Gente adolescente e protagonista

Em Fortaleza, jovens de 10 a 14 anos se tornam comunicadores de saúde e criam vínculos que rompem barreiras entre escola e posto de saúde, fortalecendo a rede de cuidados
Ilustração de Valentina Fraiz

RAIO X

Gente Adolescente

  • O que é: Projeto da prefeitura de Fortaleza com atuação multidisciplinar e conjunta de escolas e postos de saúde.
  • Público-alvo: Adolescentes de 10 a 14 anos da rede municipal de ensino.
  • Foco de atuação: Saúde integral, saúde mental, vacinação, prevenção de ISTs.
  • Início das atividades: 2021.
  • Impacto até agora: Cerca de 80 escolas e postos participantes do projeto.

Elas se consideram uma dupla: são a adolescente e a “adolescente sênior”. Duda, de 14 anos, e a professora Patricia, de 36, estão diante da plateia de um fórum em São Paulo, para onde viajaram desde Fortaleza especialmente para o evento. Duda recebe o microfone da professora e se apresenta, sorrindo: é uma adolescente comunicadora de saúde. “Adoro falar!”

A relação de cumplicidade entre as duas é a mais perfeita expressão da estratégia adotada pelas secretarias municipais da Saúde e da Educação da capital cearense no programa Gente Adolescente, que Duda e Patricia apresentaram no 6o Fórum de Políticas Públicas da Fundação José Luiz Setúbal, dedicado ao tema da saúde mental de crianças e adolescentes. É uma iniciativa que aposta na criação de vínculos entre profissionais e alunos, e dá aos adolescentes protagonismo sobre sua própria saúde.

Criado em 2021 pela prefeitura de Fortaleza, dentro do escopo do Programa Saúde na Escola (PSE), do governo federal, o Gente Adolescente pareia escolas e postos de saúde para promover ações educativas com os alunos dos anos finais do ensino fundamental, de 10 a 14 anos. “A ideia do projeto é fazer com que os muros entre a escola e o posto de saúde fiquem mais fininhos”, explica a professora Patricia Lima Bezerra, que, além de ser adolescente sênior, dá aulas de história na escola Waldemar Barroso e é uma das responsáveis pelo Adocs (Adolescentes Comunicadores de Saúde), o braço mais inovador do Gente Adolescente. Em Fortaleza, muitas vezes o posto de saúde está ao lado da escola, o que facilita a aproximação. “É literalmente a distância de um portão.”

A base do Gente Adolescente é a “equipe top”, formada por profissionais da escola e da UAPS (Unidade de Atenção Primária à Saúde, o nome oficial dos postos de saúde na cidade): enfermeiro, dentista, psicólogo, educador físico, professor, coordenador, diretor e médico. Além de representantes dos alunos, como Paula Gabriella Sousa da Silva, 14 anos, que participa oficialmente das reuniões semanais do grupo da escola onde estuda, ajudando a definir as próximas ações de saúde na escola. “Nunca me senti deslocada. Eles sempre me tratam como igual, até porque sinto como se os adultos fossem adolescentes também”, diz Paula.

Os integrantes da equipe top participam de uma capacitação anual de 60 horas oferecida pela Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza, sendo 24 horas presenciais. “Desde o começo buscamos sensibilizar os profissionais sobre a importância de desenvolver o protagonismo dos adolescentes, e isso só acontece quando os alunos podem ‘fazer junto’”, explica Fátima Galvão, responsável técnica pela saúde do adolescente da secretaria. E a saúde mental é um tema importante das aulas da capacitação: “A gente precisa mostrar para os profissionais que eles são capazes de falar sobre isso, que é um tema transversal. E que podem acolher, olhar no olho, se sentirem seguros para atuar junto aos adolescentes”.

Galvão conta que um elemento essencial do sucesso do programa, criado a partir de uma ideia das pediatras Ana Estela Leite e Anamaria Cavalcante, foi o fato de a capacitação ter sido construída com  base em um processo de escuta da equipe. “A gente pensou: vamos perguntar para esses profissionais quais são as necessidades deles de conhecimentos, habilidades e atitudes para lidar com adolescentes e vamos, a partir do que eles disserem, elaborar uma  formação. Eles dizem que não sabem como conversar, como se comunicar com os adolescentes”, afirma. Para ela, o fato de ter havido essa escuta ajuda a enfrentar a resistência desses profissionais em trabalhar com a faixa etária de 10 a 14 anos.

