Unidos pela primeira infância no Ceará
A etapa que vai do nascimento aos 6 anos é crucial para o desenvolvimento humano, mas, no Brasil, há muitas lacunas para a implementação efetiva de políticas públicas para essa fase; uma iniciativa pioneira somou esforços do terceiro setor e do governo para desenhar um início de vida sólido para as crianças
Por Carolina Andrade e Sofia Rebehy
O município de Trairi fica na costa cearense, à beira do rio de mesmo nome, a quase 130 km de Fortaleza. Cerca de 11% de seus 58 mil habitantes têm até 6 anos de idade. A proporção local de crianças na primeira infância – como se designa essa faixa de desenvolvimento – fica acima da média nacional (8,9%) e da registrada no estado do Ceará (9,3%), segundo dados coletados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística no Censo Demográfico de 2022.
Além disso, Trairi tem 81% de sua população inscrita no Cadastro Único (CadÚnico), do governo federal, que coleta informações para inclusão em programas de assistência e redistribuição de renda. São cerca de 47 mil pessoas, das quais 41 mil têm renda familiar per capita de até meio salário mínimo.¹ O município também está entre as quatro com maior percentual de beneficiários do Cartão Mais Infância Ceará, benefício do governo do estado destinado às famílias em situação de vulnerabilidade social que tenham crianças de até 5 anos e 11 meses.²
Esse quadro fez com que Trairi fosse um dos municípios cearenses escolhidos como alvo de uma iniciativa pioneira, a Coalizão Ceará pela Primeira Infância, que uniu esforços das fundações Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), Porticus América Latina e Van Leer e do governo do estado. As diferentes instâncias trabalharam sob um modelo de governança colaborativa para mitigar questões emergenciais – mas também, e principalmente, pensar no futuro, projetando políticas públicas para essa etapa do desenvolvimento.
Até junho passado, quando completou 7 anos, Jhully Vitoria era uma das 58 mil crianças na primeira infância vivendo em Trairi. Juliana Costa Lima e seu marido, Anderson, deixaram Fortaleza com o plano de ficar apenas por alguns meses em Trairi, mas já estão na cidade há três anos. No começo, a menina sentiu falta dos shoppings e praias da capital, mas depois de algum tempo se abriu para as opções de lazer ao ar livre que a cidade oferece. Ela adora andar de bicicleta na rua e brincar na pracinha do seu bairro.
A mudança da família para Trairi teve, entre seus motivos, uma circunstância pouco feliz para Juliana. Na ocasião, seu filho mais velho, hoje com 19 anos, havia decidido ir morar com o pai. “Ali acabou meu chão”, resume ela, que conta ter entrado em depressão na época. Mas, assim como sua caçula, Juliana também se encontrou na nova cidade – e ser mãe de uma criança na primeira infância a ajudou nisso.
Cuidar de uma criança pequena não é missão simples, especialmente quando não é dividida com outra pessoa. Para que possam se tornar adultos saudáveis, as crianças precisam não apenas de cuidados de saúde em sentido estrito, mas também de amor, proteção e interação, o que tradicionalmente em nossa sociedade é função sobretudo materna. Por isso, promover o desenvolvimento infantil requer não só buscar o equilíbrio de trabalho intrafamiliar, mas também apoiar as famílias nessa tarefa. É nisso que tem apostado o estado do Ceará, na tentativa de mudar o rumo da história de crianças como Jhully.
Importância do desenvolvimento na primeira infância
Entre os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODSs) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, há uma série de metas diretamente ligadas a crianças de até 6 anos de idade, como a redução da mortalidade nessa faixa etária e também da taxa de mortalidade materna.
