Empresas para todos: novos modelos de propriedade no Sul Global
Formas alternativas de propriedade empresarial podem incentivar o desenvolvimento econômico de maneiras mais inclusivas e equitativas
Por Harvey Koh e Laura Arnaya
O atual sistema econômico global tem falhado em promover uma sociedade habitável para todos. O modelo capitalista atual prioriza em grande parte os interesses de investidores externos, permitindo modelos predatórios que ampliam as disparidades de riqueza e degradam nosso ecossistema natural. Mesmo onde há crescimento econômico geral, a contínua concentração de propriedade impede que os trabalhadores comuns, e em particular as comunidades marginalizadas, colham os benefícios de suas contribuições, reforçando os desequilíbrios de poder e as desigualdades sociais.
O artigo da Transform Finance publicado na SSIR, “Investing in Enterprises That Work for Everyone”, e o relatório que o acompanha, lançaram luz sobre como os modelos de Empresas de Propriedade Alternativa (AOE, na sigla em inglês) podem ajudar a redistribuir valor econômico, analisando o cenário nos Estados Unidos. Esses modelos de negócios reequilibram os direitos econômicos (e muitas vezes de governança), afastando-os de investidores externos e transferindo-os para outras partes interessadas, como trabalhadores e produtores que impulsionam a criação de valor na empresa. Ao redistribuir o poder dessa forma, as AOEs buscam promover uma distribuição mais equitativa da riqueza e estimular um crescimento econômico inclusivo.
O Sul Global
Não devemos presumir que o potencial desses modelos esteja restrito aos EUA e a outras economias avançadas. Na verdade, é no Sul Global que algumas das histórias de sucesso mais impressionantes e em grande escala de propriedade alternativa têm ocorrido, especialmente no setor agroalimentar. Algumas dessas iniciativas existem há várias décadas, enquanto outras são novas empresas que já foram concebidas com a propriedade alternativa como princípio central. De fato, os modelos de AOE no Sul Global têm se mostrado eficazes em transformar setores inteiros rumo a uma maior inclusão, especialmente de pequenos agricultores e outros grupos historicamente marginalizados.
No Quênia, décadas de exclusão colonial dos pequenos produtores de chá foram revertidas com a criação, na década de 1960, do que se tornaria a Agência de Desenvolvimento do Chá do Quênia (KTDA, na sigla em inglês). Hoje, a KTDA é o segundo maior exportador de chá do mundo e uma das principais fontes de divisas do país, sendo propriedade de mais de 600 mil produtores. Essa mudança permitiu que pequenos agricultores quenianos deixassem de ser trabalhadores dependentes em plantações pertencentes a grandes empresas coloniais para se tornarem donos de seu próprio destino, colhendo os frutos de seu trabalho de forma justa. Pesquisas indicam que o crescimento e o sucesso da KTDA ao longo das décadas proporcionaram um forte impulso ao desenvolvimento econômico e social das áreas rurais do Quênia, complementando o papel desempenhado por bancos mais inclusivos, como o Equity Bank.
Enquanto isso, uma das principais marcas de alimentos da Índia, a Amul, pertence à Federação Cooperativa de Comercialização de Leite de Gujarat (GCMMF, na sigla em inglês). O que começou como uma única cooperativa na recém-independente Índia da década de 1940 se transformou no maior processador de laticínios do país, alcançando uma receita de mais de US$ 4 bilhões em 2016. Diferentemente das cadeias de valor agrícola tradicionais, esse modelo proporcionou benefícios significativos, garantindo preços mais altos e estáveis, além da distribuição de lucros para os 3,6 milhões de produtores de leite que são donos do negócio.
Na Colômbia, a Promotora de Café Colombia (Procafecol), empresa por trás da icônica marca Juan Valdez, transformou um setor cafeeiro altamente fragmentado em uma história de sucesso internacional, beneficiando 95% dos produtores de café, que são pequenos agricultores. Criada em 2002 pela Federação Nacional dos Cafeicultores da Colômbia (FNC) para promover o café colombiano, a Procafecol ampliou o alcance da indústria cafeeira do país, indo além da venda de grãos como commodity para a comercialização de produtos de valor agregado nos mercados nacional e internacional. A empresa pertence em mais de 90% à FNC, que, por sua vez, é controlada por mais de 500 mil pequenos cafeicultores. Essa estrutura influencia a governança da empresa, que combina uma equipe de gestão profissional com um conselho no qual dois dos cinco assentos são ocupados por representantes dos cafeicultores da FNC. Além disso, a Procafecol adota práticas de mercado mais justas, alinhadas com as diretrizes da FNC, incluindo o comércio justo, assistência técnica aos agricultores e um foco maior em jovens e mulheres cafeicultoras.