A capacitação é apoiada pela recém-criada Escola de Saúde Pública de Fortaleza (Espfor), que também oferece uma especialização gratuita em saúde do adolescente, de um ano e três meses, destinada a profissionais municipais, preferencialmente àqueles que participam das equipes top. “A primeira turma tem 44 alunos e o produto resultante para cada um deles será um projeto de intervenção com os adolescentes no território, porque o objetivo é melhorar a qualidade do serviço”, diz Galvão. 

Entre as prioridades do Gente Adolescente estão também gravidez precoce e a vacinação (a vacina meningocócica ACWY e a vacina contra o HPV são indicadas no Calendário Nacional de Imunização do Ministério de Saúde para essa faixa etária). Segundo a gestora, com as conversas sobre acesso à saúde, sobre a nota técnica do ministério que estabelece que eles podem ser atendidos e até vacinados no posto de saúde mesmo desacompanhados, os adolescentes são “empoderados”.

“As ações precisam ser desenvolvidas não só na escola, mas no posto de saúde também, para todo mundo do posto saber que a escola é do PSE, do Gente Adolescente, e acolher os alunos que forem procurar o serviço a partir dos contatos que fizeram na escola. A gente no Programa de Saúde da Família tem de acolher todos os ciclos de vida, e a adolescência tende a ser um ciclo de vida ignorado. É importante trabalhar no posto e é importante estar dentro da escola, porque é ali que vai ser construída a ponte.” 

Em 2024, 48 pares de escola e posto de saúde participavam do programa em Fortaleza. Em 2025, já são 80, e o plano é continuar crescendo, pelo menos até atingir todas as 134 UAPS. Para tanto, a iniciativa está recebendo assessoria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).

“A intenção é que o programa seja institucionalizado, e estamos orientando tecnicamente as equipes para isso, de forma que a prefeitura o reconheça a partir de uma lei municipal”, afirma a psicóloga Madeline Abreu Monteiro, especialista do escritório do UNICEF em Fortaleza na área de saúde e proteção. Como o UNICEF tem grande capilaridade nas gestões municipais devido a programas como o Selo UNICEF, projetos promissores acabam sendo identificados para receber assistência da organização.

“Consideramos que o Gente Adolescente é uma iniciativa inovadora que vai além do que está proposto no PSE. Vemos nela um potencial muito grande, inclusive de dar alguma resposta para as demandas de saúde mental”, diz Monteiro.

A formalização dos programas municipais como o Gente Adolescente aumenta as chances de que haja continuidade mesmo com as mudanças de governo, além de abrir caminho para o financiamento, o que, segundo Fátima Galvão, contribuirá sobremaneira para o fortalecimento do programa. E garante que os profissionais de saúde possam dedicar tempo de forma mais estruturada, com a organização de um cronograma de ações adequado às necessidades dos territórios e dos adolescentes.

Nada de palestra

Em um piquenique no parque, alunos de 10 a 14 anos conversam sobre alimentação saudável. Na oficina de escalda-pés, descobrem uma estratégia de autocuidado. Em uma tarde de arteterapia, expressam medos e preocupações em desenhos. Percebem que escrever, colocar os pensamentos no papel, pode gerar bem-estar. Essas foram algumas das atividades realizadas em 2024 na escola Waldemar Barroso, com o grupo dos Adocs. Das 48 escolas participantes do Gente Adolescente naquele ano, apenas duas conseguiram implantar o Adolescentes Comunicadores de Saúde, e a esperança é que ao fim de 2025 esse número chegue a 12.

A ideia do Adocs é reunir cerca de 20 alunos de 6o a 9o ano e proporcionar-lhes a experiência de um grupo de convivência. São encontros no contraturno, uma vez por semana ao longo do ano, que oferecem experiências e terapias integrativas, e reforçando o relacionamento horizontal com os profissionais da escola e do posto de saúde. 

