Mudando a mentalidade sobre as deficiências de desenvolvimento na Coreia do Sul
Reimaginar o papel que as pessoas com deficiências de desenvolvimento desempenham na sociedade e na força de trabalho tem impulsionado uma maior equidade na Coreia do Sul
Por Hyun Shin, Hyunjoong Kim e Haeun Kim
Pessoas com deficiências físicas, mentais e de desenvolvimento há muito são discriminadas e marginalizadas em todo o mundo, mas as raízes da desigualdade da deficiência e suas consequências sociais diferem de país para país. Na Coreia do Sul, as pessoas tradicionalmente percebem a deficiência como vergonhosa e problemática – algo a gerenciar, tratar e controlar em instituições isoladas, separadas da sociedade.
Um dos exemplos mais marcantes foi o movimento forçado de pessoas com deficiência para instituições isoladas antes dos Jogos Asiáticos de Seul em 1986 e da Olimpíada de Seul em 1988, alegando que a presença delas prejudicaria a imagem e a reputação global do país. Muitas das pessoas que foram institucionalizadas dessa forma sofreram violações de direitos humanos, incluindo violência e trabalho compulsório, mesmo após o término da Olimpíada. A Lei de Bem-Estar das Pessoas com Deficiência, aprovada em abril de 1981 – originalmente promulgada para justificar o golpe militar do então presidente Doo Whan Chun em dezembro de 1980 e promover sua agenda de construção de um estado de bem-estar social – pouco fez para impedir essas ações.
Apesar das melhorias nas últimas décadas, atitudes discriminatórias da sociedade em relação à deficiência são arraigadas na Coreia do Sul. A crescente industrialização do país tem um papel importante nisso. As empresas focadas na eficiência e na produção em massa encaram pessoas com deficiência como improdutivas e inaptas para o trabalho e, portanto, as excluem do mercado de trabalho. Esse mesmo fenômeno ocorreu nos estágios iniciais da industrialização de outros países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, com os mesmos resultados: condições de trabalho e remuneração inferiores, juntamente com crescente estigmatização e isolamento.
No entanto, novos modelos de emprego sustentável para pessoas com deficiência – particularmente deficiências de desenvolvimento, como deficiência intelectual, transtorno do espectro autista e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade – estão surgindo na Coreia do Sul. Eles promovem a autodeterminação e a realização entre os trabalhadores com deficiência e valorizam a participação na sociedade e no mercado, de forma a combater o preconceito e a discriminação prevalentes.
Contexto cultural
Tal como acontece com muitas questões sociais, a compreensão do contexto cultural da discriminação por deficiência pode fornecer um ponto de partida para encontrar soluções. Na Coreia do Sul e em outros países asiáticos, um ponto de referência é um forte modelo mental de “normalidade” embutido no confucionismo e no budismo. Esses sistemas de crenças influenciaram fortemente as perspectivas sobre a deficiência, levando a barreiras ainda maiores à inclusão do que nos países ocidentais.
O princípio confucionista de xin xin xue fan (身言書判), por exemplo, enfatiza a ideia de que jun si (君子), uma pessoa competente, deve ter quatro características: bom corpo, capacidade de comunicação, alfabetização e julgamento. O resultado disso é que, como as pessoas com deficiência não se encontram nesses padrões, assumem um baixo status social dentro da ideologia.
O budismo geralmente vê a causa da deficiência como carma (業), o resultado dos pecados cometidos em vidas anteriores. Depois de realizar um estudo comparativo interasiático com colegas do Japão, Tailândia e Vietnã, Yueh-Ching Chou, professor da Universidade Nacional Yang Ming Chiao Tung de Taiwan, descobriu que as pessoas ainda entendem a deficiência dessa maneira. Alguns entrevistados descreveram a deficiência como uma “tragédia pessoalmente conquistada que incorpora falhas acumuladas em vidas passadas ou presentes” ou “uma maldição devido aos pecados passados [de uma pessoa]”.
Esses pontos de vista e a importância do status social e de “salvar a própria pele” na cultura do Leste Asiático há muito contribuem para a vergonha e a frustração entre as pessoas com deficiência. Esses sentimentos se estendem às suas famílias, muitas das quais forçaram parentes com deficiência a se esconderem e os impediram de seguir carreiras. Eles também contribuíram para que a sociedade visse a deficiência como um problema individual a ser resolvido em particular e, como resultado, as pessoas com deficiência se tornaram invisíveis.
