Em 1998, Yolanda Kakabadse era Ministra do Meio Ambiente do Equador quando soube que o vulcão Cerro Azul havia entrado em erupção na Ilha Isabela, em Galápagos, ameaçando uma pequena comunidade de tartarugas endêmicas. A conservação das emblemáticas tartarugas gigantes de Galápagos – criaturas que fascinam cientistas há séculos e inspiraram estudos fundamentais sobre evolução – são motivo de preocupação no país.
Ambientalista experiente já naquela época, Kakabadse pediu apoio ao Ministério da Defesa: um helicóptero, soldados com cordas e redes para salvar as tartarugas em risco. A missão era movê-las apenas alguns quilômetros para protegê-las da lava, mas a ação precisava ser rápida. A ministra contou com o apoio das Forças Armadas equatorianas para realocar os animais a tempo, e a operação foi bem-sucedida. “Os soldados ficaram extremamente orgulhosos de saber que foram eles que salvaram aquelas vidas”, lembra Kakabadse.
Mas por que todo esse esforço para salvar aquelas tartarugas? Por que a biodiversidade é tão importante?
“Porque a biodiversidade é um colete salva-vidas para o mundo”, diz Kakabadse.
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) diz que “biodiversidade” é a variabilidade entre organismos vivos de todas as origens, incluindo ecossistemas terrestres, marinhos e aquáticos, bem como os complexos ecológicos dos quais fazem parte – que incluem diversidade dentro de espécies, entre espécies e entre ecossistemas.
A verdade é que o mundo está diante de um ponto de inflexão de destruição planetária e, embora a crise climática domine manchetes, estamos negligenciando esse outro colete salva-vidas igualmente crucial: a biodiversidade. Ou, para ser mais preciso, a sociobiodiversidade, a interseção entre diversidade biológica e diversidade cultural/social.
Não se trata apenas de proteger espécies carismáticas ou florestas intocadas. Trata-se da complexa teia da vida que sustenta a economia, a segurança alimentar e hídrica, a regulação do clima e o nosso próprio bem-estar. “A biodiversidade é uma base para tudo, mas o clima atualmente recebe mais atenção”, diz Jessica Seddon, diretora da Iniciativa Deitz de Meio Ambiente e Assuntos Globais da Jackson School of Global Affairs da Universidade de Yale e especialista em governança ambiental.
Na prática, não há separação entre biodiversidade e os serviços ecossistêmicos (também chamados de “contribuições da natureza para as pessoas”, NCP, na sigla em inglês) – os benefícios diretos e indiretos que os seres humanos obtêm dos ecossistemas, como oferta de alimentos e água potável, regulação climática, polinização, ciclagem de nutrientes, formação do solo e serviços culturais como recreação e turismo.
Por muito tempo, o enorme valor da sociobiodiversidade foi ignorado e subfinanciado. A tomada de decisão nos altos níveis permanece desconectada da ciência da biodiversidade, muitas vezes porque sua complexidade é difícil de ser traduzida para a linguagem das finanças, da economia e das políticas públicas. No entanto, cada vez mais cientistas, economistas e formuladores de políticas defendem uma mudança de paradigma. A mensagem é clara: se queremos manter e melhorar o bem-estar humano, agora e no futuro, precisamos cuidar da sociobiodiversidade.
Uma ‘apólice de seguro’ para a humanidade
Uma das formas mais poderosas de reformular essa discussão é pensar na sociobiodiversidade como uma apólice de seguro. Assim como um portfólio financeiro diversificado reduz riscos, a diversidade biológica gera resiliência diante de choques ambientais. E há muitas evidências que comprovam isso.
Um estudo publicado por Forest Isbell e outros pesquisadores na Nature em 2015 mostrou, por exemplo, que a biodiversidade aumenta a resistência dos ecossistemas a uma grande variedade de eventos climáticos – úmidos ou secos, moderados ou extremos, curtos ou prolongados.