Isso é feito de preferência fora da escola, com parcerias locais, por exemplo a Universidade Estadual do Ceará (UECE), que ofereceu aos Adocs da Waldemar Barroso oficinas de arteterapia como parte de seu programa de extensão em terapia ocupacional. 

A professora Patricia Lima Bezerra explica que os integrantes do grupo são convidados a participar. “As pessoas às vezes tendem a ir pelo caminho mais confortável, de escolher os alunos nota dez. Só que a gente trabalha com o conceito de adolescências, no plural. Convidamos os extremamente comunicativos, como a Duda, mas também aqueles que morrem de vergonha de falar em público; alunos com a autoestima lá em cima e outros com sintomas de depressão. Assim, juntos, conseguimos uma experiência mais real de aprendizagem coletiva”, diz ela.

A participação é opcional e não vale nota. “Eu espero o encontro da semana ansiosamente, porque é um lugar onde a gente se sente em casa, é como se estivéssemos em uma família que contempla a gente, mesmo com as nossas diferenças, todo mundo consegue se conectar. E os nossos encontros falam justamente sobre o que a gente pediu, a saúde mental”, conta Duda – Maria Eduarda de Souza Cosme –, que está no 9º ano.

“O Adocs é superimportante porque fala sobre saúde mental e saúde preventiva de uma forma que faz sentido para a gente. Eles não só nos ensinam, mas nos incentivam a ser protagonistas da nossa própria vida. E é como se eu tivesse encontrado uma nova forma de me relacionar comigo e com as outras pessoas”, reforça Pollyana Lara Bezerra da Silva, de 15 anos, que também é comunicadora de saúde da Waldemar Barroso.

As ações do Adocs se baseiam no Guia multiprofissional sobre grupos de convivências com adolescentes, desenvolvido pela psicóloga Fernanda Vieira Soares como resultado de seu mestrado em saúde da criança e do adolescente pela UECE, sob orientação da professora Mardênia Gomes Vasconcelos Pitombeira.

“Os Adocs nos incentivam a ser protagonistas da nossa própria vida. E é como se eu tivesse encontrado uma nova forma de me relacionar comigo e com as outras pessoas”

A psicóloga começou a trabalhar com os grupos de convivências há mais de dez anos, dentro de sua atuação clínica, primeiro como uma estratégia voltada para crianças e adolescentes com transtornos mentais ou deficiência que, por causa dos tratamentos e do constante acompanhamento de familiares e outros adultos, tinham poucas oportunidades para desenvolver as práticas sociais, educacionais, comunicativas e interativas de um cotidiano comum – como ir ao shopping, à praia ou a um passeio qualquer. Mas acabou expandindo a experiência para todos os adolescentes.

“Hoje, para os adolescentes em geral, existe a grande questão do uso das telas e da tendência ao isolamento. Em segundo lugar, é preciso levar em conta a possibilidade que eles têm de um afastamento das figuras nucleares de referência inicial, como os pais. Eles querem o mundo, a diversidade, os pares. Estão num momento de ‘boom’ de abertura. Formam as próprias tribos, e é muito difícil a assistência educacional e a saúde entrarem”, explica a psicóloga, reforçando que com alguma frequência os adolescentes vão precisar dessa assistência.

“Os grupos de convivências propõem a ampliação de experiências, formação de memórias, em um movimento ‘de fora para dentro’, no sentido de desenvolver recursos e habilidades pessoais, aprendizagens específicas às situações vividas em cada um dos lugares da comunidade”, diz a introdução do guia, que em linguagem simples e de modo prático traz exemplos de atividades em grupo e orientações para profissionais de qualquer especialidade sobre como obter os melhores resultados da experiência coletiva.

Soares chama a atenção para o fato de que a pandemia de covid-19 e o isolamento imposto por ela fizeram com que muitas demandas que precisariam ter sido vividas fossem suprimidas. De acordo com a psicóloga, os grupos oferecem a “possibilidade de uma educação em saúde, de uma formação humana, de prevenção de agravos e adoecimento e de formação de uma relação horizontal de rede de cuidados em relação à fase de desenvolvimento, que é importante, preparatória para a vida adulta”.