Esforços semelhantes para promover essas ideias são impulsionados atualmente por empresas individuais, filantropia e governos. A Babban Gona, uma empresa nigeriana, mais que dobrou os rendimentos de cerca de 70 mil pequenos agricultores envolvidos na produção de milho, arroz e soja. Em 2015, a Babban Gona concedeu a esses agricultores uma participação de 30% na empresa por meio de um Fundo dos Agricultores, no qual cada grupo é composto por três a cinco agricultores liderados por um membro que recebe treinamento em negócios e agronomia. Um representante dos agricultores ocupa permanentemente um assento no conselho da empresa, com plenos direitos de voto, incluindo o poder de vetar qualquer mudança que desvie a Babban Gona de seu modelo de agronegócio inclusivo e equitativo.
Em Ruanda, cinco mil pequenos agricultores são agora os proprietários de 100% da maior fábrica de chá do país, localizada em Mulindi. Desde 2012, essa iniciativa tem sido apoiada pela Wood Foundation e pela Gatsby Africa, que investiram na modernização da fábrica, na expansão das plantações com clones de alta produtividade, na capacitação de agricultores e da gestão local, no suporte à governança corporativa e na diversificação dos mercados, incluindo a entrada em segmentos premium. Em menos de uma década, esses esforços resultaram em um aumento de um terço na produção de folhas verdes e na duplicação da renda bruta dos agricultores, incluindo US$ 3,1 milhões em bônus pagos além do valor obtido com a venda das folhas.
No entanto, também devemos reconhecer iniciativas recentes que não conseguiram se concretizar, como duas experiências no Sudeste Asiático e na América Latina, das quais os autores deste artigo participaram como consultores. No Sudeste Asiático, foi proposta uma “zona econômica inclusiva” que atrairia investimentos privados para as regiões mais pobres do país, com a condição de que os trabalhadores recebessem participações substanciais na propriedade das empresas. Apesar do interesse inicial positivo por parte dos investidores, a iniciativa fracassou quando o ministro que liderava o projeto renunciou repentinamente ao cargo. No caso da América Latina, diversos conglomerados regionais defenderam um modelo de propriedade comunitária para ativos de energia renovável em áreas sem acesso à rede elétrica. Embora uma versão da iniciativa tenha avançado, o foco acabou mudando para um modelo mais tradicional de parceria público-privada, pois os financiadores envolvidos hesitaram em direcionar recursos fora de seus modelos já estabelecidos e expressaram preocupações com os riscos de envolver grupos comunitários sem experiência empresarial.
Principais aprendizados
Essas histórias demonstram de forma impactante o potencial dos modelos de AOE no Sul Global, mostrando como podem transformar setores inteiros para promover maior inclusão e sucesso econômico. No entanto, elas também evidenciam desafios importantes. A partir dessas experiências, podemos extrair algumas lições essenciais:
1. Uma sólida visão de negócios e equipes de gerenciamento profissionais são os motores do sucesso. O êxito de uma empresa de propriedade alternativa é, antes de tudo, um êxito empresarial. Tanto a KTDA como a GCMMF possuem um histórico sólido em pesquisa e desenvolvimento, manufatura, logística e inovação em marketing, o que lhes permitiu se destacar no mercado.
Em um momento crucial nos primeiros anos da GCMMF, um jovem gerente talentoso chamado Verghese Kurien (posteriormente reconhecido como o “leiteiro da Índia”) assumiu, por décadas, a liderança da federação, trazendo inovação e crescimento. No início da trajetória da KTDA, empresas coloniais de chá foram contratadas para fornecer gestão e – de forma crucial – treinar talentos quenianos nativos na primeira década de operações, compensando a exclusão dessas pessoas da gestão durante a era colonial. Isso contrasta com a experiência de pequenos produtores de café no Quênia e de pequenos produtores de chá na Tanzânia, que fracassaram em grande parte devido à ausência de gestão profissional competente (embora essa não seja a única explicação – veja abaixo no item 5).
2. A estrutura de propriedade alternativa deve reforçar os principais pilares de sucesso do negócio, além de estar alinhada ao impacto desejado. Conceder uma participação substancial a pequenos agricultores solidifica o propósito de impacto desses agronegócios inclusivos, mas o que nem sempre é tão óbvio é que esses mecanismos também podem ajudar o negócio a superar as expectativas.
No setor de chá, por exemplo, as práticas dos agricultores em relação ao cultivo e à colheita são fundamentais para produzir chá de alta qualidade, que alcança preços mais altos no mercado, criando assim uma forte conexão e um poderoso ciclo de retroalimentação para os pequenos agricultores-proprietários da KTDA. Isso é potencializado pelo fato de que os agricultores possuem ações em suas fábricas locais de chá (que, por sua vez, possuem a KTDA como um todo), e que cada fábrica vende seu produto final separadamente nos leilões de exportação de Mombasa, com relatórios semanais sobre os preços alcançados por todas as fábricas sendo distribuídos entre todos os agricultores-proprietários. Isso cria um forte ciclo de retroalimentação entre a produção de qualidade local e as recompensas financeiras locais.
