Imprimir artigo

Empresas melhores para o mundo

Identificar juridicamente um novo segmento econômico pode acelerar a transição de paradigma para uma economia inclusiva, equitativa e regenerativa

Por Marcel Fukayama

Ilustração de Catarina Bessell

Vivemos uma mudança de cultura empresarial global e histórica. É crescente o número de negócios que, por dor ou por amor, têm adotado práticas mais sustentáveis nas últimas décadas. Segundo a KPMG, 73% das 250 maiores empresas do mundo seguem a Global Reporting Initiative, com padrões para a divulgação do impacto socioambiental de suas atividades.

A Bloomberg prevê que os investimentos ESG atingirão US$ 53 trilhões até 2025, representando um terço do total de ativos sob gestão global. E, segundo pesquisa Google Ipsos, 54% dos consumidores brasileiros optam por produtos social e ambientalmente responsáveis, o que evidencia mudanças nas expectativas dos stakeholders.

O movimento se faz acompanhar por uma espécie de tsunami normativo. Recentemente, a Europa aprovou a CS3D (Corporate Sustainability Due Diligence Diretive), diretriz que define critérios para a diligência corporativa, com o objetivo de promover a sustentabilidade e enfrentar mudanças climáticas.

No bojo dessas transformações, uma das iniciativas econômicas mais inovadoras foi o surgimento das empresas B. Desde 2006, mais de 8.600 negócios receberam a certificação, o que exige passar por um rigoroso processo de medição, avaliação e verificação de impacto nas práticas de governança, meio ambiente, comunidade, clientes e colaboradores. Atualmente, essa comunidade global contabiliza 800 mil colaboradores em 98 países de 163 setores distintos; mais de 300 mil empresas usam a ferramenta de gestão de impacto B Impact Assessment.

Apesar de todos os avanços, os desafios globais não dão sinais concretos de melhora, e o progresso parece insuficiente. O mais recente estudo sobre desigualdades da Oxfam nos alerta de que estamos mais próximos de ter o primeiro indivíduo trilionário do que de erradicar a pobreza. Na questão ambiental, seguimos uma trajetória que coloca em xeque o compromisso de limitar o aquecimento do planeta a 1,5 ºC acima dos níveis pré-industriais.

Esse contexto incita à reflexão sobre como fazer essa transformação ganhar escala. No artigo de destaque de Dana Brakman Reiser, a autora mostra que, em todo o mundo, a legislação enfrenta um difícil compromisso entre cultivar a confiança pública e promover a escala de negócios de impacto – que ela chama de empresas sociais. Sua análise revela que restringir a distribuição de lucros aumenta a confiança nessas empresas, mas pode limitar seu crescimento e o acesso ao capital. Reiser debate os trade-offs entre confiança e escala e analisa diversos modelos legais e certificações quanto aos requisitos de propósito, governança e divulgação de impacto. No texto, ela destaca ainda a importância de equilibrar a confiança e a escala na promoção do setor de empreendimentos sociais e seu impacto, enfatizando a necessidade de explorar outras formas de ajustar essa balança.

Mas o dilema entre confiança e escala não se restringe às limitações na distribuição de lucros colocados pela pesquisadora. Para definir a identidade jurídica de um empreendimento, seria preciso levar em conta também formatos de adoção e regulação desses negócios. Esse é o debate que propomos a seguir.

 

Caminhos para a regulamentação

 

Não há, hoje, obrigatoriedade de adoção de identidade jurídica para a regulamentação de negócios de impacto. Todos os casos apresentados na análise de Dana Brakman Reiser são voluntários, incluindo as propostas coordenadas pelo B Lab e pelo Sistema B, respectivamente benefit corporations e sociedades de benefício e interesse coletivo (BICs). Desde 2010, essas identidades já foram aprovadas em mais de 50 jurisdições distintas, incluindo 44 estados americanos e 8 países. Estima-se que mais de 25 mil empresas tenham adotado essa estrutura, incluindo Danone e Patagonia nos EUA.