É na primeira infância que acontece boa parte do desenvolvimento cerebral, processo fortemente influenciado por fatores externos. Segundo especialistas, o contexto de vida das crianças nessa etapa se reflete em suas habilidades cognitivas e socioemocionais no longo prazo, além de ter efeitos sobre a saúde durante toda a sua vida. Por esse motivo, entende-se que políticas públicas especialmente direcionadas à primeira infância são fundamentais para garantir o pleno desenvolvimento das crianças, especialmente daquelas em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
Toda intervenção que pretenda promover o desenvolvimento infantil deve olhar não apenas para a criança, mas também para os adultos que a cercam. Aqui entra em cena o conceito de parentalidade, que engloba os comportamentos dos cuidadores das crianças, sejam eles seus pais biológicos ou não. Evidências científicas mostram que uma parentalidade positiva resulta em um ambiente de apoio e afeto, o que ajuda a criança a se desenvolver, a prepara para o convívio fora da família e previne violências de naturezas diversas.3
Considerando a multiplicidade de atores e condições necessárias para uma primeira infância saudável, qualquer abordagem dessa etapa de desenvolvimento, seja como tema de análise, seja como área de incidência, deve ser intersetorial. Assim, para serem bem-sucedidas, políticas voltadas para essa fase da vida precisam englobar ações de áreas diversas, como saúde, educação e assistência social, por exemplo.
A desigualdade socioeconômica no Brasil torna esse cenário ainda mais complexo. Questões estruturais, como saneamento básico e moradia, que ultrapassam o escopo de políticas direcionadas a uma faixa etária específica, são cruciais no que diz respeito à saúde e ao bem-estar de crianças; diversos estudos mostram que a falta de acesso a água tratada tem relação direta com a ocorrência de doenças diarreicas, que figuram entre as principais causas evitáveis de mortalidade na infância. Em outros termos, as crianças brasileiras são atingidas pela chamada pobreza multidimensional, entendida como aquela que resulta da inter-relação entre diferentes tipos de privação, não apenas aquelas de natureza econômica – segundo dados de relatório de 2023 divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mais de 60% da população brasileira até os 17 anos vive nesse quadro.4
As crianças e a lei no Brasil
Desde a redemocratização, o Brasil tem avançado na proteção dos direitos de crianças e adolescentes, inclusive em nível constitucional – a Carta Magna de 1988, em seu artigo 227, estabelece que é “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Em 1990, houve a sanção do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), elaborado para regulamentar o disposto na Constituição.
Em 2016, foi instituído o Marco Legal da Primeira Infância, lei 13.257, que reconheceu o período dos primeiros seis anos completos da criança como objeto de políticas públicas direcionadas e específicas, estabelecendo princípios e diretrizes para sua formulação. Por sua vez, o Plano Nacional pela Primeira Infância, já em sua segunda edição, se apresenta como documento orientador para ações de proteção e promoção dos direitos das crianças que estejam nessa etapa de 2020 a 2030.5
Mais recentemente, em junho de 2024, a Política Nacional Integrada para a Primeira Infância, prevista no marco legal, teve suas diretrizes estabelecidas pelo decreto 12.083, que também instituiu um comitê intersetorial responsável por coordenar e articular políticas públicas direcionadas a esse grupo etário.
Políticas públicas no Ceará
Nas últimas décadas, o estado do Ceará teve bem-sucedidas experiências de políticas públicas ligadas à infância, em especial na área da educação. Um exemplo é o Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic).6 Originado na experiência do município de Sobral, que a partir de 2001 definiu metas e traçou estratégias para solucionar a defasagem na alfabetização de seus alunos, o Paic conta com uma estrutura de governança que inclui o governo estadual, os municípios e entidades sociais, organizados em um comitê.
As evidências indicam que a iniciativa contribuiu para a melhoria do desempenho nas escolas dos municípios cearenses. De acordo com dados do Censo Escolar de 2021, o Ceará era o terceiro estado com o melhor desempenho no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) nos anos iniciais do ensino fundamental, empatado com São Paulo, e o primeiro nos anos finais. Vale destacar que a iniciativa também inspirou a instituição do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), encerrado em 2019.7
Essas políticas mostram por que o Ceará é referência na cooperação entre governo estadual e prefeituras. O estado adota um modelo descentralizado, em que as esferas atuam em regime de colaboração tanto técnica quanto financeira. Nesse modelo, os municípios não figuram como meros executores de políticas delegadas pela gestão estadual, mas sim como parceiros na divisão do trabalho.
