Tecnologia

IA brasileira acelera conservação ambiental

Plataforma desenvolvida por adolescentes ajuda ONG a monitorar a fauna e otimizar recursos

por Catarina B. Zanon

Em 2022, durante um safári no Pantanal, os adolescentes João e Felipe Barbosa ouviram algo que os intrigou: biólogos da ONG de conservação ambiental Onçafari passavam mais da metade do mês diante do computador, analisando vídeos gravados por armadilhas fotográficas. A rotina, burocrática e repetitiva, contrastava com o trabalho em campo que os irmãos esperavam encontrar.

Essas armadilhas fotográficas são câmeras com sensores de movimento programadas para registrar vídeos de 30 segundos. Atualmente, há cerca de 350 câmeras espalhadas pelas 17 bases da Onçafari, do Pantanal à Amazônia, em uma área de influência de 2 milhões de hectares. Capturando imagens de onças, lobos-guará, antas e outros animais, as câmeras são uma ferramenta fundamental no trabalho de conservação e ecoturismo da ONG, auxiliando a produção de conhecimento científico sobre o comportamento da fauna.

Cada cartão de memória pode conter de 250 a mil vídeos e é trocado a cada 15 dias. Mas para cada onça registrada, há dezenas de vídeos de outros animais, ou apenas mato balançando ao vento. Era preciso assistir a horas de material para descobrir se uma das onças monitoradas pela Onçafari havia passado por determinada área.

João e Felipe, que na época tinham 14 e 16 anos respectivamente, se ofereceram para criar uma solução com inteligência artificial que automatizasse a leitura desses vídeos. O ChatGPT, ferramenta que popularizou a IA generativa, só seria lançado meses depois, em novembro de 2022. Não havia ferramentas prontas capazes de analisar e classificar imagens em movimento. Era preciso desenvolver um modelo próprio do zero.

Na mesma época, o então executivo do Google Rafael Souza também visitou a Onçafari e enxergou uma série de oportunidades para tornar mais eficiente a atuação da organização com o uso de tecnologia. O fundador da ONG, Mario Haberfeld, resolveu formar um time de voluntários e convidou Souza para ser mentor dos adolescentes. Ele aceitou com a condição de não escrever nenhuma linha de código – pelas regras do Google, o direito autoral de códigos escritos por seus colaboradores pertence à empresa.

João e Felipe passaram noites acordados assistindo a tutoriais sobre redes neurais e IA de imagem no YouTube, tentando aprender como criar um modelo capaz de ensinar a máquina a ler os vídeos e distinguir animais, pessoas e veículos. Usando o TensorFlow, biblioteca de código aberto, deram início ao projeto. A Onçafari disponibilizou apenas 500 vídeos para o treinamento da ferramenta, o que exigiu criatividade dos irmãos: inverteram imagens, trocaram cores, manipularam formatos e transformaram o material em um banco com 8 mil amostras.

Com essa base, conseguiram treinar um protótipo que alcançou 86% de acerto na identificação dos animais. O resultado surpreendeu, mas ainda não era suficiente para substituir a triagem manual. A ONG então liberou 200 mil vídeos. O volume, no entanto, superava a capacidade dos computadores caseiros: “Eu começava a rodar os vídeos e literalmente saía fumaça do computador. A tela ficava azul, preta, rosa”, lembra João.

Com a mentoria de Souza, o sistema de processamento migrou para a nuvem do Google. À medida que novas tecnologias de IA, como o ChatGPT e o Gemini, foram sendo lançadas, a ferramenta de leitura desenhada para a Onçafari passou a incorporar essas capacidades, com linguagem de programação customizada para identificar animais da fauna brasileira.

Souza apresentou aos irmãos a metodologia do Design Sprint, usada para encontrar soluções rápidas em cocriação com o cliente. Com isso, eles voltaram ao Pantanal, conduziram um workshop com a equipe local e perceberam que só o modelo de classificação não bastava. A tecnologia bruta de reconhecimento evoluiu para um software adaptado às necessidades da ONG: um aplicativo que permite ler o conteúdo dos vídeos e também gerenciar câmeras, baterias e cartões de memória. “Eles [funcionários da Onçafari] faziam tudo no papel. Agora não apenas podem organizar o conteúdo, mas também fazer buscas e produzir relatórios”, diz Souza, hoje líder de tecnologia de dados & IA para a América Latina na Alvarez & Marsal.

A plataforma já está em uso na base Caiman, no Mato Grosso do Sul, sede principal da Onçafari, com 97 câmeras em campo distribuí-
das por 53 mil hectares. A automação da triagem liberou os biólogos de cerca de 500 horas mensais diante da tela. “A IA não se distrai, não pisca, não erra por cansaço. O tempo que antes era gasto pelos biólogos em frente à tela agora pode ser usado em campo”, diz João.

“Muita gente que vem nos visitar é picada pelo ‘mosquitinho pantaneiro’”, diz Lilian Elaine Rampim, bióloga e coordenadora de operações da base Caiman. “As pessoas ficam encantadas e querem se envolver de alguma forma. Mas era uma loucura imaginar que aqueles meninos em idade escolar iriam resolver um dos nossos maiores desafios. A gente achava que o sistema ia errar, não ia entender, e não iria fazer o trabalho tão bem quanto os humanos.”

A ONG busca parceiros para expandir a ferramenta para outras bases do projeto. O custo é significativo, especialmente pela demanda por capacidade de processamento em nuvem. Além da expansão territorial, João e Souza já trabalham em uma nova solução de IA: um sistema para detecção e controle dos incêndios que ameaçam o Pantanal. 

A AUTORA

Catarina B. Zanon é estudante da faculdade Sciences Po, na França, e tem interesse em atuar com políticas públicas.

*Artigo publicado originalmente na edição 12 da SSIR Brasilleia aqui a edição completa

 

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