O panorama, no entanto, pode mudar com uma proposta inovadora apresentada pelo B Lab UK ao Parlamento britânico em abril de 2021. Produto de uma coalizão com mais de mil organizações locais, o texto do Better Business Act (lei da empresa melhor), que se encontra em tramitação, propõe a adoção mandatória de uma identidade jurídica que exija que as companhias cumpram com o propósito de impacto positivo, considerando seus stakeholders na tomada de decisão e usando uma ferramenta independente de medição, gestão e reporte de seu impacto.

 

Uma solução alternativa – e que pode ganhar escala com velocidade – são as autorregulamentações de mercado.

 

A adoção obrigatória de uma identidade jurídica responderia diretamente à questão de escala. Atingir o contexto em torno de uma proposta assim, contudo, é complexo, dependendo de articulação política e do engajamento de múltiplos stakeholders que garantam uma legitimidade rara.

Uma solução alternativa – e que pode ganhar escala com velocidade – são as autorregulamentações de mercado. O Novo Mercado da B3 oferece um bom modelo. Criado em 2000, ele exige que as empresas listadas adotem padrões de governança além dos impostos pela legislação empresarial, o que inclui mais transparência e ao menos 20% de conselheiros independentes, entre outras práticas.

Isso eleva os requisitos das empresas nesse segmento da Bolsa, induzindo uma mudança positiva no comportamento empresarial, a fim de se adequar aos critérios e corresponder às expectativas dos investidores.

O Novo Mercado se consolidou como um segmento de listagem de alto padrão na B3, atraindo empresas com governança corporativa robusta, desempenho financeiro superior e compromisso com a sustentabilidade. As empresas do segmento se beneficiam de maior liquidez das ações, acesso facilitado ao capital internacional e reconhecimento por parte de investidores nacionais e internacionais. O sucesso do Novo Mercado demonstra o crescente interesse por investimentos responsáveis e com impacto positivo.

Em geral, as autorregulamentações têm efeito pedagógico; ao criarem estruturas de incentivos para a implementação de novas práticas, promovem uma mudança de comportamento e a criação de uma nova cultura – que, eventualmente, pode ser tornar uma nova norma social, incidindo nas regras do jogo e inspirando novas leis e políticas públicas.

A certificação empresa B, emitida pelo B Lab e coordenada no país pelo Sistema B Brasil, é um outro bom exemplo nessa direção. Os mais de 8.600 negócios assim certificados no país assumiram um compromisso de gestão e reporte de impacto de suas práticas, colocando no cerne de sua atuação o dever fiduciário dos gestores com o impacto material positivo social e ambiental. Também se comprometeram a considerar as partes interessadas relevantes ao tomarem decisões de curto e longo prazo. Ao definirem a identidade jurídica das benefit corporations e das BICs, o B Lab e o Sistema B criaram uma forma concreta para que as 125 milhões de companhias existem atualmente, de acordo com o Banco Mundial, possam se comportar como empresas B, com propósito, responsabilidade e transparência.

 

A agenda no Brasil

 

No país, a criação de uma identidade jurídica para esse novo segmento econômico empresarial é objeto de discussão há, pelo menos, duas décadas. Os que argumentam contra sua definição defendem que a jurisdição brasileira dá autonomia aos administradores para alterar os contratos e estatutos sociais e que a Constituição já estabelece princípios da atividade econômica que tratam de defesa do meio ambiente e da redução de desigualdades sociais e regionais. Além disso, afirmam que temos uma lei empresarial robusta, a Lei das SAs, como é conhecida a lei 6.404/1976.

Nela, dois artigos de fato merecem destaque. O 116 diz que o acionista controlador, que tem um papel e uma força diferenciada no Brasil, deve usar seu poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, tendo deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. O artigo 154, por sua vez, responsabiliza o administrador quanto a atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa (grifos nossos).