Essa forma de trabalhar em conjunto está especialmente consolidada na área da educação, para a qual há um arcabouço institucional regionalizado que permite um olhar atento às especificidades de cada município. Construído de forma incremental ao longo dos anos, esse regime de cooperação incentiva a articulação de programas e esferas governamentais, além de fomentar a continuidade das políticas públicas mesmo com mudanças nas gestões tanto no estado quanto nos municípios.
Programa Mais Infância Ceará
Munido da bagagem do bem-sucedido regime de cooperação com os municípios no âmbito da educação, o governo estadual instituiu o Programa Mais Infância Ceará (Pmic) em 2015. Com base em evidências e levando em conta os indicadores específicos do estado, traçou-se um plano de ações para elaborar e implementar políticas públicas direcionadas ao desenvolvimento integral na primeira infância.
Antes da instituição do Pmic, foi feito um diagnóstico do contexto, com apoio do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), considerando tanto os principais indicadores ligados à primeira infância quanto as políticas existentes direcionadas a esta faixa etária.
O programa parte de três princípios – política baseada em evidências, intersetorialidade e equidade – e tem ações em quatro pilares:
– Tempo de nascer: com foco no cuidado desde a gestação, tem o objetivo de reduzir a morbimortalidade materna e perinatal;
– Tempo de crescer: privilegia o desenvolvimento infantil do ponto de vista integral, incluindo o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários;
– Tempo de brincar: usa a ludicidade como meio para favorecer desenvolvimento e socialização da criança;
– Tempo de aprender: busca atender as metas de universalização e qualificação na educação infantil e ampliar a disponibilidade de creches, entre outras medidas.
A iniciativa conta ainda com um mecanismo de transferência de renda direcionado a famílias de baixa renda e que tenham crianças na primeira infância, o Cartão Mais Infância Ceará (Cmic), citado no começo deste texto e que foi tema de texto na edição especial “Insegurança alimentar” da SSIR Brasil. De acordo com dados do governo do Ceará, cerca de 150 mil famílias eram beneficiárias do Cmic em abril de 2024.8
O Pmic é uma iniciativa intersetorial desde sua concepção, tanto do ponto de vista da abordagem quanto da coordenação, com a articulação de diferentes secretarias e prevendo cooperação entre estado e municípios. As ações compreendem desde estratégias permanentes para oferta de serviços ao público-alvo até a capacitação de profissionais e cuidadores, passando pelo aperfeiçoamento da gestão pública dos programas e serviços para a primeira infância. O programa é realizado em parceria com os municípios, por meio do Comitê Consultivo Intersetorial das Políticas de Desenvolvimento Infantil, que tem hoje representantes de 15 secretarias estaduais9 e conta com o apoio de organizações não governamentais.
Uma das ações previstas no programa era auxiliar na construção ou reformulação de planos da primeira infância para os municípios do estado – atualmente, todas as 184 cidades cearenses contam com o instrumento. Esse processo foi feito de forma colaborativa entre representantes do estado, dos municípios e do programa Primeira Infância no Sistema Único de Assistência Social (Suas) – Criança Feliz, com consultoria técnica do Instituto da Infância.
Unindo forças dispersas
A Coalizão Ceará pela Primeira Infância nasceu em 2019, quando as fundações Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV), Porticus América Latina e Van Leer resolveram se unir após constatarem que um maior planejamento e coordenação poderia aumentar a eficiência das estratégias e da alocação de investimentos no Ceará. Até então, as organizações se relacionavam com o governo estadual separadamente, ainda que compartilhassem o foco no desenvolvimento da primeira infância.
As fundações já realizavam um trabalho conjunto como integrantes do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), que visa à produção e à disseminação de conhecimento científico para o fortalecimento de ações para essa etapa de vida. Além das três fundações, o NCPI tem como parceiros a Universidade Harvard e o Insper, buscando levar para a prática o conhecimento teórico baseado em dados. Segundo Luis Felipe Soares Serrao, gerente sênior de programas da Porticus, os anseios do governo do Ceará nesse mesmo sentido se encontraram com a atuação das fundações no NCPI, um “processo de influência sobre quem toma decisão, sobre quem quer fazer primeira infância em termos de política pública”.
