Lideranças locais apontam caminhos para a filantropia

É hora de agir com ousadia: financiar com abundância, investir em lideranças com raízes locais e colocar a perspectiva de gênero no centro da transformação 
Ilustração de Brian Stauffer

A humanindade enfrenta uma convergência de desafios, como o aumento da desigualdade, a redução do espaço cívico, a instabilidade climática e o avanço de movimentos antidireitos. Esses desafios se aprofundam justamente no momento em que a assistência internacional diminui e os compromissos globais se enfraquecem.

Embora a escala e a natureza dessas perturbações tenham levado alguns financiadores globais a reavaliar suas estratégias, os líderes locais com quem a Co-Impact colabora em África, Ásia e América Latina têm compartilhado uma mensagem diferente e consistente: 1) Esses desafios não são novos; 2) Seguimos fazendo nosso trabalho; 3) Eis o que estamos fazendo e por que está dando certo.

Esses líderes estão transformando sistemas públicos a partir de dentro: encontrando aliados no governo, formando coalizões intersetoriais, persistindo diante de retrocessos e continuando a gerar impacto para as comunidades com as quais trabalham. Além disso, muitos deles nunca dependeram excessivamente de financiamentos internacionais. Apesar da retórica global, esses fundos raramente chegam aos esforços locais. Alguns doadores globais assinaram um compromisso de longo prazo de destinar pelo menos 25% da ajuda a atores locais e nacionais, mas, na prática, pouco se avançou nesse sentido, e estima-se que atores locais recebam diretamente apenas 0,6% do financiamento global.

Nos contextos em que há um grau mínimo de estado de direito e responsabilidade institucional, esses líderes têm concentrado esforços principalmente em seus próprios governos e comunidades, mobilizando recursos locais, promovendo e implementando políticas públicas e fortalecendo a apropriação local de soluções duradouras. Eles criaram estratégias que permitem a continuidade do progresso independentemente de mudanças políticas, garantindo que os sistemas sejam mais responsivos, resilientes e capazes de gerar impacto duradouro em grande escala.

O trabalho deles costuma começar no interior da própria sociedade civil, com organizações de base local, muitas delas lideradas por mulheres e outros grupos historicamente excluídos, que desenvolvem soluções práticas e contextualizadas para problemas complexos. Em vez de contornar os sistemas públicos, essas organizações buscam aprimorá-los ao fomentar confiança, demonstrar o que é possível ser feito e ajudar a incorporar mudanças duradouras na forma como governos e comunidades servem às pessoas.

É graças a eles que somos otimistas. Não porque ignoramos os desafios, mas porque eles mostram o que é possível: melhorias reais e duradouras na vida das pessoas e nos sistemas que as moldam. Agora é o momento de ouvir, aprender e agir com confiança para apoiar seu trabalho. 

O caminho a ser seguido pela filantropia 

Em momentos de incerteza, o mundo precisa de caminhos bem definidos. A filantropia tem um papel fundamental a desempenhar: não o de substituir os sistemas públicos, mas o de ajudar a aprimorá-los. Nenhum governo pode resolver os desafios atuais sem parcerias com líderes e organizações locais que mantenham uma forte conexão com as comunidades que atendem. À medida que o setor filantrópico avança, três princípios podem orientar a forma como atuamos:

  1. Investir em lideranças com raízes locais, capazes de promover mudanças sistêmicas.  |  A filantropia pode apoiar líderes e organizações profundamente conectados a seus contextos e que atuam para transformar o funcionamento dos sistemas: como as decisões são tomadas, como os recursos são distribuídos e quais vozes influenciam as políticas públicas. Isso significa apoiar lideranças comprometidas em incorporar soluções de longo prazo nas instituições públicas, colaborando com os governos a fim de promover um senso de propriedade nacional das soluções, ampliar os investimentos de recursos locais e definir prioridades de forma inclusiva e representativa para todos.
  2. Financiar com abundância. | O apoio deve corresponder ao tamanho dos desafios. Isso significa oferecer financiamento de longo prazo e flexível, combinado com suporte estratégico alinhado à visão e aos objetivos daqueles que lideram as transformações. 
  3. Colocar a perspectiva de gênero como componente essencial, não opcional, do trabalho. | A mudança sistêmica consiste em enfrentar as causas estruturais das desigualdades e construir instituições que funcionem melhor para todas as pessoas, não apenas para algumas. O compromisso com a igualdade de gênero deve ser um princípio fundamental em todas as frentes. Líderes e organizações precisam colocar no centro as experiências, a liderança e as prioridades de mulheres e meninas, para que os sistemas possam, de fato, cumprir sua promessa de servir a todas as pessoas.

Apoiar mudanças sistêmicas é um trabalho de longo prazo, que exige uma amplitude, uma presença territorial e uma combinação de conhecimentos e habilidades que poucos financiadores conseguem ter sozinhos. É por isso que fundos coletivos e modelos colaborativos estão particularmente bem posicionados para cumprir esse papel. Eles permitem que doadores aproveitem conhecimentos já existentes, compartilhem riscos e trabalhem juntos para apoiar mudanças lideradas localmente em larga escala.