Da mesma forma, a GCMMF e a Procafecol conseguiram, em suas estruturas, uma combinação de dinamismo local na produção e vantagem de escala no marketing. No caso da Procafecol, a estratégia vencedora foi equilibrar um foco em melhorar a qualidade da produção local (capacitando os agricultores com tecnologia para maximizar a produção) com uma expansão simultânea para mercados internacionais. A competição e o desempenho são tão essenciais para esse tipo de negócio quanto para todos os outros.
3. O acesso a capital flexível nos momentos certos é fundamental para apoiar o modelo de AOE. No caso da Babban Gona, a dívida concessional de credores financiados por doadores foi essencial para aumentar sua base de pequenos agricultores em cinco vezes entre 2013 e 2015, sem uma pressão excessiva por retornos. Isso preparou o terreno para que a Fundação Bill & Melinda Gates fornecesse uma doação de US$ 4 milhões em 2015, que financiou a emissão de ações para os pequenos agricultores, concedendo-lhes uma participação de 30% na empresa.
Na KTDA, os investimentos de capital paciente do Banco Mundial e da CDC (atualmente British International Investment) foram fundamentais para construir um modelo de propriedade de administradores centrado no pequeno agricultor desde o início, com a transição para a propriedade dos agricultores em 2000 por meio da emissão de ações para eles, como parte de um processo de privatização inclusiva.
Enquanto isso, a Procafecol conseguiu aproveitar o financiamento estatal contínuo derivado de um pequeno imposto sobre exportação de café colombiano para estabelecer e manter a empresa em seus primeiros anos. Além disso, um investimento da International Finance Corporation ajudou a empresa a lançar suas lojas de café no varejo na Colômbia.
4. Historicamente, medidas transformadoras foram apoiadas por mudanças sociais mais amplas e pela intervenção do Estado. Nossa ênfase nos aspectos comerciais do sucesso não deve obscurecer a realidade de que essas grandes conquistas foram arduamente conquistadas diante de normas estabelecidas desfavoráveis e estruturas de poder consolidadas. Movimentos sociais e liderança política frequentemente auxiliam no sucesso e efetivamente redefinem as regras do jogo.
Por exemplo, a agenda de “Africanização” de Jomo Kenyatta, ativista e político que liderou o Quênia pós-independência ( contexto no qual a KTDA inicia sua trajetória), foi uma luta difícil dentro de uma economia nacional e global ainda sob dominação colonial. Na primeira década da KTDA, quenianos nativos foram recrutados para se tornarem novos gestores, mas enfrentaram atitudes racistas e hostilidade por parte de seus superiores enquanto passavam pelo treinamento.
O sucesso da GCMMF também foi claramente favorecido pela intervenção estatal, como a proibição das importações de manteiga na década de 1960, após uma crise cambial – essencialmente uma forma de proteção à indústria nascente que permitiu à Amul conquistar uma posição inicial no mercado de manteiga da Índia. Além disso, a inclusão no modelo da GCMMF foi gradualmente ampliada para abranger castas hindus mais baixas e grupos religiosos minoritários ao longo do tempo, acompanhando as mudanças nas normas sociais.
No entanto, vale ressaltar que o apoio de um único líder político, sem uma base de suporte mais ampla, traz o risco de rupturas devido a mudanças na liderança e pode enfraquecer as chances gerais de sucesso.
5. Embora um forte apoio político possa ser benéfico, o controle direto do Estado e sua interferência têm sido uma receita para o fracasso. Sempre vale a pena perguntar: quais iniciativas falharam e por quê? Como mencionado acima, as iniciativas de pequenos produtores de café no Quênia e de chá na Tanzânia fracassaram, mesmo enquanto a KTDA prosperava. Essas histórias foram marcadas não apenas pela falta de competência na gestão (como já descrito), mas também por altos níveis de interferência política prejudicial – e esses fatores estavam intimamente relacionados: governos geralmente não estão bem posicionados para gerenciar empresas diretamente. Nas cooperativas de café do Quênia, o governo nomeava gestores por razões políticas, e não empresariais. A administração direta por órgãos governamentais também resultava em atrasos nos pagamentos aos agricultores e na paralisação de investimentos sempre que havia pressão sobre as finanças do setor público. Um relatório do Banco Mundial sobre o setor de chá da Tanzânia, de 1983 – quando o setor estava próximo de seu (modesto) auge –, descreve uma série de problemas, incluindo a não substituição de máquinas quebradas, falhas no fornecimento de energia, estradas vicinais em péssimas condições, uso inadequado de insumos e novas variedades de sementes, e até mesmo a provável falsificação de registros de pagamento.
