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Reflexões sobre a desigualdade por meio da arte e da narrativa na China

Uma entrevista com o artista Yulu Ge sobre criatividade, equidade e inovação social

Por Ruijie Guo, Chengchang Liu e Lu Tian

Ilustração de Raffi Marhaba, The Dream Collective

 

E m 2013, o artista Yulu Ge colocou uma placa com seu nome ao lado de uma rua sem nome em Pequim. A ideia era explorar o que aconteceria quando um nome privado fosse colocado em um espaço público, examinar a relação entre os dois, explorar as possibilidades e as reações imprevistas a elas. Para uma pessoa que não lê chinês, os caracteres podem parecer grafite. Coladas a uma pessoa, eles se tornam o nome de uma pessoa. Em uma rua, tornam-se um nome de rua. 

A cidade acabou removendo a placa e, mais tarde, batizou a rua como Baiziwan South Road. Mas a colocação do objeto – parte de um projeto maior intitulado 葛宇路 (“Ge Yu Lu”) – exemplifica o tipo de arte em que Ge se envolve. Por meio da arte, ele chama a atenção para as coisas que a sociedade não questiona habitualmente, invertendo-as, manipulando-as e subvertendo-as.

Ge adotou uma abordagem semelhante com outro projeto, Holiday Time, inspirado nas interações com a equipe da Fei Arts, uma galeria em Guangzhou. Ele observou que, quando financiadores (patronos, colecionadores, consórcios) e criadores (artistas, críticos, curadores) querem cortar custos, os funcionários da galeria e da gráfica arcam com a pressão. Os holofotes do mundo da arte tendem a iluminar os criadores e aqueles que os bancam, dando a quem realiza as exposições pouco reconhecimento e poder de barganha. Isso cria uma contradição: o mundo da arte deve promover inovação, direitos iguais e criatividade para todos, mas a divisão de trabalho nele estabelecida se choca com esses objetivos.

Assim, ao longo de quatro meses em 2020, ele fez o trabalho de três funcionários, assumindo suas funções ao longo de três licenças de três semanas que eles tiraram. O público da exposição viu a papelada com a qual Ge teve de lidar. Os visitantes também puderam participar do trabalho nos bastidores, como a organização de sobras de materiais e de ferramentas nos armazéns da galeria e o reparo de obras de arte. Ao trazer essas tarefas menos valorizadas para o primeiro plano. Ge rompeu com o statu quo e destacou as contradições e desigualdades da indústria, estimulando o senso crítico e a reflexão das pessoas dentro e fora da galeria. 

Projetos como esses podem desempenhar um papel transformador significativo, porque o poder de qualquer sistema social, incluindo para perpetuar desigualdades, como as de raça ou gênero, é interligado com o discurso e as mentalidades que o compõem. A dinâmica de poder molda nossa linguagem e nossa práticas ao longo do tempo e informa a percepção do que as pessoas devem fazer ou ser. Portanto, o ponto de partida para a mudança social muitas vezes depende da expressão de uma nova narrativa, o que pode ser dar por meio da arte.

É por isso que a SSIR China tem trabalhado com Ge como artista residente. Nós o convidamos a falar sobre suas opiniões sobre arte, equidade e inovação social.

SSIR China: Como você define conceitos como arte e equidade? 

Yulu Ge: O trabalho do artista é levantar uma questão, “ativar” o problema com exemplos. Às vezes, trata-se até de contornar deliberadamente conceitos e símbolos consolidados, como “equidade” e “igualdade”, porque, se seguirmos suas definições precisas, caímos na dinâmica de poder intrínseca a elas. Meu instinto é olhar criticamente para a história que esses conceitos carregam.

Você acredita que não deve haver divisão de trabalho em uma organização ou nenhuma diferença na quantidade de riqueza que cada pessoa possui? Qual é exatamente a “desigualdade” a que você se opõe?

A divisão do trabalho é um modelo necessário para a produção moderna. As pessoas assumem responsabilidades diferentes. Naturalmente, a distribuição de recursos e riqueza não será a mesma, e eu aceito esse fato. No entanto, o problema é que a desigualdade de riqueza e recursos leva à objetificação de alguma parte da população, que acaba assumindo muito trabalho necessário sem receber o respeito básico e mínimo que merece.

