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A justiça racial depende de uma filantropia transformadora

Criamos o Democracy Frontlines Fund para permitir que ativistas antirracistas experientes pudessem exercer sua função essencial; eles nos ensinaram a praticar a filantropia de uma forma melhor.

Por Crystal Hayling

filantropia-diversidade
(Ilustração de Patrick Fennessy)

Em maio de 2020, um vídeo de um policial branco em Minneapolis ajoelhado no pescoço de George Floyd até asfixiá-lo tornou-se viral. Eu fiquei destruída. Não “em choque”, “surpresa”. Os brancos ficaram chocados. Os negros ficaram destruídos – com aquela consciência profunda e existencial de sermos “forasteiros” na América.

Trabalhei com filantropia durante outras injustiças raciais catastróficas, incluindo o espancamento de Rodney King em 1991 por policiais de Los Angeles e a revolta que se seguiu à sua absolvição; a morte a tiros de Trayvon Martin e inúmeros outros negros assassinados por racismo. A cada episódio, se a história ficasse na primeira página dos jornais por tempo suficiente para se obter uma resposta, os líderes da fundação formariam comitês, encomendariam estudos e talvez doariam para universidades ou think tanks liderados por brancos que apresentassem belos PowerPoints.

Eu precisava que esse caso fosse diferente. E dessa vez, eu estava em posição de tentar fazer a diferença. Eu disse ao conselho da Libra Foundation que queria criar um fundo que fosse fiel aos nossos ideais de financiamento – inclusive o princípio que diz que aqueles que estão mais próximos de um problema entendem melhor esse problema – e convidar outras fundações para se juntarem a nós na movimentação de dinheiro e na construção de um laboratório de conhecimento. O conselho e minha equipe concordaram, e criamos coragem para ir fundo, além do que parecia possível, para fazer as coisas que sabíamos que eram essenciais. Escolhemos os seguintes mandamentos para orientar o projeto do que se tornaria o Democracy Frontlines Fund (DFF):

– Racistas devem ser impedidos de matar negros;
– O racismo nutriu líderes autoritários em busca de perpetuar a injustiça e a desigualdade;
– O racismo na filantropia priva os grupos liderados por negros de recursos vitais;
– O racismo é um câncer que está destruindo nosso país;
– Os ativistas negros estiveram na linha de frente para salvar nossa democracia da pandemias combinada de Covid-19 e autoritarismo

O DFF teve que fazer muito barulho para corrigir o curso da filantropia. O fundo precisava financiar os ativistas negros com recursos substanciais e não onerados, de uma forma que transferisse o poder dos privilegiados para os especialistas no assunto; construir parcerias baseadas na confiança; e criar uma comunidade de prática e aprendizado junto com nossos parceiros beneficiários.

Com esses elementos-chave em mente, comecei a ligar para líderes filantrópicos para falar sobre nossa visão. Alguns disseram “não” ou me ignoraram após a conversa inicial, porque estavam muito desconfortáveis com a abordagem do DFF; muitos continuaram a destinar recursos para grandes fundos dirigidos por doadores que permaneciam dentro de sua zona de conforto de poder e controle; mas a resposta aberta, corajosa e forte dos outros me surpreendeu. Líderes de mais 11 fundações se prontificaram rapidamente para estar à altura do momento. Em oito semanas, reunimos US$ 36 milhões em doações plurianuais irrestritas para grupos na linha de frente da luta pela nossa democracia. Isso representou uma nova forma de filantropia atendendo às nossas comunidades e eliminando barreiras e burocracia.

 

Democracia e antirracismo

 

O DFF inovou de várias maneiras importantes. Primeiro, os financiadores firmaram um compromisso de três anos para uma lista de dez beneficiários que seriam selecionados não por eles, mas por encarregados de confiança do fundo – um grupo poderoso de mulheres não brancas que convidamos a participar pois traziam consigo décadas de experiência coletiva e discernimento. Ao se afastar da prática filantrópica padrão, o fundo reconheceu que aqueles com experiência no financiamento de ativistas da causa estavam em melhor posição para decidir como implementar rapidamente recursos essenciais na luta pela justiça social.

Em segundo lugar, o DFF definiu a democracia pela perspectiva daqueles que são sistematicamente excluídos dela. Apesar da Covid-19, da brutalidade policial e dos contramanifestantes violentos, os organizadores do Black Lives Matter mostraram como a missão do movimento é fundamental para todos os outros esforços que visam melhorar o funcionamento de nossa democracia.

Em terceiro lugar, tornar-se ativamente antirracista na filantropia exige reflexão e aprendizado profundos. Em uma reunião inicial do DFF, a facilitadora e guia na nossa jornada de aprendizado, Tynesha McHarris, desafiou nossos parceiros filantrópicos a “ir a lugares onde se sintam nervosos”. Ao discutir a organização liderada por negros, ela afirmou em entrevista que devemos definir coletivamente “que tipo de poder é necessário para construir a democracia que dizemos que queremos e sabemos que precisamos”. Cliff Albright, do Black Voters Matter Capacity Building Institute, um beneficiário do DFF, evocou as lições da história negra ao desafiar os financiadores a “dar as chaves do carro” para organizações negras que estão construindo poder.

Em nossa jornada do DFF, estamos aprendendo que os esforços de organizar o financiamento exigem que nós – e não nossos beneficiários e parceiros neste trabalho – mudemos profundamente. Estamos examinando a história da opressão, como a supremacia branca impactou nossas comunidades e como os ativistas da linha de frente construíram confiança e relacionamentos como “a infraestrutura de construção de poder”, nas palavras de Cliff Albright.

