Investir em agroecologia para transformar o sistema alimentar
A filantropia pode contribuir para a construção de um sistema alimentar mais resiliente e equitativo por meio da agroecologia. Conheça exemplos do Sul Global
Por Jen Astone & Daniel Moss

Já sabemos como investir em sistemas alimentares equitativos e sustentáveis capazes de fortalecer a resiliência climática. Embora os riscos da agricultura industrial (e as oportunidades oferecidas pelos sistemas agroecológicos) também sejam amplamente conhecidos, a maior parte dos recursos ainda aposta na manutenção do status quo: aumento do uso de fertilizantes e pesticidas importados, além da irrigação motorizada, mesmo com seus altos custos e retornos duvidosos. Ao ignorar fertilizantes naturais potentes, consórcios de culturas e práticas de manejo da água que são formas eficazes e econômicas de produzir alimentos diversos, uma visão limitada – aliada a investimentos de curto prazo – sufoca soluções criativas. A ênfase na economia alimentar global e nas cadeias de exportação, que reforçam a dependência de combustíveis fósseis, acaba negligenciando os mercados locais e de gestão pública. Enquanto isso, a aceleração rumo a dietas com menos diversidade, muitas vezes baseadas em monoculturas, prejudica paisagens, culturas e a saúde, obscurecendo a riqueza dos sistemas alimentares diversos e locais, sistematicamente ignorados pelos investidores.
No contexto africano, alimentos nutritivos consumidos por centenas de milhões de pessoas – como mandioca, batata-doce e milheto – já demonstram o potencial da agroecologia em larga escala. No entanto, como empresas de insumos químicos seguem promovendo com eficácia suas tecnologias proprietárias junto a governos, agricultores e organizações de desenvolvimento como o caminho a ser seguido, investidores, agências de ajuda humanitária e governos continuam a financiar e subsidiar fertilizantes químicos, pesticidas e sementes “melhoradas”. Com isso, deixam de lado oportunidades de investimento – e as necessidades de crédito – em cadeias de valor baseadas em culturas diversificadas, locais e indígenas.
A agroecologia oferece um novo critério de investimento, apontando para uma nova economia alimentar, enraizada em saberes ancestrais, capaz de orientar a filantropia, os governos e os investidores privados rumo a economias circulares locais, segurança da posse da terra, agrobiodiversidade e solos saudáveis.
Neste artigo, apresentamos oportunidades de investimento agroecológico para uma verdadeira transformação do sistema alimentar.
1 – Pensar para além das cadeias de valor de exportação
As estratégias de desenvolvimento agrícola costumam ter um objetivo único e bem-intencionado: aumentar a renda dos agricultores. No entanto, as consequências perversas dessa lógica frequentemente incentivam pequenos agricultores a aplicar insumos químicos subsidiados em suas lavouras e encorajam agricultores familiares centrados na biodiversidade a entrar nas cadeias de commodities de exportação. Embora os altos custos desses insumos, contratos instáveis e preços voláteis deixem os produtores vulneráveis, pequenos agricultores que produzem alimentos diversos e nutritivos voltados à segurança alimentar enfrentam dificuldades para diferenciar seus produtos nutritivos e de alta qualidade em mercados acessíveis.
À medida que mais pessoas reconhecem que a vasta maioria dos consumidores ainda depende de agricultores que produzem alimentos básicos – como batata-doce, milho e banana-da-terra – para mercados locais, esses mercados começam a receber a atenção há muito merecida. E se, para cada dólar investido em estratégias de exportação agrícola e subsídios a fertilizantes químicos, investíssemos em organizações de agricultores e consumidores que colaboram com autoridades municipais para revitalizar mercados territoriais locais?
No México, o Fundo de Agroecologia da Península de Yucatán (FAPY, em espanhol) investe em organizações e empreendimentos liderados por povos maias que trabalham com municípios para fortalecer os produtos tradicionais da milpa (sistema agrícola indígena em que milho, feijão e abóbora são plantados juntos) nas cadeias de valor locais. Imagine se os governos investissem em redes de agricultores familiares que produzem para os mercados locais. No Brasil, por exemplo, as políticas públicas de aquisição de alimentos priorizam a compra de alimentos básicos de agricultores familiares, com exigências simplificadas que permitem que produtores vinculados a redes como o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra abasteçam a merenda escolar com suas colheitas.
2 – Pensar para além do aumento de produtividade
Investimentos em agricultura são, com frequência, guiados por um único indicador: o aumento da produtividade obtido por meio de insumos químicos. Numa visão estreita, isso parece fazer sentido: afinal, a população mundial cresce rapidamente e a segurança alimentar é uma prioridade. No entanto, cerca de um terço das terras agrícolas já foi degradado pela agricultura industrial: impulsionar a produtividade com o uso intensivo de insumos químicos comprometeu solos e fontes de água, deixando as futuras gerações mais vulneráveis à fome e às mudanças climáticas.
E se, para cada euro investido em estratégias de aumento de produtividade e no desenvolvimento de insumos químicos, como os promovidos pela One Acre Fund, os agricultores recebessem financiamento equivalente em condições facilitadas para regenerar terras e fontes de água degradadas? Na Aliança para a Soberania Alimentar na África, por exemplo, a Iniciativa Healthy Soil for Healthy Communities (Solo saudável para comunidades saudáveis, em tradução livre) promove e inova no uso de fertilizantes orgânicos e condicionadores de solo, apoiando inclusive empresas que fornecem biofertilizantes de alta qualidade. Na Índia, o Fundo de Agroecologia Bharat apoia organizações de mulheres, como a Society for Promoting Participative Ecosystem Management (SOPPECOM, Sociedade para a Promoção da Gestão Participativa de Ecossistemas, em tradução livre), que fortalece os direitos à água e os coletivos de gestão sustentável de recursos operados por mulheres sem terra no estado de Maharashtra.