Veja o exemplo do projeto Holiday Time. Tudo começou quando ouvi o clamor dos funcionários da galeria. Eles escolheram seus empregos e aceitaram um salário baixo para ter acesso à arte, entender a criatividade e ter uma vida significativa. Mas, na realidade, a criatividade lhes foi negada de diferentes formas, eles trabalharam horas extras para executar muitas exposições e obras em que figuravam os nomes de outras pessoas, enquanto os seus próprios ficavam escondidos. Isso me chocou muito. Eu não podia continuar fazendo minhas exposições e ignorar essas questões, essa estrutura irracional. Então decidi expor o problema estrutural, tomando-o ponto de partida do meu novo trabalho.

Em vez de fazer algo, optei por não fazer algo. Recusei-me a criar novos trabalhos que ampliariam sua carga de trabalho e seu sofrimento e, em vez disso, procurei assumir o trabalho deles. Existem tantas obras de arte neste mundo; uma a mais ou a menos não fará diferença. Mas permitir que a equipe descansasse durante minha exposição e desse algum sentido individual às suas vidas, da maneira como escolhessem, isso faria diferença. 

Pode ser uma tentativa de promover a equidade, pode ser um privilégio, mas, no geral, não pode ser generalizado. Não posso pedir a todos os artistas que abandonem seu trabalho dessa maneira. Esse trabalho é apenas uma tentativa de substituição, com o objetivo de apresentar uma possibilidade.

Quando você expõe as desigualdades e provoca alguma discussão, que diferença isso promove? Que impacto projetos como Holiday Time geram? 

Eu nem tinha essa pretensão de buscar o chamado “impacto”. Na verdade, não é fácil dar férias à equipe de uma galeria. Não estabeleci a meta ambiciosa de encontrar uma solução sistêmica, porque temia que forçá-la pudesse ter resultados terríveis. 

Foi uma experiência muito específica, em um contexto muito específico, para mim e para eles. Foi como atirar uma pedra na água: os primeiros atingidos fomos nós, depois algumas ondulações alcançaram a chefia da galeria e o público da exposição. Na verdade, a mudança aconteceu. No ano seguinte, a equipe conseguiu iniciar atividades e organizar alguns trabalhos. As ondulações também repercutiram fora dali; alguns amigos que ouviram falar de Holiday Time me perguntaram quando eu faria isso em suas galerias, então suponho que fez sentido para eles.

O projeto também chamou a atenção do público, por ter ressoado com o sentimento social da época, coincidindo com o surgimento da expressão da gong ren, que descreve idealistas de boa formação que estão se afogando no trabalho diário, mas que mal ganham o suficiente para viver. Ainda me lembro do título de uma matéria publicada na época, que dizia que os artistas estão presos no sistema, comparando-os aos trabalhadores precarizados também presos no sistema, controlados por algoritmos de plataformas. As pessoas que leram essas histórias perceberam que qualquer pessoa, independentemente de seu nível de educação ou divisão de trabalho, pode ser manipulada por regras hierarquicamente projetadas. 

Não estou atribuindo ao meu trabalho nenhum progresso social ou mudança positiva – isso seria impossível. Mas, como artista, é muito importante capturar a atmosfera social da época e participar dela. Se todos participarem e fizerem ajustes, um passo leva a outro, e algumas ondas de mudança se formarão. Não acho que um artista tenha que ter o objetivo de ser influente; conseguir acompanhar o ritmo dos tempos é suficiente.

Você sente que sua única responsabilidade é analisar os problemas sociais e expô-los, ou também se sente responsável por propor soluções e melhorar a sociedade?

Acho que só posso ser responsável por mim mesmo, que é o que eu preciso fazer. Meus trabalhos e minhas exposições devem ser apresentados de acordo com meus valores e atitudes. Eu não podia aceitar que meu trabalho se tornasse um disfarce para o conflito entre trabalho e gestão na galeria – outra mentira criada para apagar o valor do trabalho da equipe.

Quanto à solução do problema, depende de como você define “problema” e como avalia os resultados. Meu trabalho obviamente não é resolver problemas em um sentido muito rigoroso. Mas pode ajustar as atitudes das pessoas em relação aos problemas. Então, quando você fala sobre o limite de responsabilidade, acho que isso são apenas palavras, um conceito literal. Não há respostas claras para alguns problemas e, uma vez que sua atitude muda, às vezes não há problemas. O trabalho em galeria de arte é cansativo e difícil, mas quando ele é reconhecido, seu nome é elogiado e você contribui para a formação da criatividade, pode valer a pena.

Sobre a relação entre a arte e a inovação social, porque tenho a sensação de que você se recusa a definir as coisas conceitualmente, deixe-me formular assim: o que você está fazendo em relação à inovação social agora?