Três ativistas beneficiários estão entre os muitos que nos inspiraram durante o processo que McHarris chama de “criar estratégias e aprender juntos”. São eles: LaTosha Brown, cofundadora da Black Voters Matter; Alicia Garza, cofundadora do Black Lives Matter que também iniciou o Black Futures Lab; e Dara Cooper, organizadora nacional da National Black Food and Justice Alliance (NBFJA). Seus atributos como líderes funcionam como diretrizes para orientar a destinação de nossos recursos: a liderança centrada na comunidade; nitidez e clareza de propósito; habilidade artística radical e criatividade no que tange estratégia e tática; e resiliência diante das adversidades e da opressão.

As origens de Brown no Alabama segregacionista foram pedagógicas a respeito de como táticas de intimidação de eleitores chegariam às comunidades negras e de como superá-las. Sua visão das prioridades estratégicas, que o DFF abraça, foram assim descritas por ela em entrevista à imprensa: “Em primeiro lugar, os eleitores precisam estar sempre informados e cientes do que está acontecendo ao seu redor; em segundo, organizações que façam advocacy devem receber bons recursos […]; e em terceiro, é necessária uma construção contínua do ecossistema de grupos cívicos e de grupos religiosos, que tenham capacidade de mobilizar as pessoas”.

Garza escreveu um importante livro sobre ativismo: The Purpose of Power: How We Come Together When We Fall Apart [A razão do poder: como nos unimos quando nos separamos]. “A construção do movimento não tem a ver com encontrar sua tribo, mas com fazer sua tribo crescer apesar das diferenças e se concentrar em objetivos comuns”, ela escreve. “Para mim, organizar [movimentos] diz respeito tanto à conexão humana e à construção de relacionamentos quanto a alcançar um objetivo político.” Nas discussões do DFF, ela expôs sua filosofia sobre como construir o poder da comunidade por meio da parceria e, finalmente, fortalecer nossa democracia.

Cooper nos ajuda a entender outro injustiça histórica do racismo: a remoção violenta de fazendeiros negros de suas terras, resultando em uma queda de 98% na propriedade de terras por pessoas negras no século passado. Como organizadora nacional da NBFJA, ela trabalha em um modelo de coalizão para dirigir a atenção a ataques deliberados e sistemáticos aos povos negros e indígenas no que tange sua capacidade de administrar a terra e nutrir nossas comunidades.

Alguns doadores do DFF ficaram inicialmente surpresos com a inclusão de ativistas pela justiça agrária em uma chapa democrática. No entanto, a reação deles é um exemplo perfeito de como a análise de um financiador pode carecer de insights trazidos pelos membros da própria comunidade. A propriedade sempre foi fundamental para determinar quais americanos são representados na vida política. Cooper traçou para nós um caminho em direção à mudança em que tomam parte educação, ativismo e políticas públicas. Como ela disse à revista Essence em 2019: “Boa parte do nosso trabalho é dedicado à criação de um fundo coletivo de terras, por meio do qual podemos ajudar as comunidades a retornar às práticas regenerativas que promovem uma melhor harmonia com a Terra e entre as pessoas”.

A NBFJA juntou-se aos senadores democratas Elizabeth Warren, de Massachusetts, e Cory Booker, de New Jersey, para elaborar o Justice for Black Farmers Act [estatuto dos fazendeiros negros], buscando oferecer um caminho de volta à propriedade rural por meio de investimentos federais de US$ 8 bilhões anuais em subsídios para fazendeiros negros. A terra define a soberania de uma comunidade e a comida incorpora sua cultura. Quando eles foram arrancados de suas terras pela ganância e pela política do governo, os próprios limites que moldam as comunidades lhes foram retirados. Nos estados do Cinturão Negro, onde ocorreram alguns dos roubos de terra mais flagrantes, não por coincidência, os proprietários de terras e negócios brancos mantêm fortes laços com gabinetes de políticos eleitos.

 

Financiar, ouvir e aprender

Essas narrativas de ativismo negro nos Estados Unidos são muito diferentes entre si, mas todas reforçam o objetivo do DFF de interromper práticas filantrópicas caducas, que retificam perspectivas brancas e privilegiadas, em vez de financiar novas soluções de construção de poder, definidas pela comunidade. Eles também mostram um caminho a seguir para a filantropia, muitas vezes perdida em seus próprios preconceitos.

Devemos primeiro fazer o capital girar e, depois, estabelecer a prática de aprender com os melhores professores – nossos beneficiários não brancos que, com sua experiência, estão se organizando para uma mudança sistêmica duradoura. Devemos investir em ecossistemas onde já estão acontecendo mudanças pujantes, onde recursos irrestritos alicercem a rede de conexões humanas. Os financiadores precisam entrar neste espaço com humildade, reconhecendo que o privilégio e a supremacia branca permeiam o setor da filantropia, e, então, perceber que precisam se educar no antirracismo.

Ao longo de toda a jornada de financiamento, precisamos de especialistas que guiem nossas decisões. Precisamos entender nossos próprios pontos cegos e aceitar que as pessoas mais próximas de um problema sabem melhor como resolvê-lo. Em vez de impor uma teoria de mudança de cima para baixo, os financiadores precisam prover suporte operacional geral aos ativistas e aos intermediários de financiamento nas comunidades. Eles também precisam perguntar aos organizadores quem, em sua rede, mais precisa de apoio e fornecê-lo com rapidez e generosidade.

Se você deseja criar uma mudança sistêmica, saia do banco do motorista e sente-se no do passageiro. A única exigência é ouvir. A recompensa é seu aprendizado. Jogue fora esse seu mapa velho. Os ativistas estão prontos para nos levar até um país mais justo – mas, para isso, os financiadores precisam ceder a direção e pagar o combustível.

A AUTORA

Crystal Hayling é diretora-executiva da Libra Foundation e fundadora do Democracy Frontlines Fund.



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