A Co-Impact faz parte de um campo crescente de iniciativas colaborativas. Em nosso trabalho, financiamos estratégias de longo prazo desenvolvidas por parceiros locais, com o objetivo de tornar os sistemas de saúde, educacionais e econômicos em suas comunidades mais fortes e inclusivos, além de promover a igualdade de gênero e a liderança das mulheres. Investimos nas organizações parceiras, em aprendizado e mensuração de resultados, e no apoio estratégico que elas próprias identificam como o mais transformador, incluindo uma fase de concepção, em que podem refletir e planejar o impacto na escala do problema. Uma vez definida essa estratégia, a Co-Impact caminha ao lado dessas organizações por meio de subsídios plurianuais. Reunimos financiadores de todo o mundo e mobilizamos capital conjunto para dar apoio a esse tipo de trabalho, possibilitando a expansão do impacto entre diferentes regiões e temas. 

Mudanças sistêmicas em curso

Quando OS TRÊS PRINCÍPIOS se unem – liderança local, apoio e financiamento flexíveis e um compromisso com a igualdade de gênero –, eles ajudam a criar as condições para que mudanças criem raízes e floresçam. As organizações sem fins lucrativos que temos apoiado em parceria com outros financiadores demonstram que a mudança sistêmica duradoura não apenas é possível, mas já está em curso.

Um exemplo é a Gender Mobile Initiative, na Nigéria, que combate o assédio sexual generalizado no ensino superior. Atuando em parceria com mais de 125 instituições e com o Ministério da Educação, a iniciativa estabeleceu um marco nacional de prevenção, ferramentas de denúncia centradas nas mulheres sobreviventes dessa violência e programas de educação espalhados por campi universitários. O governo nigeriano agora considera aprovar uma legislação para estabelecer mecanismos nacionais de responsabilização tanto para denúncias como para a aplicação das medidas.

Na Indonésia, há mais de duas décadas a PEKKA vem construindo um movimento de base formado por mulheres chefes de família. A organização já apoiou mais de 85 mil famílias chefiadas por mulheres em 1.600 vilarejos, na luta por seus direitos à educação, à justiça, econômicos e de participação social e política. Agora, a PEKKA está colaborando com o Ministério das Mulheres e da Proteção Infantil da Indonésia para implementar um modelo de aprendizagem feminista em um programa nacional de desenvolvimento liderado por mulheres, com o objetivo de formar lideranças femininas em todos os 74 mil vilarejos rurais do país.

Líderes e organizações precisam colocar no centro as experiências, a liderança e as prioridades de mulheres e meninas, para que os sistemas possam, de fato, cumprir sua promessa de servir a todas as pessoas

Na África do Sul, a Coalizão de Desenvolvimento da Primeira Infância – que inclui as organizações sul-africanas Ilifa Labantwana e SmartStart, entre outros parceiros – ajudou a liberar 10 bilhões de rands (cerca de US$ 555 milhões) em financiamento público, o que ampliou o acesso das crianças aos serviços de cuidado e flexibilizou as normas para que mais microempreendedoras possam abrir creches de qualidade em suas próprias casas. A coalizão alcançou esse resultado porque demonstrou o que é possível em larga escala, produziu evidências mensuráveis de impacto, apoiou o governo no fortalecimento de seus sistemas e defendeu a importância do desenvolvimento na primeira infância como um motor de justiça social, geração de empregos e progresso nacional.

Para enfrentar a violência de gênero no Brasil, o Mapa do Acolhimento está levando aos sistemas públicos abordagens centradas nas sobreviventes. O que começou como uma rede de voluntariado (um sistema online que conecta advogadas e psicólogas voluntárias a mulheres sobreviventes de violência de gênero) expandiu-se de um modelo de atendimento direto para uma iniciativa nacional que está testando modelos de políticas públicas no estado de Alagoas, com planos de expansão para outros quatro estados do Nordeste. Esse esforço inclui fortalecer os órgãos de políticas para mulheres, melhorar os serviços públicos e ampliar o papel da sociedade civil na formulação de políticas mais inclusivas.

Mais do que meias medidas

Bilhões de dólares em capital filantrópico continuam à espera. Por que financiadores não estão mobilizando esses recursos agora, quando são mais necessários do que nunca? Essa é uma pergunta recorrente que costuma receber a mesma resposta: embora alguns financiadores estejam agindo com urgência, muitos se sentem paralisados. Sem saber por onde começar ou se sua contribuição será suficiente, acabam, instintivamente, hesitando. 

Mas esse modo de pensar subestima tanto a urgência como as possibilidades do momento. Agora é a hora de acelerar as doações, não de adiá-las. Os desafios atuais não pedem cautela nem meias medidas – exigem determinação e ação pautada por ambição e clareza.

A filantropia já dispõe das ferramentas e plataformas necessárias para ampliar o impacto de líderes locais por meio de colaborações mais profundas e apoio de longo prazo. Se há um momento para agir com ousadia – acelerar as doações e corresponder à urgência daqueles que já estão liderando a mudança –, esse momento é agora. 

*Este texto faz parte da série Coragem e colaboração para construir o futuro.