 

O Novo Mer­cado da B3 oferece um bom modelo. Criado em 2000, ele exige que as empresas listadas adotem padrões de governança além dos im­postos pela legislação empresarial

 

Ora, num país que registra mais de 19 milhões de negócios ativos, se esse arcabouço é suficiente, por que ainda avançamos pouco? O debate articulado pelo grupo de advogados de impacto do Sistema B Brasil argumenta que é necessário regular a conduta empresarial a fim de que o arcabouço jurídico e institucional seja funcional e promova uma mudança de práticas, comportamentos e de cultura em larga escala.

Pode soar como sutileza reconhecer jurídica e institucionalmente que mitigação e compensação são importantes, mas insuficientes, e que as empresas devem também gerar impacto material positivo no curso de sua atividade econômica lucrativa. No entanto, em termos estruturais, é uma mudança de paradigma.

Uma proposta nessa direção tramita atualmente no Senado Federal por meio do projeto de lei 3.284/2021. À diferença das propostas analisadas por Dana Brakman Reiser em seu artigo, no Brasil o debate não vê as limitações na distribuição de lucro como forma de construção de confiança. Em vez disso, esta viria do controle social. O PL propõe mudanças estruturais e oferece instrumentos para seu autocumprimento. Ao vincular o dever fiduciário ao impacto positivo, a consideração de stakeholders na decisão e uma maior transparência nas práticas, a identidade jurídica desenhada pelo PL permite que os administradores sejam devidamente monitorados e responsabilizados pelos acionistas e acompanhados por outros stakeholders relevantes, como colaboradores e consumidores.

A discussão dessa proposta está sendo articulada por meio da Estratégia Nacional de Economia de Impacto (Enimpacto), instituída pelo decreto presidencial 11.646/2021, no âmbito do Comitê Nacional. O colegiado é composto por mais de 20 ministérios, outros 5 órgãos da administração pública e mais 25 organizações da sociedade civil.

 

G20, oportunidade singular de escala global

 

O G20 é um dos principais espaços multilaterais para coordenação global da agenda econômica. Reúne 85% do PIB mundial, dois terços da população global, 75% do comércio internacional e 80% do total das emissões em todo o mundo. Portanto, qualquer mudança sistêmica passa inevitavelmente por esse agrupamento.

O grupo está sob a presidência do Brasil até o final de 2024, e a agenda proposta pelo país e encaminhada pelo embaixador Mauricio Lyrio, apontado como condutor das negociações, se centra no desenvolvimento sustentável.

Diante dessa oportunidade de incidência, a empresa B brasileira Din4mo orquestrou o G20 pelo Impacto, uma coalizão global que reúne mais de 40 organizações nacionais e internacionais, com a finalidade de fazer propostas concretas para acelerar a transição rumo a uma economia mais inclusiva, equitativa e regenerativa. Entre os objetivos da coalizão, estão a construção de capital social e qualificação desse debate no G20, a incorporação de propostas concretas nos grupos de trabalho e a construção de continuidade para o G20 na África do Sul em 2025 e para COP 30 no Brasil em 2025.

O Sistema B e B Lab são integrantes da coalizão e entregaram ao grupo de trabalho de finanças sustentáveis do G20 uma proposta que recomenda a criação das benefit corporations em todas as 21 maiores economias do mundo. Isso permitiria abordar diretamente a questão de uma identidade jurídica para empresas com impacto positivo em escala global.

Criar uma identificação legal para esse novo segmento econômico, como propõe o Sistema B Brasil nos âmbitos da Enimpacto, usando a presidência do Brasil no G20 como uma plataforma, pode, assim, promover um novo jeito de pensar e de agir para que tenhamos empresas melhores para o mundo.

 

O AUTOR

Marcel Fukayama é administrador de empresas, com MBA e mestrado em administração pública pela London School of Economics. Cofundador da Din4mo e do Sistema B Brasil, é coordenador do G20 pelo Impacto, senior policy advisor do B Lab, membro do comitê da Enimpacto e membro do Conselhão da Presidência da República.



Newsletter

Newsletter

Pular para o conteúdo