3 – Pensar para além de projetos de incubação
Incubadoras e aceleradoras ocupam um espaço significativo nas estratégias modernas de desenvolvimento agrícola. Por meio de treinamentos intensivos, pequenos grupos de empreendedores recebem assistência técnica e financiamento para negócios promissores (muitas vezes voltados à exportação, já que o financiamento pode estar atrelado à necessidade de reembolso em dólares ou euros). Essa estratégia enfrenta um desafio de escala: o acesso a crédito acessível e assistência técnica permanece fora do alcance de cerca de 85% dos agricultores familiares ao redor do mundo.
E se os investimentos em incubadoras e aceleradoras fossem acompanhados de investimentos em instituições financeiras locais, com o objetivo de conceder empréstimos a agricultores agroecológicos? No Brasil, por exemplo, o fundo cooperativo FINAPOP concede crédito a cooperativas de agricultores familiares, incluindo cooperativas de mulheres, para produção com valor agregado, ao mesmo tempo em que oferece assistência técnica para apoiar planos de negócio e marketing. Criado em 2020 em resposta ao agravamento da insegurança alimentar durante a pandemia, o FINAPOP já emprestou US$ 13,7 milhões [ou R$ 77 milhões] a 25 mil famílias que operam pequenos empreendimentos agroecológicos.
4 – Deixar de lado o ceticismo em relação aos sistemas alimentares indígenas
A maioria das estratégias de desenvolvimento agrícola desconsidera os sistemas alimentares indígenas como soluções viáveis para os desafios atuais da fome, e negligenciamos esses sistemas por nossa conta e risco. Os sistemas alimentares indígenas preservam uma ampla diversidade de cultivos nutritivos em risco de desaparecimento, muitos deles ausentes das prateleiras dos supermercados, e demonstram como, durante milênios, agricultura e conservação da natureza coexistiram de forma harmônica. Esses sistemas desafiam a ideia de que a agricultura industrial é o único caminho possível, uma lição urgente num planeta superpovoado e assolado por uma epidemia de doenças relacionadas à alimentação.
E se, para cada dólar investido na agricultura industrial voltada ao comércio global, financiássemos empreendimentos locais e campanhas voltadas à revitalização dos sistemas alimentares indígenas? No Quênia, a Nyakazi Organics é um exemplo: jovens compram, desidratam e embalam hortaliças africanas indígenas (AIVs, na sigla em inglês) ricas em nutrientes, saborosas e cultivadas por mulheres agricultoras, e as vendem em mercados locais. O negócio prospera graças ao ressurgimento do interesse por dietas locais, impulsionado pelo movimento “Minha Comida é Africana”, que vem ganhando força em todo o continente.
Aprofundar o aprendizado e a colaboração para alinhar investimentos saudáveis
Estamos vivendo um momento de aprendizado. Nos últimos anos, a Coalizão pela Agroecologia, que reúne mais de 300 governos e investidores, criou a Ferramenta de Avaliação e Monitoramento de Financiamentos Agroecológicos, que permite avaliar investimentos com base em princípios agroecológicos. Trata-se de um framework simples, com o qual investidores podem visualizar com rapidez como seus aportes podem ser mais transformadores na construção de sistemas alimentares saudáveis.
Redirecionar investimentos para sistemas alimentares saudáveis exige atenção a uma diversidade de métricas e abordagens, incluindo mercados locais, restauração de paisagens, crédito acessível e cultivos indígenas. Para muitos investidores, trata-se de um território novo, mas repleto de oportunidades de mercado negligenciadas e de saberes e capacidades locais subvalorizados. Soma-se a isso a urgência de promover a biodiversidade e enfrentar as mudanças climáticas e essas abordagens se mostram como o próximo passo lógico.
Embora a filantropia possa atuar como catalisadora, ela deve integrar um fluxo financeiro mais amplo: o Fundo de Agroecologia, um mecanismo de financiamento coletivo, utiliza doações para apoiar organizações e movimentos de agricultores que realizam investimentos de bom senso ao proteger os direitos indígenas à terra, restaurar solos e sementes locais, criar produtos com valor agregado para mercados locais e, fundamentalmente, fazer incidência junto a seus governos por maiores investimentos em agroecologia. Muitas das fundações que integram o fundo buscam complementar as doações com investimentos de impacto oriundos de seus próprios patrimônios, incentivando assim aportes adicionais de capital público e privado.
Um deslocamento modesto de investimentos rumo à inovação agroecológica pode ter um impacto significativo no fortalecimento de sistemas alimentares nutritivos, regenerativos e resilientes às mudanças climáticas. Nossas bocas clamam por alimentos saudáveis e por soluções climáticas justas e duradouras. Está na hora de colocar o dinheiro onde está a nossa fome.
Jen Astone é diretora de ecossistemas na Collective Action for Just Finance e assessora do Fundo de Agroecologia.
Daniel Moss é codiretor do Fundo de Agroecologia. Atua há mais de três décadas na filantropia, canalizando recursos para organizações e colaborações lideradas por comunidades.
*Artigo publicado originalmente no site da Stanford Social Innovation Review com o título From the Past to the Future.
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