Os promissores resultados educacionais estaduais foram um dos fatores que influenciaram na decisão do grupo de agregar seus conhecimentos à gestão pública local. “O Ceará tem indicadores importantíssimos em educação, que vão nos dando pistas de que eles fizeram coisas bem-feitas, de que vale a pena compreender melhor, ajudar a ter mais luz sobre o que eles estão fazendo para poder influenciar outros estados”, diz Cláudia de Freitas Vidigal, representante da Fundação Van Leer no Brasil.
Nas palavras de Thaís Sanches Cardoso, ex-coordenadora sênior de programas da Van Leer, o histórico de colaboração entre estado e municípios também foi fator relevante, trazendo mais segurança para que as fundações fizessem investimentos robustos nos projetos. “Para poder testar também um modelo de governança colaborativa, era interessante já haver uma estrutura definida que permitisse colher aprendizados e tirar boas práticas para levar para outros estados”, complementa.
Do lado do estado, a ideia de atuação em conjunto com organizações não governamentais emerge do Programa de Liderança Executiva em Desenvolvimento da Primeira Infância. Essa estratégia do NCPI busca sensibilizar, capacitar e mobilizar formuladores de políticas públicas, gestores públicos e líderes da sociedade brasileira para atuarem pelo pleno desenvolvimento da primeira infância.
Em 2015, uma das participantes da formação foi Onélia Santana, à época primeira-dama do estado. O primeiro planejamento estratégico do Programa Mais Infância Ceará nasceu como trabalho final de curso apresentado por ela. À época, o Pmic já existia, mas recém-criado, “ainda tinha muitos desafios, e a gente precisava reunir aqueles atores e pensar o que ainda era necessário focar”, recorda Santana, que hoje é secretária de Proteção Social do Ceará.
“O Mais Infância se conecta com esse desejo de trabalhar de forma mais territorializada, a partir de uma perspectiva de colaboração entre sociedade civil, filantropia internacional e nacional e governo, tudo isso trazendo muito conhecimento científico, produção de conhecimento, tomada de decisão, planejamento estratégico, governança”, diz Serrao, da Porticus.
Alguns elementos são percebidos como condição essencial para o fortalecimento de políticas públicas para a primeira infância, como o compromisso político dos gestores. “Você só pode se apaixonar por aquilo que você conhece. O gestor que está à frente da política tem que se apaixonar, tem que estar envolvido de corpo e alma, tem que entender a importância”, opina Santana.
Uma das formas encontradas para garantir esse conhecimento no início da implementação do Pmic foi a realização de seminários. Neles, a iniciativa foi apresentada a atores-chave, como prefeitos e secretários municipais, com o objetivo de engajá-los na pauta. Era importante os gestores conhecerem o programa e entenderem suas necessidades para colaborar. Se não, exemplifica a secretária, “na hora que eu solicitar um técnico para participar de uma formação, ele não vai liberar”.
Gestores públicos e representantes das fundações são unânimes em destacar princípios fundamentais da governança colaborativa como peça essencial para o sucesso da coalizão. Entre esses princípios, estão a construção de uma crença compartilhada, o estabelecimento da confiança entre as partes e a combinação eficiente de recursos – sejam eles financeiros, técnicos ou humanos –, a transparência na tomada de decisões e a comunicação efetiva.
A busca por um denominador comum entre os parceiros começou com um diagnóstico feito em 2019, com o uso do protocolo Primeira Infância para Adultos Saudáveis (Pipas) e que contemplou 16 municípios do Ceará – entre eles, Trairi, onde vive a família de Juliana Costa Lima.
As informações trazidas pelo diagnóstico foram alvo de discussão em oficinas de planejamento estratégico, com a presença de integrantes do governo estadual – de membros do gabinete a titulares e técnicos de secretarias – e de representantes das fundações da coalizão.
Esse diagnóstico levou em conta as necessidades do estado em relação às políticas públicas para a primeira infância. As fundações avaliaram em quais pontos suas contribuições melhor serviriam, “a partir das vivências, expertises, estratégias e recursos” dos envolvidos, explica Marina Fragata Chicaro, diretora de políticas públicas da FMCSV. Nas oficinas, foram identificados os principais problemas que deveriam ser alvo de políticas públicas, além dos resultados esperados.
