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Esboço de uma história antiga

Densamente ocupada no passado, a Amazônia que conhecemos hoje é resultado de processos de interação com povos indígenas, e essa história tem sido recontada pela arqueologia e pela antropologia; você conhece?

Por Eduardo Góes Neves

Castanha-do-pará (Shutterstock)

 

Em 2008, o arqueólogo Michael Heckenberger e um grupo de colaboradores brasileiros e estrangeiros, incluindo indígenas como o cacique Afukaká Kuikuro, do alto Xingu, publicaram na revista Science um artigo no qual propunham que as sociedades indígenas antigas do Alto Xingu, incluindo os ancestrais dos Kuikuro, viviam há cerca de mil anos em grandes assentamentos conectados por estradas lineares. Por constituírem redes regionais, poderiam ser caracterizadas como urbanas. Em outubro de 2023, o mesmo periódico publicou um texto assinado por dezenas de cientistas, segundo o qual mais de 10 mil estruturas de terra – aterros, valas, estradas, açudes etc. – devem existir escondidas sob a espessa copa das árvores que cobrem áreas da Amazônia. É curioso que, neste último caso, a maioria dos autores sejam cientistas naturais, um grupo que sempre aceitou com relutância a hipótese, proposta pela arqueologia, de que a região amazônica foi densamente ocupada pelos povos indígenas no passado e, sobretudo, de que a Amazônia que conhecemos hoje, incluindo suas matas e seus solos, resulta parcialmente de mudanças exercidas pelos povos indígenas que a habitam há milênios.

Graças a políticas de ação afirmativa e a outras políticas públicas, há hoje na Amazônia diferentes cursos de graduação em arqueologia que têm ampliado o ingresso de estudantes, incluindo indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Esses cursos absorveram jovens profissionais egressos dos programas de pós-graduação que também se consolidaram no Brasil na mesma época. Felizmente, a estrutura se mostrou robusta para sobreviver aos ataques que a ciência brasileira sofreu nos últimos anos.

O amadurecimento da arqueologia no país também foi fator importante nessa mudança. Uma parte dos profissionais nascidos na década de 1960 fez sua formação no exterior – graças a ações induzidas de agências de fomento, como a Capes e o CNPq, porque os cursos de pós-graduação só surgiram na década de 1990. Essa oportunidade foi fundamental para inserir a pesquisa aqui realizada no campo cosmopolita que caracteriza a prática de pesquisa contemporânea internacional. Finalmente, há que destacar a contribuição teórica da antropologia social: William Balée e Darrell Posey, que trabalhavam na Amazônia Oriental, no Pará e Maranhão, propunham, já nos anos 1990, que os povos indígenas exerciam um papel importante na modificação de áreas de floresta e de produção de paisagens – por meio do uso controlado do fogo nas roças, do plantio de mudas de árvores ao longo das trilhas que cortam as matas e do enriquecimento do solo pela compostagem de lixo orgânico. Em um trabalho clássico publicado em 1989, Balée propôs que cerca de 11% das matas de terra firme resultariam do manejo exercido pelos povos indígenas ao longo do tempo. Se tais hipóteses careciam à época de uma perspectiva histórica aprofundada que permitisse a compreensão do impacto dessas práticas em escalas milenares, elas proveram à arqueologia um programa que orientou a produção de conhecimento nas últimas décadas. Aprendemos, assim, que a Amazônia já era ocupada pelos ancestrais dos povos indígenas há pelo menos 13 mil anos, graças a achados feitos no Pará e na Colômbia, onde também se documentou uma arte rupestre que está entre as mais antigas do continente. Trabalhos realizados em Rondônia, em Monte Alegre e na Bolívia, mostram que há 9 mil anos plantas como a mandioca, a castanha-do-pará e a goiaba-araçá já eram consumidas e talvez cultivadas pelos povos que viviam nesses lugares. Tais achados confirmam hipóteses, antes baseadas em dados genéticos, que colocavam a Amazônia como um centro antigo e independente de domesticação de plantas – ou de “neolitização”, como se diria em contextos do Velho Mundo – e de produção de agrobiodiversidade. De fato, a quantidade de plantas hoje disseminadas pelo planeta e que foram inicialmente cultivadas na Amazônia ou em seu entorno impressiona: mandioca, cacau, abacaxi, maracujá, mamão, amendoim, tabaco, taioba, açaí, castanha-do-pará, guaraná, ingá, cupuaçu, pimenta murupi, goiaba e pupunha, para nomear apenas algumas. A maioria é formada por tubérculos e por árvores ou arbustos: são batatas e frutos. Dos poucos grãos, o destaque vai para o milho, que, apesar de sua origem no sul do México, já estava presente na Amazônia há cerca de 6 mil anos, onde passou por um processo local de seleção genética independente de seu centro de origem. Dessas plantas, muitas se encontrariam em uma espécie de “estágio intermediário”, nas palavras de Claude Lévi-Strauss, entre sua condição selvagem e seu cultivo pleno. A partir do fim do Pleistoceno – ao redor de 12 mil anos atrás –, de maneira independente, populações humanas estabeleceram relações com plantas ou animais selvagens que levaram ao surgimento de novas espécies, processo conhecido como domesticação e que compõe uma parte importante do que, ainda na década de 1930, o arqueólogo marxista Vere Gordon Childe de nominou como “revolução neolítica”.