Nos experimentos do grupo, a produtividade de pastagens com baixa diversidade (com uma ou duas espécies) variou cerca de 50% durante eventos climáticos, enquanto em comunidades mais diversas (com 16 a 32 espécies) essa variação foi de cerca de 25%. Segundo o artigo, os resultados sugerem que a biodiversidade estabiliza a produtividade dos ecossistemas e os serviços dependentes dessa produtividade, aumentando a resistência a eventos climáticos.
A “hipótese do seguro”, no entanto, não é nova. Em 1999, os pesquisadores Shigeo Yachi e Michel Loreau propuseram um modelo para avaliar os efeitos da riqueza de espécies sobre processos como a produtividade primária (a taxa em que plantas convertem energia solar em compostos orgânicos) ao longo do tempo. O modelo mostrou que ter um número maior de espécies traz dois benefícios principais. Em primeiro lugar, amortece o sistema, reduzindo as flutuações na produtividade primária ano a ano. Em segundo, melhora o desempenho, mantendo a média da produtividade primária mais alta ao longo do tempo.
Tudo isso significa que ecossistemas saudáveis e diversos são mais estáveis e produtivos. Eles são melhores em sequestrar carbono, regular ciclos da água e resistir aos impactos da mudança climática, como secas e enchentes.
O argumento econômico é forte. Só no Brasil, serviços de polinização – impulsionados pela rica diversidade de abelhas nativas e outros polinizadores que dependem da vegetação nativa – aumentam a produtividade de culturas como soja e café. Esses serviços resultam em sementes mais numerosas e bem desenvolvidas, aumentando o peso da produção por hectare em aproximadamente 12% a 15%. Dado o valor de exportação dessas commodities, o benefício econômico anual é estimado em cerca de US$ 11 bilhões.
Das 191 espécies cultivadas e silvestres relacionadas à alimentação no Brasil, 91 têm algum nível de dependência de polinizadores. Cinquenta e quatro plantas (59%) têm dependência essencial ou alta. Isso significa que, se perdermos as abelhas nativas, perdemos os serviços de polinização. Se perdermos os serviços de polinização, perdemos alimento (e dinheiro).
Da mesma forma, ecossistemas mais diversos tendem a apresentar taxas de sequestro de carbono mais altas e resilientes – relação que é especialmente forte em regiões tropicais, segundo estudo recente publicado na Nature Plants por Ruochen Cao e outros pesquisadores. Capturar CO₂ da atmosfera – atividade que nossos ecossistemas tropicais realizam muito bem – é essencial para a regulação climática e o bem-estar humano. Uma maior diversidade de espécies aumenta a estabilidade do carbono capturado, reduzindo a vulnerabilidade dos projetos de restauração a choques ambientais. Para manter nossos sistemas socioeconômicos, precisamos do “capital natural” de ecossistemas saudáveis e funcionais.
Outro estudo, de James A. Estes e outros pesquisadores, publicado na Science em 2011, mostrou que a perda de predadores de topo – causada principalmente por atividades humanas – tem consequências muito mais destrutivas do que pode parecer. O desaparecimento de animais como onças, lobos, gnus e grandes peixes desencadeia um efeito cascata que impacta a dinâmica de doenças, incêndios florestais, sequestro de carbono, espécies invasoras e ciclos biogeoquímicos. O efeito é visível até mesmo nas paisagens.
A diversidade genética também é essencial para a agricultura. Quando a ferrugem do café (Hemileia vastatrix) devastou plantações nas Américas, causando queda catastrófica na produtividade, a solução veio da variabilidade genética de espécies silvestres de café da Etiópia. Esses parentes selvagens evoluíram sob diferentes pressões seletivas e, por isso, forneceram características de resistência que puderam ser incorporadas às variedades cultivadas. Nessa variabilidade genética muitas vezes está a solução para ameaças a espécies domesticadas.