Por outro lado, consideraram-se as competências que as próprias fundações poderiam colocar na mesa para apoiar o fortalecimento das políticas voltadas ao desenvolvimento infantil no Ceará. “A gente achou que era valioso fazer um diagnóstico um pouco mais acurado, que permitisse também que o estado pensasse para além do que é a estratégia da fundação”, relembra Chicaro.
Assim, com o objetivo de promover o desenvolvimento das crianças cearenses e de suas famílias, a coalizão priorizou, para a atuação no período 2020-2022, quatro metas:
Ampliar o percentual de crianças das 48 mil famílias mais vulneráveis em atividades de estimulação integral;
Reduzir a violência doméstica contra crianças;
Promover a melhoria da qualidade da educação infantil;
Desenvolver um modelo de gestão integrada para as políticas de primeira infância para as famílias mais vulneráveis.
Para alcançar estes objetivos, foi desenhado um portfólio de iniciativas a serem implementadas em 24 municípios-piloto, divididas em quatro eixos: educação infantil, parentalidade, gestão e cidades (ver quadro nesta página).
Representando as três entidades, a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal assinou o termo de cooperação com o governo do estado do Ceará, cabendo a este a articulação com os municípios. O acordo não previa repasses financeiros, mas o apoio técnico e estratégico das fundações, de acordo com suas áreas de especialidade.
Ao longo da implementação, foram realizados encontros entre os parceiros envolvidos para a troca de experiências, impressões e expectativas sobre as iniciativas. Nesse contexto, coube às fundações a articulação com parceiros técnicos e órgãos públicos. “Nosso papel na coalizão está sendo também, às vezes, provocar para que as coisas aconteçam, demandar, retomar alguns combinados e repactuar quando necessário também”, diz Karina Fasson, gerente de políticas públicas da FMCSV.
Um novo olhar para os pais
Uma das iniciativas implementada pela Coalizão em Trairi foi o programa ACT – Para Educar Crianças em Ambientes Seguros. A palavra que nomeia essa metodologia baseada em evidências significa “agir”. Criada pela Associação Americana de Psicologia (APA, na sigla em inglês), ela existe no Brasil desde 2012 e, no Ceará, desde 2020.10
Com encontros semanais conduzidos ao longo de dois meses por facilitadores treinados, o programa, focado nos pais e cuidadores de crianças de até seis anos, como era o caso de Juliana Costa Lima, busca fortalecer a parentalidade positiva nas famílias, melhorando ou mudando práticas educativas e atuando na prevenção de violência contra crianças por meio da disseminação de conhecimento.
O público prioritário do ACT são famílias beneficiárias do Cartão Mais Infância Ceará, que recebem um certificado de participação no final do ciclo. “Eu quis, eu fui, eu abri meu coração, realmente, para mudanças”, conta a mãe de Jhully Vitoria.
Juliana diz não ter ideia de quem a indicou para participar do ACT em 2022. “Mas fez bem. Hoje agradeço a quem colocou meu nome.” O convite chegou por uma mensagem da escola, mas ela não se interessou em um primeiro momento, conta. Foi o acaso que agiu. No dia da primeira das reuniões, ela estava fazendo uma diária como faxineira no local onde elas ocorreriam – uma sala cedida por uma igreja católica.
De acordo com Nayana Silveira, psicóloga e supervisora do ACT em Trairi, um dos fatores que favorecem a implementação do programa – e, consequentemente, sua sustentabilidade no longo prazo – é o seu alinhamento ao trabalho que já é realizado nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), equipamentos que oferecem serviços de proteção do Suas, entre os quais estão ações de apoio no cuidado com os filhos e de fortalecimento da convivência com a família e com a comunidade.
“O ACT casa muito com o trabalho que a gente faz no Cras. Ele veio como um presente para a gente, porque é um programa muito rico e, ao mesmo tempo, muito simples de executar. E é um programa que não tem custo, principalmente para as famílias, que são vulneráveis. Por isso o município abraçou e a gente deu continuidade”, explica Nayana.