Açaí (Shutterstock)

O caso amazônico é, no entanto, particular. Embora a região tenha sido um centro importante de cultivo de plantas, muitas delas, como a castanha-do-pará ou o açaí, nunca foram domesticadas. Inúmeras outras, por sua vez, ocupam o tal “estágio intermediário”. Por muito tempo, o reconhecimento dessa condição transitória levou a comunidade arqueológica nacional a uma certa depressão teórica e nos fez propor que nossos ancestrais indígenas teriam sido algo como agricultores incipientes, a caminho de um neolítico que nunca se realizou plenamente. Tal perspectiva reflete, no fundo, mais um problema com ideias que vêm de fora do que uma espécie de incapacidade atávica dos povos daqui. Não há razão alguma pela qual processos históricos teriam acontecido de maneira universal da mesma forma no passado da humanidade. Nosso neolítico foi selvagem, baseado em ontologias que não separam de maneira clara os chamados domínios da natureza dos domínios da cultura, como não se cansam de nos lembrar os povos indígenas e seus pensadores.

Um aspecto interessante desse neolítico tropical, que o antropólogo Carlos Fausto e eu chamamos de processo de familiarização, em vez de domesticação, tem a ver com a notável produção e valorização de diversas variedades de plantas cultivadas. Diversas autoras já chamaram a atenção para a quantidade imensa de variedades de plantas que são cultivadas hoje nas roças indígenas pela Amazônia. A pensadora Jerá Guarani mostra o mesmo para os povos Guarani da Mata Atlântica e vai além ao demonstrar que tais roças diversas – refúgios de agrobiodiversidade – são também espaços poderosos de resistência, de produção e circulação de práticas de conhecimentos, plasmadas nas plantas e nos espaços de cultivo, frente às forças avassaladoras que visam exterminar quaisquer formas diferentes de vida.

Mas é talvez na notável diversidade linguística vista entre os povos indígenas da América do Sul tropical que tal processo de produção de diferença pode ser mais bem aferido. A quantidade de línguas faladas no norte da América do Sul tropical – incluindo a Amazônia, Orinoquia e Guianas – pode chegar a cerca de 300. Tais línguas estão agrupadas em 50 unidades que podem ser famílias, ou seja, grupos de línguas com origem comum determinada, ou línguas isoladas. A diversidade linguística da Amazônia está entre as maiores do planeta e é mais notável porque se desenvolveu em um quadro sem aparentes barreiras geográficas que poderiam ter isolado populações locais e levado à emergência dessa diversidade. Na ausência desses fatores, bem como do Estado, há de se considerar que essa imensa diversidade emergiu como um processo ativo de valorização e cultivo das diferenças por meio das línguas.

A partir de cerca de 2.500 anos atrás, um notável processo de adensamento demográfico se verificou no que é hoje o território brasileiro. Na Amazônia os testemunhos estão registrados em sítios arqueológicos dispersos por áreas de dezenas de hectares e compostos por depósitos espessos de cerâmicas associadas a solos escuros e muito férteis, conhecidos como “terras pretas”. Embora as mais antigas datem de mais de 5 mil anos, é a partir dessa época que se tornaram disseminadas por grandes partes da Amazônia. Terras pretas são fantásticas devido à sua estabilidade; até sob as extremas condições pluviais amazônicas, não perdem sua fertilidade mesmo depois de séculos. Tais solos se formaram graças às atividades dos povos indígenas, por meio de práticas que continuam ativas. Escavei e mapeei dezenas desses sítios na Amazônia central na década de 2000, e em todos os casos os depósitos mais espessos de terras pretas em cada sítio estavam associados a áreas de atividades domésticas. Terras pretas, portanto, são um composto, lixo orgânico adicionado de carvões queimados a baixa temperatura e, em alguns casos, fragmentos de cerâmica. Trata-se de maneiras sofisticadas de produzir solos cuja lógica não foi totalmente compreendida pela agronomia contemporânea. Outras manifestações desse processo de crescimento demográfico ocorrido no primeiro milênio da Era Comum são visíveis nos sítios arqueológicos da região: aterros artificiais associados a cerâmicas altamente elaboradas na parte leste da Ilha de Marajó, o urbanismo de baixa densidade do Alto Xingu – formado por grandes aldeias conectadas por estradas lineares –, centenas de estruturas de terra de formato geométrico – quadrangular ou circular –, conhecidas como geoglifos, conectadas por estradas no leste do Acre, sul do Amazonas e oeste de Rondônia, estruturas de pedra, como se fossem menires, associadas a câmaras funerárias na costa do Amapá.

Nos últimos séculos anteriores ao início da colonização portuguesa, a diversidade de formas de vida indígena na Amazônia era muito grande. As hipóteses atuais sustentam que havia entre 8 milhões e 10 milhões de indígenas vivendo na grande Amazônia em 1492. No século XVIII, essa população havia sido drasticamente reduzida devido à propagação de doenças, à escravidão e à guerra. Quando os primeiros cientistas europeus passaram a viajar e descrever a Amazônia, a partir dessa mesma época, encontraram vazias áreas que antes eram ocupadas. A ausência da rocha como material construtivo reforçou essa imagem de vazio e atraso que, infelizmente, perdura até hoje. Para que essa perspectiva mude, será importante abandonarmos o termo “pré-história” e passarmos a falar em “antiguidade” no campo do conhecimento referente à história do Brasil antigo. Embora singela, essa simples operação garantiria aos povos indígenas o direito à História, que também lhes foi usurpado pela violência.

O AUTOR

Eduardo Góes Neves é arqueólogo, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, tem mais de 30 anos de experiência de pesquisa na Amazônia.



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