O que acontece na Amazônia não fica na Amazônia
Para entender a importância da sociobiodiversidade em escala regional e global, um conceito é fundamental: conectividade. As três grandes bacias tropicais – Amazônia, Congo e Sudeste Asiático – funcionam como sistemas interconectados, vitais para a saúde planetária. Um exemplo é o fenômeno dos “rios voadores”, pelos quais enormes quantidades de vapor d’água são transportadas pela atmosfera da Amazônia para outras partes da América do Sul, influenciando padrões de chuva e clima a milhares de quilômetros de distância.
Por causa dessa interconexão, decisões tomadas em um país afetam profundamente outros. “Isso significa, por exemplo, que o Brasil deveria parar de desmatar porque está afetando o que eu tenho para beber”, afirma Yolanda Kakabadse.
O bioma Amazônia perdeu 10% de sua cobertura vegetal (cerca de 60 milhões de hectares) entre 1985 e 2023, segundo o MapBiomas. Biodiversidade não tem fronteiras, e manter ecossistemas é uma responsabilidade compartilhada. Proteger essas bacias é questão de segurança continental e global.
Por isso, Emma Torres, vice-presidente para as Américas e de Parcerias Estratégicas da Sustainable Development Solutions Network (SDSN), propõe a criação de padrões compartilhados, métodos e de uma iniciativa de conectividade entre as três bacias, que sintetize a pesquisa e envolva academia, formuladores de políticas, comunidades locais, povos indígenas e o setor financeiro. “O mais importante é contribuir, do ponto de vista científico, para o que seria um modelo sustentável de desenvolvimento para ecossistemas tropicais”, afirma Torres, que também é coordenadora estratégica do Painel Científico para a Amazônia (SPA) e do Painel Científico para a Bacia do Congo.
A conectividade vai além. Nos últimos anos, a comunidade científica também passou a defender mais sinergia entre as três “Convenções do Rio” – a Convenção da Biodiversidade (CDB), a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e a Convenção de Combate à Desertificação (UNCCD) – para promover soluções integradas aos desafios ambientais globais. A COP30, que acontece a partir de hoje (10 de novembro) em Belém, apresenta uma oportunidade estratégica para avançar nessa agenda.
Como aproximar ciência, política e economia
Apesar das evidências crescentes sobre a importância da sociobiodiversidade, ainda existe um grande abismo entre o conhecimento científico e sua aplicação em decisões políticas e econômicas. Marielos Peña Claros, professora da Universidade de Wageningen e co-presidente do SPA, reconhece o papel da ciência nessa relação complexa, mas destaca que comunicação é uma via de mão dupla: “Não é só que os cientistas não estão comunicando; os formuladores de políticas também não estão ouvindo”.
Segundo Juliano Assunção, diretor-executivo da Climate Policy Initiative no Brasil, uma das principais barreiras para inserir a biodiversidade nas agendas econômicas é a falta de dados em larga escala. “Estamos prontos para construir essa ponte para as políticas públicas ou ainda precisamos de mais evidências? As consequências econômicas da perda de biodiversidade ainda são desconhecidas. Veja o MapBiomas, por exemplo – é ótimo para mapear mudanças no uso da terra. Mas temos diferentes tipos de florestas, cada uma com funções ecológicas distintas, e muitas não são mapeadas. Estamos perdendo essas particularidades.”
Joaquim Levy, diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados do Banco Safra e ex-ministro da Fazenda do Brasil, reconhece que a biodiversidade é a base da segurança alimentar, da estabilidade econômica e da resiliência climática. Ainda assim, diz ele, ela continua sendo tratada como a “irmã menos prestigiada do clima”. Para ele, uma maior divulgação do conhecimento sobre biodiversidade e uma narrativa focada em termos mais econômicos poderiam ajudar.
Por exemplo, em vez da expressão “benefícios da natureza”, que pode não gerar identificação entre tomadores de decisão e agentes econômicos, Levy propõe manter o uso de “serviços ecossistêmicos”. “As pessoas entendem o que são ‘serviços’ na economia e nos negócios, e que eles podem ter um custo. Já ‘benefícios’ reforça a ideia de algo que vem sem esforço da ‘Mãe Natureza’.”