Produção de pequenos produtores (1965-2000)

Recomendações
As Empresas de Propriedade Alternativa (AOEs) têm o potencial de promover o desenvolvimento econômico de maneira mais inclusiva e equitativa em todo o Sul Global. Vemos um papel fundamental para a filantropia, investidores de impacto, agentes de desenvolvimento internacional e governos na condução dessas mudanças potencialmente transformadoras. Aqui estão algumas sugestões do que pode ser feito:
1. Considerar o potencial das AOEs (por exemplo, propriedade pelos trabalhadores, propriedade pelos produtores) ao iniciar iniciativas de inclusão econômica lideradas por empresas. Por exemplo: em vez de focar apenas na criação de empregos para as comunidades locais, as iniciativas poderiam garantir que os trabalhadores tivessem participação nos negócios aos quais contribuem tanto. Como mostrado nos casos descritos acima e em consonância com evidências de pesquisa no Norte Global, estruturas de AOE podem fortalecer a resiliência e o desempenho dos negócios, ao mesmo tempo em que aprofundam os impactos da inclusão econômica e da equidade.
2. Adaptar instrumentos de investimento e mecanismos de subsídios para alcançar esse objetivo. Investimentos adequados podem ajudar a construir e expandir mais AOEs, e capital catalítico flexível e paciente pode ser especialmente útil em modelos, mercados ou geografias emergentes, permitindo a tolerância a riscos elevados e garantindo que o impacto continue sendo uma prioridade. Também pode haver espaço para apoiar a conversão de empresas maduras para modelos de AOE, facilitada por fundos de investimento especializados – como já está sendo feito nos Estados Unidos – o que também poderia resolver o problema da falta de opções de sucessão para donos de negócios em grande parte do Sul Global. Enquanto isso, subsídios filantrópicos poderiam apoiar diretamente a emissão de ações para trabalhadores e comunidades, quando apropriado, como no exemplo do BMGF e Babban Gona. Isso exige ir além dos modelos tradicionais de concessão de subsídios para desenvolver soluções criativas que possam apoiar modelos de AOE e, ao mesmo tempo, atender às exigências dos financiadores. Financiadores com mais experiência nessas áreas devem compartilhar seus aprendizados para que o campo avance de maneira mais ampla.
3. Apoiar o desenvolvimento de uma gestão eficaz e de governança para garantir o sucesso dos negócios, trazendo novas pessoas e promovendo novas capacidades quando necessário. Embora o modelo de propriedade seja essencial, uma gestão empresarial eficiente é crucial para garantir a escala necessária para o sucesso a longo prazo. Gestores profissionais experientes, com forte visão de negócios, são fundamentais para ajudar as AOEs (assim como qualquer outro negócio) a navegar em ambientes empresariais complexos, expandir operações e alcançar um crescimento sustentável. Quando há talentos gerenciais dentro das AOEs, eles devem ser capacitados; quando não há, esses talentos precisam ser trazidos para liderar e formar futuras gerações de gestores. Também pode ser necessário desenvolver capacidades específicas para atender a diversas necessidades, desde habilidades de gestão em diferentes níveis até mecanismos e estruturas eficazes de governança. Quando adaptado às necessidades específicas de uma empresa, esse suporte pode ser fundamental para acelerar o sucesso das AOEs, como visto recentemente no caso da fábrica de chá de Ruanda, apoiada pela Wood Foundation e Gatsby Africa.
4. Colaborar com governos e outros atores sociais para incorporar a inclusão nas “regras do jogo” sempre que possível. Liderança política forte, políticas de apoio e um ambiente econômico favorável têm sido fundamentais para os casos de sucesso em larga escala. A colaboração com governos pode ajudar a garantir marcos regulatórios favoráveis, acesso a recursos essenciais e proteção contra ameaças externas. Além disso, o engajamento com atores sociais, incluindo comunidades locais e organizações da sociedade civil, pode garantir que as AOEs estejam alinhadas com objetivos sociais e econômicos mais amplos, aumentando assim sua legitimidade e impacto. Construir uma base de apoio mais ampla para essas iniciativas, em vez de depender de um único líder para impulsioná-las, pode ser útil não apenas para iniciar esforços, mas também para criar as condições para que essa mudança sistêmica seja bem-sucedida.
Essas experiências do Sul Global demonstram que é possível alcançar o crescimento dos negócios e o sucesso comercial ao mesmo tempo em que se prioriza a inclusão e a equidade. Empresas de propriedade alternativa já provaram que podem ter sucesso em larga escala, e a questão não é mais se devemos apoiá-las, mas sim onde e quando devemos impulsionar a próxima onda de AOEs transformadoras, com o talento, suporte e investimento adequados. Estamos ansiosos para seguir trabalhando para avançar essa agenda em todo o Sul Global.