Juliana afirma que, como reflexo da criação que teve em sua infância, acreditava que seu papel como mãe era dar à criança aquilo que ela desejasse e mantê-la sob vigilância, nada mais. “Eu não tive amor e nem carinho da minha mãe”, conta. Ela avalia que essa atitude a tornou possessiva em relação ao filho mais velho. “Eu prendia muito ele. Queria meu filho guardado num potinho.”
Ao mesmo tempo, esse olhar a levou a adotar uma postura mais focada na punição do que na disciplina. “Eu nunca disse não, eu nunca botei de castigo, eu não sabia essas coisas”, relembra. “Não tinha paciência. Eu ia ensinar meu filho era com a chinela do lado.” Isso mudou com o ACT. “Hoje eu entendo que mãe não tem que dar só o que o filho quer. Mãe também tem que dizer não, mãe tem que ser presente em afeto, em cuidados, em amor.”
Desafios de gestão
A parceria com a Secretaria de Educação, que incluiu a certificação de professores na metodologia para atuação como facilitadores junto às famílias participantes, foi fundamental para o fortalecimento da implementação do ACT em Trairi, considerando o contexto do município. Essa estratégia também responde ao desafio de sustentabilidade posto pela rotatividade de profissionais, uma vez que a pasta da Educação tem maior número de cargos efetivos do que a de Proteção Social.
Aparecida Prado, responsável pela Coordenadoria de Educação e Promoção Social (Coeps) da Secretaria Estadual de Educação, que cuida das políticas para primeira infância, explica que a pasta se utiliza de sua estrutura descentralizada para formar servidores municipais e permitir a expansão de iniciativas da coalizão, como o programa Crescer Aprendendo e o Sistema de Avaliação da Educação Infantil. Essa formação se dá por meio das Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação (Credes), que hoje são 20.
“A gente apresenta a proposta para as Credes e elas levam para os municípios”, que então escolhem se irão ou não aderir. “A gente dá um passo e o município dá outro”, resume Prado.
Na Secretaria de Proteção Social, o cenário era outro. Ali, foi necessário definir mais claramente uma estrutura de governança dos projetos, o que passou também pela reorganização do Pmic. Na atual gestão, o programa ganhou o status de coordenadoria, alocada dentro de uma secretaria executiva também nova, organizada com o apoio da coalizão. “Não basta a gente transferir a tecnologia, no sentido de formar as pessoas, se não tiver uma governança, se não tiver organizado quem vai fazer o quê em relação a esse programa”, avalia Karina Fasson, da FMCSV.
Na fase atual, o foco da Coalizão Ceará é exatamente fazer essa transferência de tecnologia para assegurar a continuidade das ações depois que as fundações da iniciativa deixarem de atuar diretamente. Fasson avalia que, quando começa esse processo, fica evidente o impacto que ele sofre em decorrência da estrutura administrativa e organizacional das pastas responsáveis por cada ação.
Todos os envolvidos na coalizão veem na rotatividade das equipes um desafio para a continuidade e a sustentabilidade de qualquer política pública. “A fragilidade não é na ação, não é da metodologia, a fragilidade é nacional, da política da assistência social”, explica Dagmar Soares, coordenadora do Pmic. Marina Fragata Chicaro, da FMCSV, concorda. “São desafios estruturais, de capacidade técnica mesmo – as equipes rotativas, as equipes incompletas, as agendas que mudam”, explica ela.
Treinar os treinadores
Dentro da metodologia ACT, os facilitadores devem receber formação teórica e prática conduzida por mentores certificados pela APA, os master trainers. No Brasil, há atualmente duas master trainers autorizadas a capacitar facilitadores do ACT, Elisa Rachel Pisani Altafim e Maria Beatriz Martins Linhares, da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadoras de desenvolvimento infantil do Instituto para a Valorização da Educação e da Pesquisa no Estado de São Paulo (Ivepesp).