De fato, uma nova abordagem pode reformular achados científicos para que ressoem com públicos distintos. Para economistas, isso significa comunicar “biodiversidade” na linguagem de ativos, gestão de riscos e resiliência financeira. Para formuladores de políticas, demanda mensagens claras e acionáveis que conectem a sociobiodiversidade com questões urgentes como segurança alimentar, água e saúde pública. Mas também é preciso que cientistas, formuladores de políticas, economistas e comunidades locais trabalhem juntos para produzir mais conhecimento e soluções.
Iniciativas como o MapBiomas, uma rede colaborativa de ONGs, universidades e startups de tecnologia que usa imagens de satélite e IA para monitorar mudanças no uso da terra, estão fornecendo os dados abertos em larga escala que políticas públicas precisam. Ao lançar novas coleções de mapas anualmente, a rede – hoje ativa em 14 países – consegue monitorar o que acontece nessas regiões tropicais ao longo do tempo e compreender melhor a gravidade da situação.
Eles observaram, por exemplo, que, entre 2000 e 2022, 90 milhões de hectares de vegetação nativa foram perdidos na América do Sul e na Indonésia. “Um dos principais motores da perda de biodiversidade nos trópicos é o desmatamento e a mudança no uso da terra”, explica Julia Shimbo, coordenadora científica do MapBiomas. “Precisamos entender não apenas a quantidade de perda, mas o que acontece depois.”
Territórios indígenas e áreas protegidas, por outro lado, ajudam a preservar a floresta: na Amazônia, 97% dessas áreas permanecem cobertas por vegetação nativa. “Precisamos implementar políticas que incorporem o conhecimento de comunidades indígenas e locais, e que também empoderem as mulheres”, afirma Lydie-Stella Koutika, cientista do solo do Soil Care & Environment Studies (SCES), na República do Congo.
Interdisciplinaridade é essencial para construir essa ponte. Em setembro, o Instituto Serrapilheira, organização sem fins lucrativos que apoia a ciência no Brasil, e o Instituto Humboldt, entidade colombiana que pesquisa biodiversidade e seu vínculo com o bem-estar humano, reuniram 22 especialistas de nove países no Bellagio Center da Fundação Rockefeller, na Itália. O objetivo foi discutir a urgência de conectar ciência à tomada de decisão e fortalecer esse diálogo nos três grandes biomas tropicais, em resposta à perda de biodiversidade e de serviços ecossistêmicos essenciais. O Serrapilheira também está criando o Instituto Relva, dedicado à pesquisa em ecologia tropical e sua interface com políticas públicas.
O grupo interdisciplinar incluía cientistas, como Lydie-Stella Koutika, Julia Shimbo e Marielos Peña Claros, e também economistas, formuladores de políticas e gestores, como Joaquim Levy, Juliano Assunção, Yolanda Kakabadse, Jessica Seddon e Emma Torres. As reflexões deste artigo surgiram das discussões desse encontro.
O argumento em favor da sociobiodiversidade demanda que a narrativa vá além do clima e desmatamento – temas também urgentes, mas mais familiares. É preciso contar uma história de longo prazo sobre o que perdemos quando perdemos a sociobiodiversidade: a estabilidade de sistemas alimentares, de ciclos da água e da economia.
“Sociobiodiversidade” enfatiza uma relação positiva entre pessoas e natureza. “O termo é poderoso porque não se trata de ‘tirar as pessoas da terra’, mas de destacar diferentes maneiras pelas quais as pessoas podem estar com a terra. É uma abordagem diferente da conservação tradicional”, aponta Jessica Seddon. É hora de reconhecer que a sociobiodiversidade não é um luxo a ser considerado depois que resolvermos a crise climática. É um colete salva-vidas tão essencial que não podemos deixar para trás.
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