De fato, para mim os conceitos não orientam ou lideram as ações. Eles são posteriores ao que aconteceu. Conceitos restringem a mente. Então, eu não tomo a inovação social como meu objetivo ou como um fim. Muitos indivíduos em nossa sociedade são governados por um padrão muito semelhante de “sucesso” e, portanto, são forçados a uma competição unidimensional para alcançá-lo. Se todos seguirem o mesmo caminho, ele vai ficar superlotado, e a taxa de sucesso será baixa. Além disso, acreditar sem questionar no valor de “galgar os degraus” [do sucesso] e na meritocracia leva as pessoas a se concentrarem em ser melhores que as outras, sem perceberem os mecanismos que impulsionam a desigualdade. 

Parte da minha ambição, talvez, seja desvendar essa norma de sucesso. Gostaria de abrir mais espaço para explorar se existem outros caminhos que as pessoas podem seguir para liberar seus talentos, se sentirem realizadas e alcançarem uma vida decente. Eu acho que isso é muito importante para muitas pessoas “no meio” – aquelas que não são nem uma superelite, nem sofrem “na fila do pão”. Essa é a contribuição que eu gostaria de dar à sociedade. 

Por meio da plataforma da Leping Foundation – uma organização que também vislumbra uma sociedade diversificada, inclusiva e equitativa – convido as pessoas que saíram do caminho que “deveriam” seguir a compartilhar suas práticas únicas e inspiradoras. Quanto mais variedade tivermos entre palestrantes, tópicos e configurações, mais o projeto desconstrói um sistema de valores singular. Minha esperança é que as histórias que eles compartilham, seja durante eventos presenciais realizados na Leping ou nos podcasts que crio, permitam ao público reavaliar o que está buscando. 

Por exemplo, as histórias de dois indivíduos bem formados que trabalharam em serviços de delivery desafiam a norma cultural que classifica como “fracassadas” pessoas com diploma universitário que fazem trabalho braçal. Esses dois palestrantes compartilharam experiências fascinantes de seu tempo como entregadores e explicaram como elas contribuíram para seu pensamento profissional. Sem ignorar as situações desafiadoras e as limitações estruturais que os trabalhadores braçais enfrentam, eles compartilharam benefícios que podem advir de operar fora de uma hierarquia rígida. 

Uma “geração não linear” em ascensão

Mesmo depois de nossa conversa com Ge, a pergunta persiste: “Chamar a atenção para uma questão social é uma solução?” Acreditamos que sim, no sentido de que pode mudar mentalidades. A abordagem de Ge – que rejeita regras pré-determinadas do jogo, explora conscientemente alternativas e abraça as incertezas – tem semelhanças com a “estratégia emergente“, uma abordagem não linear da inovação social que permite que as pessoas afetadas por um problema experimentem e negociem suas próprias soluções, em vez de estabelecer uma meta definida e impor um método para chegar lá. 

Essa abordagem poderia se tornar uma tendência ou até mesmo redefinir uma geração? Quantas pessoas estão praticando essa arte de abrir possibilidades e, com isso, ampliam sua visão da vida e da sociedade? Se pessoas com práticas pouco ortodoxas contribuírem para a sociedade à sua maneira, o mundo se tornará um lugar melhor e mais equitativo? É isso que gostaríamos de descobrir interagindo com Ge que pretendemos responder por meio de suas práticas.

 

OS AUTORES

Ruijie Guo é estudante de pós-graduação em sociologia e estudos de mudança global na Universidade de Edimburgo. Entre seus temas de interesse estão o ativismo comunitário relacionado a desastres e as emoções coletivas em movimentos sociais. 

Chengchang Liu é recém-formada em inglês e sociologia pela Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim. Seus interesses acadêmicos são migração educacional e questões globais de sustentabilidade e equidade. Liu é apaixonada por inovação social e equidade e se envolve ativamente em assuntos de ONGs para impulsionar mudanças positivas por meio do envolvimento de stakeholders.

Lu Tian é mestranda em administração política na London School of Economics. Durante seu tempo no Grupo de Aprendizagem e Pesquisa da SSIR China, pesquisou e desenvolveu conteúdo sobre medição e gerenciamento de impacto, padrões ambientais, sociais e de governança e sustentabilidade. 

Os três autores fazem parte do Grupo de Aprendizagem e Pesquisa da SSIR China, composto por entusiastas da inovação social de diferentes esferas, que se reúnem para aprender e trocar ideias sobre como tornar o mundo um lugar melhor para todos.



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