O ACT Ceará recebeu uma autorização da APA para formar novos master trainers. Trata-se de uma experiência inédita, que será alvo de avaliação, e cujo objetivo é diminuir a dependência de atores externos por parte do governo estadual. Esse é mais um passo no sentido da transferência de tecnologia, visando garantir as capacidades necessárias para implementar o ACT nos municípios.
Modelo para a implantação, Trairi vem honrando o compromisso da continuidade: o município está prestes a finalizar o 43º grupo do ACT, e sua equipe já apoiou 240 responsáveis por crianças pequenas na adoção de práticas menos punitivas de cuidar e educar, com impactos promissores que vão muito além da primeira infância. O programa também foi incluído no Plano Municipal pela Primeira Infância da cidade, como estratégia de apoio às famílias para redução da violência doméstica contra crianças.
Do ponto de vista das fundações, um dos desafios foi encontrar o caminho para a atuação como frente única. Marina Fragata Chicaro, da FMCSV, qualifica esse como “um dos maiores aprendizados” do processo – “como a gente se coordena com as nossas identidades, com as nossas estratégias e dá um tom unificado, de coalizão, e não de três atores em parceria com o governo”. Ela acrescenta que a coalizão caminhou para um modelo de governança “que desse sustentação para as tomadas de decisão mais estratégicas”, ao mesmo tempo que progressivamente construiu “um lugar de um acompanhamento mais macro das decisões sobre os desafios e de compartilhamento de aprendizados”.
Aprendizados da atuação
Para Dagmar Soares, do Pmic, as iniciativas da coalizão trouxeram bons frutos para todos os envolvidos. “As fundações trabalham muito com municípios, e trabalhar com [governo do] estado era e é uma realidade nova”, diz. O governo do Ceará, por sua vez, pôde ter acesso a metodologias inovadoras e cientificamente testadas para aplicação em campo, que se integraram ao repertório de ferramentas dos gestores públicos no estado. “A gente não tem como planejar, implementar [políticas públicas] sem ter parceiros, e principalmente parcerias que têm especialistas na área”, diz Aparecida Prado, da Secretaria de Educação.
No mesmo sentido, Onélia Santana avalia que a presença das fundações, com suas competências comprovadas, fortalece também a relação entre governo do estado e municípios. “Isso nos dá credibilidade com os municípios, porque a gente não trabalha em cima do que a gente acha, a gente trabalha em cima de evidência científica, de resultados, de indicadores”, afirma a secretária estadual de Proteção Social.
Mas há caminhos de melhoria a desenvolver em futuras iniciativas em coalizão. Thaís Sanches Cardoso aponta que seria bem-vinda uma maior participação dos municípios desde o início do planejamento das ações, inclusive como forma de fomentar seu engajamento e a sustentabilidade das ações. “Se a gente não tem pessoas do governo engajadas e aliadas, colocando isso com prioridade nos seus planos de governo. fica muito difícil de implementar”, avalia a ex-coordenadora de programas da Fundação Van Leer.
A atuação compartilhada também trouxe aprendizados e novas possibilidades para a relação das fundações entre si. “A Coalizão Ceará pela Primeira Infância criou um modelo de operação em que tudo o que a gente está fazendo gera processos mais transparentes e colaborativos entre as fundações, para ganhar eficiência”, segundo Claudia Vidigal, da Van Leer.
Marina Fragata Chicaro, da FMCSV, complementa. “Unir as expertises, os aprendizados de cada uma das fundações, nos torna mais potentes para conseguir abraçar uma parcela dos desafios de primeira infância que estão colocados”, diz.
Futuro da coalizão
Em 2024, a Coalizão Ceará pela Primeira Infância iniciou seu último ciclo de trabalho. Além da transferência de tecnologia dos programas já implementados, essa etapa compreende um passo adicional – incluir na agenda da primeira infância a questão da equidade sob o prisma racial.
Essa provocação levou ao lançamento, em maio de 2024, da estratégia Primeira Infância Antirracista, que busca atrair consciência para o impacto de questões étnico-raciais no desenvolvimento de crianças negras e indígenas. A iniciativa é encampada pelo Unicef, com financiamento das fundações Porticus, Van Leer e Maria Cecília Souto Vidigal.11
Individualmente, a Van Leer segue atuando no Ceará por meio do programa Família Mais, focado no bem-estar de cuidadores e cuidadoras de crianças, em colaboração com o governo do estado, e também da rede Urban95, que fomenta políticas públicas de promoção de bem-estar e qualidade de vida para crianças de até 6 anos em cidades – fazem parte Fortaleza, Crato e Sobral.