Novo foco na deficiência de desenvolvimento
Desde a Olimpíada de 1988, o governo sul-coreano fez vários esforços institucionais para aumentar a conscientização e melhorar o tratamento das pessoas com deficiência. Isso incluiu mudanças na legislação, como a Lei de Garantia de Conveniência para Pessoas com Deficiência em 1997, a Lei de Promoção do Emprego e Reabilitação Profissional de Pessoas com Deficiência em 2001, a Lei de Prevenção da Discriminação por Deficiência e Remediação de Direitos em 2007 e a Lei de Pensão por Invalidez em 2010.
No entanto, o apoio público ao bem-estar, educação e emprego de pessoas com deficiências de desenvolvimento permaneceu limitado até muito recentemente. Assim como as pessoas com deficiências físicas, as que têm deficiências de desenvolvimento sofrem de percepções sociais negativas, violência na escola, microagressões e acesso limitado a emprego ou a outras oportunidades. De fato, essas pessoas geralmente sofrem mais discriminação e rejeição do que pessoas com deficiências físicas, devido aos desafios de comunicação e/ou cognição que enfrentam. No mercado de trabalho, a taxa de emprego para pessoas com deficiências de desenvolvimento foi de 28% em 2021, em comparação com 35% para todas as pessoas com deficiência e 60% para todos os coreanos. Essas pessoas também ganham significativamente menos que os trabalhadores com deficiência física.
Em 2015, entrou em vigor a Lei de Apoio a Pessoas com Deficiências de Desenvolvimento, que reconhece que habilidades limitadas de comunicação e socialização são diferentes de deficiências físicas. Em 2018, o governo anunciou o Plano Abrangente de Cuidados ao Longo da Vida para Pessoas com Deficiências de Desenvolvimento,legislação que visa fornecer serviços de saúde, educação e assistência social voltados para o ciclo de vida da pessoa com deficiência e para reduzir a pressão mental e emocional sobre as famílias. Esse plano ambicioso foi motivado por um incidente chocante em 2017, quando pais de crianças com deficiências de desenvolvimento imploraram aos residentes locais que reconsiderassem sua oposição a uma escola de educação especial em sua cidade.
Esforços governamentais como esses são úteis e necessários, mas criar uma sociedade mais inclusiva e equitativa para pessoas com deficiências de desenvolvimento também requer mudanças de percepções e normas culturais – e a mídia e as empresas sociais apresentam maneiras poderosas para fazer isso.
Mudando as percepções por meio da mídia
Nos dramas e filmes coreanos, como na realidade, as pessoas com deficiência não estão bem representadas. Um estudo de diversidade de mídia de 2019 analisou 2.713 personagens em dramas coreanos que foram ao ar nos principais canais e descobriu que as pessoas com deficiência representavam 0,7% dos personagens em comparação com a porcentagem de 4,9% na vida real. Enquanto isso, uma análise de 81 filmes coreanos com pessoas com deficiência como personagens principais descobriu que as obras tendiam a retratá-los como seres humanos fracos e inferiores, geralmente em contextos negativos e pouco esperançosos.
No entanto, há sinais de mudança. Um bom exemplo é o drama de TV Woo, Uma Advogada Extraordinária, lançado em 2022, que conta a história de Woo Young-woo, uma jovem advogada que tem uma mente genial e transtorno do espectro do autismo. Woo supera suas limitações, usa sua perspectiva única para vencer casos e, finalmente, ganha o respeito de seus colegas de trabalho. Foi a série em língua não inglesa mais assistida no mundo pela Netflix em agosto de 2022 e ficou entre os dez melhores dramas em mais de 50 países.
Embora tenha sofrido algumas críticas, a série aumentou a conscientização pública e disseminou a mensagem de como considerar e apoiar pessoas com deficiências de desenvolvimento. Em vez de definir as limitações de Woo e negar suas oportunidades, os personagens coadjuvantes a ajudam a alcançar e crescer à sua maneira. Por meio das relações entre Woo e as pessoas ao seu redor, o drama reflete sobre como a sociedade pode criar oportunidades significativas para pessoas com deficiências de desenvolvimento e, portanto, influencia a forma como os espectadores se envolvem com a questão.
Outra série popular lançada em 2022, Amor e Outros Dramas aborda uma série de problemas sociais – incluindo suicídio, abuso infantil, gravidez na adolescência, bullying e deficiência mental – com um olhar de amor e perdão. Em particular, apresenta Jung Eun-hye, que tem distúrbio genético na vida real, em um dos papéis principais e sugere que os sentimentos dos indivíduos com deficiência não são diferentes dos das pessoas sem elas. Até agora, a produção tem mais de 650 mil visualizações no YouTube e mais de 105 milhões de horas de exibição na Netflix.
