Filantropia e financiamento

Filantropia reparatória para proteger a democracia

Com coragem para enfrentar seu passado e redistribuir poder, a filantropia brasileira pode liderar uma transformação global na forma de doar e fortalecer a democracia a partir da justiça social

por Edgar Villanueva

Imagem: Shutterstock / Salim Hanzaz

Nos últimos dois anos, tive a oportunidade de me envolver de maneira profunda com o setor filantrópico brasileiro. Em 2023, fui palestrante do 12º Congresso Gife em São Paulo, onde compartilhei as ideias centrais do meu livro Decolonizing Wealth com mais de 1.200 filantropos e líderes comunitários do Brasil e de toda a América Latina. Neste ano, retornei ao 13º Congresso Gife para falar sobre o estado atual da filantropia nos Estados Unidos e suas implicações para a América Latina, especialmente no clima político que vivemos hoje.

Ao longo da minha trajetória no setor filantrópico, tenho incentivado a filantropia dos EUA a se examinar de forma crítica, enfrentar suas falhas e trabalhar para redistribuir seus recursos, muitas vezes acumulados à custa de danos a pessoas e ao planeta. Alguns podem questionar a relevância para o contexto brasileiro do debate sobre decolonizar a filantropia nos EUA. Outros podem temer que esse conceito seja radical demais como ponto de partida para famílias ricas em países como o Brasil, para as quais questões como racismo e concentração de poder e riqueza talvez não sejam tão visíveis.

No entanto, a pertinência desses temas e as oportunidades para fazer doadores e organizações debatê-los não poderiam ser mais oportunas. Nos EUA – e em muitos outros lugares – enfrentamos um crescimento acelerado da disparidade de riqueza. Essa situação se agrava com a recente desestruturação da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) e propostas legislativas que ameaçam a atuação da filantropia privada, incluindo sua capacidade de financiar iniciativas fora do país. Além disso, não temos observado um aumento de doações e subsídios como ocorreu em 2020 e 2021,1 em resposta à pandemia de covid-19 e às mobilizações por justiça racial. Hoje, fundações e doadores respondem com mais lentidão diante de tarifas, crises constitucionais e ameaças de recessão que afetarão os EUA e o mundo. Estes tempos instáveis tendem a impactar também a disposição de famílias e fundações brasileiras em doar.

Como chegamos até aqui? A resposta pode ser resumida em uma palavra: colonização. Uma longa lista de problemas sociais – da pobreza extrema à crise climática – tem raízes nas dinâmicas coloniais de extração e ganância. Os sistemas econômicos atuais concentram intencionalmente a riqueza em poucas mãos, enquanto extraem recursos de muitos. A história mostra que a falta de resposta a essas questões profundas e sistêmicas leva à degradação da sociedade e da democracia. 

O que queremos dizer com “decolonizar a filantropia”

Decolonizar a filantropia significa usar o dinheiro para curar e restaurar, em vez de explorar e controlar. Isso começa com o reconhecimento de que a origem de grande parte da riqueza filantrópica é extrativa, enraizada na exploração de povos indígenas, da terra, de pessoas africanas escravizadas e do planeta. Muitas instituições, no Brasil e no mundo, construíram seu patrimônio sobre essas bases exploratórias. Apesar de atuarem filantropicamente, continuam se beneficiando desse legado problemático, revelando uma profunda contradição entre suas missões declaradas e suas histórias.

A filantropia reparatória é o próximo passo fundamental. Ela envolve redistribuir recursos de forma que se reconheça como a colonização, a escravidão e a opressão facilitaram o acúmulo de riqueza. Ao direcionar dinheiro e poder para comunidades historicamente prejudicadas, busca-se promover reconciliação, reparação e cura coletiva.

A urgência da filantropia reparatória é evidente em especial em países como o Brasil, cuja história é marcada pelo sofrimento profundo infligido a povos indígenas e africanos. No século 16, a escravização de populações indígenas deu início a um capítulo trágico da história brasileira.2 Comunidades foram devastadas, sofrendo traumas cujos ecos reverberam até hoje. Com o tráfico transatlântico de escravizados, o Brasil tornou-se um dos principais destinos dessa prática abominável: mais de 1,7 milhão de africanos foram sequestrados e trazidos ao país,3 submetidos a uma crueldade inimaginável.