Neste momento, as organizações envolvidas não têm planos de levar para outros estados o modelo de ação usado no Ceará. Por lá, a previsão é que a continuidade das ações seja assegurada no Plano Estadual de Primeira Infância, documento orientador de políticas públicas que ainda está em fase final de aprovação.
O plano cearense foi elaborado com apoio técnico e financeiro das fundações da coalizão, o que possibilitou a contribuição dos especialistas das entidades nas conversas e a contratação de uma consultoria para guiar o processo de construção. Também participaram do processo as organizações que compõem o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará.
Independentemente do fim do trabalho imediato da coalizão em campo, porém, seus efeitos permanecem. Em Trairi, Juliana lamenta que sua participação no ACT tenha acabado, mas acredita que o programa lhe deu um presente precioso. “Eu mudei totalmente. Eu mudei como mãe, eu mudei como esposa, eu mudei como pessoa.”
Notas
₁ Informações referentes a junho/2024 e obtidas via Cecad, plataforma do MDS que extrai os dados diretamente da base do CadÚnico https://cecad.cidadania.gov.br/painel03.php
2 https://bigdatasocial.irislab.ce.gov.br/analiticos/auxilios/cartao-mais-infancia
3 Sonia Isoyama Venancio et al., “Pesquisas de implementação na área da primeira infância: revisão de escopo”, Acta Paulista De Enfermagem, 36, 2023. <https://doi.org/10.37689/acta-ape/2023ARSPE023073>.
4 Ver estudo “As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil”, <https://www.unicef.org/brazil/relatorios/as-multiplas-dimensoes-da-pobreza-na-infancia-e-na-adolescencia-no-brasil >
5 A versão revisada e atualizada em 2020 do plano elaborado pela Rede Nacional Primeira Infância pode ser acessada online. <https://andi.org.br/wp-content/uploads/2021/07/andi-plano-nacional-pela-primeira-infancia-pnpi-web.pdf>
6 O programa, adotado como política estadual em 2007, atualmente se chama Mais Paic e abrange todos os anos do ensino fundamental, além do ensino infantil, com frentes que vão além da garantia da alfabetização na idade certa. Cf. <https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/40880/3/2019_dis_jladeodatojunior.pdf> e <https://paicintegral.seduc.ce.gov.br/2022/04/18/eixos-do-programa-maispaic/>
7 Atualmente, está em vigor o programa Criança Alfabetizada, que busca implementar políticas para que crianças saibam ler e escrever até o 2º ano do ensino fundamental, além da consolidação da alfabetização de alunos até o 5º ano do ensino fundamental.
8 Dados coletados no Big Data Social, a partir da base do sistema Cmic, atualizado em 25/06/2024 <https://spssocial.sps.ce.gov.br/cartao-cmic>
9 As secretarias são: Proteção Social, Educação, Saúde, Cultura, Cidades, Turismo, Planejamento e Gestão, Meio Ambiente e Mudança do Clima, Desenvolvimento Agrário, Esportes, Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará, Direitos Humanos, Igualdade Racial, Povos Indígenas e Mulheres.
10 Mais informações podem ser encontradas na página do Laboratório de Pesquisa em Prevenção de Problemas de Desenvolvimento e Comportamento da Criança: <https://lapredes.fmrp.usp.br/programa-act-ceara/> e no ebook Parentalidade e infância protegida, de Elisa Rachel Pisani Altafim e Maria Beatriz Martins Linhares, publicado pelo Ivepesp em 2024: <https://issuu.com/fmcsv/docs/parentalidade_e_infa_ncia_protegida_ebook>
11 A atenção especial à pauta racial na construção do plano, por exemplo, foi incentivada pelas fundações da coalizão. A página da iniciativa no site do Unicef traz mais informações <https://www.unicef.org/brazil/pia>.