Embora Soares não seja ligada à prefeitura, ela e sua orientadora acompanham a aplicação do guia de perto e com alegria. “É a pesquisa chegando à comunidade”, afirma Mardênia Vasconcelos. Com direito até à defesa da dissertação de mestrado com a presença dos adolescentes do projeto. “Foi uma defesa pública muito viva, muito rica de significado”, diz a orientadora.

Se em uma escola com mais de 600 alunos de 6o a 9o ano, como a Waldemar Barroso, apenas 20 fazem parte dos encontros do Adocs, como os resultados se espalham para o restante? A ideia é que haja um movimento natural no relacionamento entre os adolescentes. “O que é vivido dentro do grupo, eles passam, eles vão multiplicando, eles próprios. Isso é a questão do empoderamento, do protagonismo, de considerá-los como indivíduos, como pessoas, e ter essa visão mesmo do desenvolvimento global do adolescente”, diz a autora do guia.

A professora Patricia cita o exemplo de uma aluna que percebeu que a mãe havia chegado do trabalho exausta e ofereceu-lhe um escalda-pés, como havia aprendido na oficina do Adocs. “É uma promoção de saúde que ultrapassa os muros da escola e ganha a comunidade.”

“Eu sou a diretora de saúde do grêmio da escola”, conta Duda. As atividades do grêmio estudantil são outra forma de envolver o corpo discente no Gente Adolescente, ou de forma natural, com a presença dos Adocs, ou de forma estruturada. O mais importante para o engajamento é que os adolescentes façam parte do planejamento. Para 2025, por exemplo, o tema escolhido pelos Adocs para ser trabalhado com o grupo na escola Waldemar Barroso foi o bullying, identificado como grande deflagrador de sofrimento mental. E o plano é agir junto com o grêmio, com ações que envolvam a totalidade dos alunos.

Um retrato do sofrimento

Como o tema saúde adolescente foi incorporado à etapa escolar da Feira Municipal de Ciências, na Waldemar Barroso, todos os alunos fizeram trabalhos sobre o assunto. O grupo de Duda, então no 8º ano, resolveu fazer uma pesquisa por amostragem para avaliar a saúde mental do corpo discente. Um questionário foi aplicado a cem alunos, e 91% dos adolescentes disseram já ter tido sintomas de ansiedade, e 43%, de depressão. “Nossa escola é muito alegre, então ver que os adolescentes estavam desse jeito foi algo que chocou todo mundo”, diz Duda.

Foi um alerta, conta a estudante, e é preciso divulgar os resultados para que os pais, os familiares, se atentem mais ao que os filhos vivem, conversem sobre isso. “Queremos mostrar tanto para os alunos como para os pais que a gente pode ajudar do jeito que a gente consegue. E, se a gente precisa de ajuda, procura alguém para nos ajudar, para conseguir ajudar outras pessoas. E, com isso tudo, a gente ajuda o mundo inteiro, no final.”

O trabalho foi selecionado para ser apresentado no Fórum de Saúde Adolescente, organizado pela Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza. Como forma de dar visibilidade às boas experiências na área, o evento distribui prêmios. Os projetos que têm adolescentes como protagonistas ganham pontos extras, o que contribuiu para que a pesquisa do grupo de Duda fosse premiada, dando início à carreira dela de “embaixadora do Adocs”.

Sobre os Adocs como a Duda, a professora Patricia afirma: “Quando eles começam a falar, o público inteiro para e entra numa espécie de transe. Eles conseguem fazer uma mágica, que é reconectar nós que somos adultos com a nossa infância e com a nossa adolescência. Falam de uma maneira tão própria, tão verdadeira, que atravessa as pessoas de forma real. Têm um poder, e as instituições, os outros adultos, o governo precisam compreender. Eles são protagonistas de uma transformação: vão trazer a gente de volta para o que realmente importa, as relações interpessoais. Se a gente pegar esse poder que eles têm de nos reconectar com o que verdadeiramente importa, com uma orientação de qualidade, com fontes de informação seguras, a gente faz uma revolução no país em termos de educação e saúde”, conclui Patricia.