A dependência brasileira da mão de obra escravizada perdurou por séculos, mais do que em qualquer outro país do Ocidente. Apenas em 1888 o Brasil se tornou o último país ocidental a abolir formalmente a escravidão.4 As feridas deixadas por séculos de opressão não são facilmente apagadas.

Os efeitos persistentes da colonização, da escravização e da apropriação de terras são visíveis hoje nas desigualdades educacionais, na vulnerabilidade à crise climática e na concentração de renda. O 1% mais rico do Brasil detém quase 50% da renda total.5 Apenas 0,8% da população do país é composta por indígenas,6 dos quais 33% vivem com renda per capita abaixo da linha da pobreza.7 Já entre pessoas negras, a taxa de pobreza é pelo menos o dobro da registrada entre brancos.8

Mesmo quando as instituições filantrópicas buscam gerar mudanças positivas, muitas vezes perpetuam as desigualdades ao manter os recursos em um círculo restrito e privilegiado, sem que haja uma redistribuição efetiva para comunidades marginalizadas. Esse desequilíbrio no repasse de recursos e no poder de decisão pode, involuntariamente, agravar os próprios problemas que se pretende resolver.

Minhas conversas com lideranças de base e filantropos no Brasil indicam que organizações negras e indígenas recebem uma fatia ínfima do financiamento filantrópico. Segundo a Rede Comuá, apenas 5% das fundações associadas ao Gife financiam diretamente iniciativas focadas em questões raciais.9 A Iniciativa PIPA, organização de base que busca democratizar o investimento social privado no Brasil, aponta que 46% dos coletivos periféricos recebem nada ou menos de R$ 5 mil por ano em doações e recursos filantrópicos.10 Essas práticas refletem tendências globais, em que comunidades historicamente marginalizadas recebem apoio insuficiente em relação às suas necessidades e ao seu tamanho populacional. Um novo relatório do Decolonizing Wealth Project confirma essas tendências e apresenta caminhos para reinventar a filantropia global, rompendo com raízes coloniais e promovendo o florescimento mútuo.11 

Curar o futuro

Filantropia significa “amor à humanidade”. Essa definição deve nos guiar em direção a relações justas com as comunidades. Como setor, nos beneficiamos do privilégio da riqueza e do desequilíbrio de poder. Acumulamos mais recursos do que compartilhamos. Embora a diversidade nas lideranças tenha aumentado, o poder de decisão sobre o dinheiro continua concentrado nas mãos de poucos. O único caminho para equilíbrio e equidade é o compromisso com a reparação. 

A filantropia reparatória, na prática, pode significar que uma fundação no Brasil destine parte expressiva de seu fundo patrimonial ao apoio de organizações e fundos liderados por pessoas negras e indígenas que atuam na superação de desigualdades estruturais em educação, saúde e oportunidades econômicas. O Fundo Baobá para Equidade Racial e o Fundo Agbara, por exemplo, são liderados por quem vive essas realidades e presta contas às comunidades. A reparação pode significar transferir mais riqueza para organizações de base, para que elas repassem recursos de modo a respeitar a autodeterminação comunitária, romper com a dependência permanente da generosidade alheia e transferir o poder sobre os recursos.

Em 2021, a Bush Foundation anunciou que destinaria US$ 100 milhões para a criação de dois fundos comunitários geridos por organizações locais para apoiar comunidades negras e indígenas nas regiões em que atua, “como forma de reconhecimento e reparação das injustiças econômicas e de outras naturezas que alimentaram o acúmulo de riqueza”.12 Acompanhei a Bush Foundation nessa jornada reparatória e conheço bem os medos e tensões que emergem quando lidamos com nossa história real e responsabilidades como setor. Mas os benefícios – de curto e longo prazo – superam amplamente os custos.

Decolonizar a filantropia é retirar o véu do imperialismo e reparar gerações de danos. A filantropia reparatória vai além: ela redistribui recursos intencionalmente para curar. Analisar nossa história é essencial para entender onde estivemos, onde estamos e para onde precisamos ir.

