nunca imaginou que voltaria. “Jamais teria decidido trabalhar na agricultura. Gosto das minhas unhas feitas”, diz. “Mas a Bonton Farms restaurou minha saúde […]. Tem gente que acha que sou louca, mas passei a vida toda em um escritório. Não é assim que quero passar meus últimos dias.”26 Em 2021, depois de trabalhar na Bonton Farms por vários anos, canalizou suas energias para a vizinha Joppa, com o propósito de começar sua própria fazenda urbana em uma propriedade que pertenceu à sua avó. 

Empreendedores comunitários, gestores locais e lideranças comprometidas podem criar conexões e capacidades de modo a fortalecer bairros carentes. Quando a intervenção de agentes externos for necessária, é preciso que ajam como catalisadores para criar vínculos e pontes que garantam o progresso do lugar – em vez de sufocar a iniciativa e a liderança locais.

Quarto, em vez de encarar áreas de baixa renda exclusivamente como um problema, devemos buscar nelas lições sobre o crescente desafio do isolamento, que afeta uma parcela cada vez maior da sociedade. Já que todo bairro, rico ou pobre, se situa em algum ponto entre dois extremos – dos mais conectados aos menos conectados –, uma abordagem mais inclusiva poderia incorporar os crescentes desafios da pobreza social. Essa abordagem não só reformularia as dificuldades enfrentadas por zonas de baixa renda, mas acabaria com sua estigmatização. Bairros de classe média podem estar em situação material melhor, mas também expostos a diversos problemas sociais, como suicídio ou abuso de drogas. Por outro lado, alguns bairros de baixa renda – como aqueles com imigrantes recentes – podem ser socialmente vibrantes, capazes de enfrentar seus desafios, com maior probabilidade de ver a renda da população aumentar e menos vulneráveis a problemas sociais.

Bonton nos ensina que todo bairro precisa tanto de vínculos internos como de pontes externas para catalisar e sustentar o progresso. Cada residente é um cidadão, não só um consumidor de serviços – um morador, não só um necessitado. É como escreveu Martin Luther King Jr.: “Somos parte de uma rede inescapável de mutualidade, atados em um único manto do destino. O que afeta um diretamente afeta todos indiretamente”.27

O AUTOR

Seth D. Kaplan é professor da Escola Paul H. Nitze de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins e autor do livro Fragile Neighborhoods: Repairing American Society, One Zip Code at a Time.

NOTAS

  1. Daniel Herrig, “Bonton Farms: Transforming a Community from Within”, Strong Towns, 28.mar.2017.
  2. Informações obtidas em entrevista presencial feita com Daron Babcock em fevereiro de 2024 e das seguintes fontes: Kathy Wise, “The Rogue Shepherd”, D Magazine, 15.jan.2018; Catherine Rosas, “The Transforming Power of the Bonton Farms Act”, D Magazine, 20.dez.2021; Michael McMinn, “Bonton Farms: A Story That Needs to Be Told”, B. H. Carroll Theological Seminary, 28.out.2016; Herrig, “Bonton Farms”. 
  3. Antonio Di Mambro + Associates, Inc., “Bonton Neighborhood Redevelopment Plan”, Dallas Housing Authority, 30.set.2005.
  4. The J. McDonald Williams Institute, “Research Compilation: Zip Code 75215”, Research Brief, jun. 2006.
  5. Wise, “The Rogue Shepherd”. 
  6. The J. McDonald Williams Institute, “Research Compilation”. 
  7. Daron Babcock e Jacob Duvall, “True Community Bank: Bonton”, ago. 2022.
  8. Ver, por exemplo, Raj Chetty et al., “Where Is the Land of Opportunity? The Geography of Intergenerational Mobility in the United States”, Quarterly Journal of Economics, v. 129, n. 4, 2014; William Julius Wilson, The Truly Disadvantaged: The Inner City, the Underclass, and Public Policy, Chicago: University of Chicago Press, 1987; Robert Sampson, Great American City: Chicago and the Enduring Neighborhood Effect, Chicago: University of Chicago Press, 2012; e Patrick Sharkey, Stuck in Place: Urban Neighborhoods and the End of Progress Toward Racial Equality, Chicago: University of Chicago Press, 2013.
  9. Joe Cortright e Dillon Mahmoudi, “Lost in Place: Why the Persistence and Spread of Concentrated Poverty – Not Gentrification – Is Our Biggest Urban Challenge”, City Observatory, dez. 2014. 
  10. Purpose Built Communities, “The Neighborhood Is the Unit of Change”, 30.out.2018.
  11. Entrevista por telefone do autor com David Edwards, jun. 2020.
  12. Babcock e Duvall, “True Community Bank: Bonton”. 
  13. Martita Mestey, “Food Deserts: Daron Babcock of Bonton Farms on How They Are Helping to Address the Problem of People Having Limited Access to Healthy & Affordable Food Options”, Medium, 29.jul. 2021.
  14. Saltbox, “Bonton Farms // The People of Bonton – Lance”, vídeo, 2022.
  15. Roy Maynard, “Bonton Farms – A Community Coming Together”, Texas Public Policy Foundation, 25.nov.2019.
  16. Babcock e Duvall, “True Community Bank: Bonton”. 
  17. Depois de testemunhar o drama de ex-presidiários endividados, Babcock e moradores de Bonton fizeram pressão até que parlamentares do Texas aprovaram uma lei, a Bonton Farms Act. A lei garante um recomeço para texanos e texanas egressos do sistema prisional, eliminando taxas e multas estaduais que frequentemente impediam essa população de conseguir emprego ou até carteira de habilitação para dirigir.
  18. Saltbox, “Bonton Farms // The People of Bonton – Daris”, vídeo, 2021; Roy Maynard, “Finding Hope in a Once-Broken Community”, Texas Public Policy Foundation, 26.out.2022. 
  19. Babcock e Duvall, “True Community Bank: Bonton”. A filosofia é apresentada em diversos documentos e em geral não é divulgada publicamente em um material específico.
  20. Shakari Briggs, “Bonton Farms’ Tiny House Village to Provide Sustainability, Affordability”, Spectrum News, 2.set.2021.
  21. Ibid.
  22. The J. McDonald Williams Institute, “Research Compilation”.
  23. Ibid.
  24. Ibid.
  25. Babcock e Duvall, “True Community Bank: Bonton”.
  26. Wise, “The Rogue Shepherd”.
  27. Dr. Martin Luther King Jr., “Letter from a Birmingham Jail”, 16.abr.1963.

 

*Artigo publicado originalmente na edição 12 da SSIR Brasilleia aqui a edição completa

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