Filmes como You’re So Precious to Me (2021) e Inseparable Bros (2018) também oferecem retratos não estereotipados de pessoas com deficiência. Essas produções televisivas não estão apenas mudando mentalidades na Coreia dos Sul, mas também no exterior: mais de 60% dos 260 milhões de assinantes da Netflix assistiram a títulos coreanos em 2023.
Mudança de percepções por meio do empreendimento social
Para muitos, um elemento essencial de uma vida autodeterminada é a capacidade de ter um emprego decente. No passado, o governo coreano fez vários esforços para promover o emprego de pessoas com deficiência por meios institucionais. Mas isso não atendeu às suas necessidades em termos de quantidade e qualidade de empregos disponíveis, muito menos de sustentabilidade.
Reconhecendo que o governo sozinho não pode atender à demanda por empregos, várias organizações orientadas para o impacto passaram a intervir. Um exemplo é a Testworks, empresa social de alta tecnologia lançada em 2015 e especializada em dados de inteligência artificial e testes de software. Em julho de 2023, a organização empregava 17 pessoas com deficiências de desenvolvimento e 11 pessoas com deficiência auditiva. A Testworks descobriu que as pessoas com deficiências de desenvolvimento são particularmente habilidosas em tarefas repetitivas, como rotular fotografias para informar o aprendizado de máquina para carros autônomos. Eles também apresentam uma precisão maior e têm uma taxa de retenção mais alta do que pessoas sem deficiências de desenvolvimento. Isso dá aos trabalhadores e à empresa uma vantagem competitiva no mercado. A empresa está a caminho de atingir US$ 9 milhões em receita até 2023 e já atraiu mais de US$ 8 milhões em investimentos.
Outro exemplo é a Donggubat, empresa social de baixa tecnologia que emprega pessoas com deficiências de desenvolvimento para produzir produtos ecológicos, como sabonetes naturais. A Donggubat fornece seus produtos para empresas de cosméticos, hotéis, resorts e empresas de distribuição, e a receita da empresa atingiu US$ 10 milhões em 2023. Em junho de 2024, a Donggubat tinha em seu quadro 54 pessoas com deficiências de desenvolvimento dentro de um total de 116 funcionários. O design e a embalagem de produtos de alta qualidade da empresa e o compromisso com a sustentabilidade atraíram clientes de luxo como o hotel cinco estrelas Walker Hill, desafiando a percepção de que funcionários com deficiência e a criação de produtos de luxo não podem andar de mãos dadas.
A Autistar, abreviação de “talentos especiais e reabilitação do autismo”, é outra empresa social que oferece oportunidades para pessoas com deficiências de desenvolvimento. A empresa se esforça para ajudar as pessoas com autismo a enxergar suas deficiências como talentos e conectá-las a trabalhos de desenho industrial. Em julho de 2024, a empresa contava com 13 designers autistas dentre os 21 funcionários, e 7 deles conseguiram empregos de design depois de passar pela firma. Quando questionada sobre sua visão, a fundadora e CEO SoHyun Lee disse: “Quero que todos, incluindo pessoas autistas, possam encontrar o que querem fazer, no que são bons e fazê-lo”.
Lee também é professora de educação especial na Universidade Ewha, uma instituição para mulheres, onde iniciou seu negócio social como um programa para alavancar os talentos artísticos de jovens com autismo. Em um estudo recente, ela e seus colegas descobriram que, quanto mais dentro do espectro são os designers, mais exclusivos são seus desenhos. Isso sugere que um maior grau de características de autismo e maior neurodiversidade entre os funcionários podem oferecer às empresas do setor uma vantagem competitiva. A Autistar colaborou com várias grandes empresas, incluindo Samsung Electronics, SK Hynix e UNIQLO.
Construindo oportunidades para maior equidade
Os coreanos ainda associam amplamente os problemas físicos e mentais à incapacidade de trabalhar e viver como um ser humano independente. Chegar às raízes da desigualdade da deficiência requer mídia inovadora e empresas sociais dedicadas a criar novas percepções e oportunidades para pessoas com deficiência. Os esforços corajosos e inovadores apresentados aqui estão desafiando diretamente os modelos mentais antigos e discriminatórios. Eles estão mudando a forma como a sociedade coreana pensa sobre as pessoas com deficiências de desenvolvimento e, esperançosamente, oferecem insights sobre como os inovadores em outros países, especialmente países asiáticos com contextos e trajetórias de desenvolvimento semelhantes, podem fazer o mesmo.