Diversas fundações nos EUA e no Reino Unido têm iniciado processos de investigação sobre a origem de suas riquezas. Em alguns casos, há ligações diretas com a escravização e a apropriação de terras. Em outros, descobrem-se formas mais recentes de extração e exploração, muitas vezes baseadas em políticas econômicas prejudiciais a populações excluídas. Essas instituições agora se comprometem com ações reparatórias e usam o dinheiro como remédio para curar esses danos.

A filantropia reparatória não diz respeito apenas a expiar culpas do passado, mas agir ativamente para desmontar sistemas e estruturas que perpetuam desigualdades. Ao redistribuir riqueza e transferir poder de decisão, podemos construir um mundo mais justo e equitativo. Estamos lançando uma nova base.

No livro Decolonizing Wealth, abordo o conceito de “Mitakuye Oyasin”, do povo indígena Lakota, que significa que todos somos parentes e estamos conectados com todos os seres vivos e inanimados, com o planeta e com o Criador. O aspecto mais poderoso da filantropia reparatória é que a cura não é unidirecional. Todos nos beneficiamos dela.

Tenho esperança de que o setor filantrópico brasileiro escute esse chamado. O Brasil tem um ecossistema vibrante de agentes de mudança prontos para mergulhar em um trabalho transformador capaz de posicionar o país como líder global em filantropia. Isso pode estimular o aumento do fluxo de capital filantrópico e redirecionar recursos para aqueles que atuam diretamente na proteção e no fortalecimento da democracia na sociedade civil brasileira.

A cura gera progresso, e o progresso exige coragem, humildade e disposição para enfrentar verdades incômodas. Quando aceitamos e enfrentamos a realidade das nossas histórias, experimentamos uma verdadeira democracia. Podemos decolonizar a riqueza e transformar a filantropia em uma força poderosa de cura, reparação e bem-estar coletivo ao adotar esses princípios. Todos temos um papel no processo de cura, quer tenhamos sido beneficiados pelos sistemas históricos ou sofrido seus impactos contínuos. Todo sofrimento é mútuo. Toda cura é mútua. Todo florescimento é mútuo.  

 O AUTOR

Edgar Villanueva é fundador e CEO do Decolonizing Wealth Project.

NOTAS

  1. Michael Kavate, “Climate Regrantors Speak Up: How They’re Responding to Trump”, Inside Philanthropy, 15.mai.2025.
  2. Lais Modelli, “Em duas décadas, mais de 1.600 indígenas foram encontrados em situação de escravidão no Brasil”, Mongabay, 12.jul.2022.
  3. Sarah Brown, “Brazil’s heart-breaking site of two million enslaved Africans”, BBC, 15.fev.2024.
  4. Ricardo Salles, “The Abolition of Brazilian Slavery, 1864-1888”, Oxford Research Encyclopedia of Latin American History, 30.out.2019.
  5. Statista, “Percentage distribution of wealth in Brazil in 2021, by wealth percentile”, 12.ago. 2024.
  6. Maria de Lourdes Beldi de Alcântara, “The Indigenous World 2025: Brazil”, International Work Group for Indigenous Affairs, 25.abr.2025.
  7. Statista, “Percentage of indigenous people living under the poverty line in Brazil 2005-2023”, 13.jan.2025.
  8. Umberlândia Cabral, “Pessoas pretas e pardas continuam com menor acesso a emprego, educação, segurança e saneamento”, Agência IBGE Notícias, 11.nov.2022.
  9. Rede Comuá, “Vamos decolonizar a filantropia, sim!”, 23.ago.2023.
  10. Iniciativa PIPA, Periferias e Filantropia – As barreiras de acesso aos recursos no Brasil, 2022.
  11. Decolonizing Wealth Project, From Colonial Roots to Reparative Futures: Reimagining Global Philanthropy, 2025.
  12. Jen Ford Reedy e Edgar Villanueva, “Closing the racial wealth gap is a collective responsibility. Reparations are a solution”, USA Today, 15.abr.2021.

*Artigo publicado originalmente na edição 12 da SSIR Brasilleia aqui a edição completa

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