É importante dar a mulheres negras capital para sonhar
Todos nos beneficiamos quando nossas agentes de transformação mais impactantes recebem tempo e recursos para pensar maior
Por Gabrielle Wyatt
M ulheres negras sempre se destacaram e lutaram pelo progresso social, apesar de serem profundamente marginalizadas pelos mesmos sistemas que se esforçam para mudar. Hoje, enquanto nossa democracia se aproxima de um ponto crítico e nossa liderança é mais necessária do que nunca, essas mulheres são frequentemente vistas como ferramentas para progresso social de curto prazo, em vez de seres humanos que imaginam e constroem mudanças para várias gerações. Essa abordagem está trazendo consequências reais para nosso bem-estar emocional e físico.
Nos últimos três anos, essa dinâmica insustentável só foi agravada. Após o assassinato de George Floyd, que gerou protestos em todo o país, muitos de nós ficamos esperançosos de ver progresso. E, de fato, rapidamente notamos um movimento. Observamos compromissos inéditos de empresas e filantropias com iniciativas de justiça racial. A contratação de profissionais de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) subiu 168,9%, e o financiamento aumentou para organizações voltadas para reduzir a desigualdade racial para meninas e mulheres negras.
Mas, como infelizmente constatamos, esses compromissos ficaram aquém do necessário – não conseguiram fechar lacunas importantes de financiamento ou prevenir o esgotamento generalizado, muito menos catalisar mudanças sistêmicas reais e sustentáveis. Relatórios recentes continuam ecoando essas disparidades, revelando que mulheres negras profissionais enfrentam um esgotamento significativo devido ao estresse no ambiente de trabalho, que acelera o envelhecimento em até 7,5 anos na comparação com mulheres brancas.
Precisamos ver esse alerta pelo que ele realmente é. Se, como sociedade, desejamos alcançar uma mudança transformadora, devemos refletir criticamente sobre o que significa dar apoio às mulheres negras como seres humanos, imaginando e criando mudanças audaciosas, não apenas para hoje, mas para os próximos 20, 30, 40 anos.
Olhando para o passado
Para entender como investir nas mulheres negras, é importante refletir sobre a abordagem da nossa cultura ao financiamento dessas mulheres, desde o passado até hoje.
Mulheres negras sempre foram – e continuam sendo – pioneiras na filantropia, movimentando a coletividade para impulsionar mudanças sociais. Desde assar e vender tortas, biscoitos e bolos em salões de beleza e esquinas até reunir recursos para criar cooperativas de terras, mulheres negras impeliram muitos dos mais importantes avanços sociais dos Estados Unidos. Sabemos que a sobrevivência das nossas comunidades depende de trabalhar juntas e compartilhar recursos, e, por gerações, assim temos feito. Atos cotidianos de doação, compartilhamento de recursos e construção de comunidade têm sido nossas estratégias de enfrentamento ao racismo, ao sexismo e às suas intersecções.
A sociedade se beneficiou enormemente das conquistas das mulheres negras no progresso social – e, ainda assim, elas não foram beneficiadas da mesma forma. Estima-se que uma mulher negra nos Estados Unidos perca em média US$ 964,4 mil ao longo de uma carreira de 40 anos devido à desigualdade salarial. No entanto, elas continuam engajadas, apoiando causas com seu tempo, ações e até capital, doando 25% mais de seus recursos pessoais do que mulheres brancas. A história da servidão das mulheres negras dentro dos sistemas e culturas – incluindo a filantropia atual – continua a ser uma realidade, uma vez que essas mulheres enfrentam preconceitos raciais sistêmicos nas práticas de financiamento. De acordo com uma pesquisa da Fundação Ms, organizações focadas especificamente em mulheres e meninas negras – que quase sempre são lideradas por mulheres negras – receberam apenas 4% dos US$ 356 milhões destinados por fundações para esse público em 2017.
Mudando o cenário
Embora as conquistas das mulheres negras tenham sido historicamente negligenciadas, nossa abordagem inovadora e visionária persiste – e ainda é possível evoluir e criar espaços de liderança onde possamos prosperar. De fato, já estamos vendo alguns avanços nesse sentido, e isso exige aprender e aplicar as lições do passado, redistribuir poder, reinventar soluções e criar novas alternativas.
Um exemplo dessa evolução é o Black Feminist Fund (BFF), uma organização voltada para a cultura das mulheres negras e da filantropia, que oferece subsídios flexíveis e de longo prazo, além de redes de apoio para organizações lideradas por mulheres negras.
Indo além: investindo em capital dos sonhos
Ao longo dos anos, vimos algumas das inovações mais impactantes surgirem quando líderes recebem “capital de sonho” — um investimento financeiro baseado na confiança, que lhes permita olhar além dos problemas sociais do dia a dia e imaginar e buscar possibilidades maiores, além de horizontes de um, três e até dez anos.
Temos exemplos comuns de capital de sonho ao nosso redor. Vemos componentes desse capital com o Projeto Audacious do TED, uma iniciativa de financiamento que encoraja agentes de mudança global a sonharem grande. Notamos isso também com o Lever for Change, que derruba barreiras no financiamento ao encorajar doadores a usarem um modelo de convocação aberta — em vez de uma abordagem só por convite — para financiar soluções ousadas de mudança que impactarão gerações futuras.
Um dos empregos mais comuns de capital de sonho é o custeio de startups em estágio inicial; fundadores conseguem o espaço para dar vida às suas ideias com investimentos entre US$ 5.000 e $100 mil feitos por amigos e familiares. Com esses recursos, os empreendedores ganham a confiança para testar hipóteses, fortalecer sua capacidade interna e ajustar sua estratégia antes de avançar para o desenvolvimento em grande escala.
No entanto, o acesso ao capital de sonho é quase inexistente para mulheres negras. Embora os dados mostrem que startups se saem melhor ao longo do tempo quando recebem investimentos de rodadas com amigos e familiares, essas oportunidades estão disponíveis apenas para um grupo privilegiado, predominantemente branco e masculino, o que perpetua um problema ainda maior que amplia a diferença entre startups lideradas por fundadores homens brancos e aquelas lideradas por mulheres negras.
Essa falta de financiamento inicial faz com que mulheres negras comecem muito atrás de suas contrapartes brancas, perpetuando o efeito dominó da segregação econômica.
O viés e o privilégio não são exclusivos do setor com fins lucrativos. O acesso filantrópico desigual e os níveis de investimento para soluções lideradas por mulheres negras e pessoas não brancas em todas as etapas são amplamente documentados. E o efeito de curto prazo é claro: soluções imediatas são financiadas com orçamentos reduzidos, diminuindo a escala do impacto. Líderes negras permanecem em um ciclo tóxico de juntar subsídios pequenos e temporários para resolver desafios de séculos.
O efeito de longo prazo da limitação de capital de sonho raramente é mencionado. A falta de financiamento inicial e abundante restringe ou, a bem da verdade, elimina a capacidade de uma líder de erguer a cabeça e olhar para as gerações futuras. Isso significa que os subsídios financiam retroativamente soluções do passado. Isso não contribui para acelerar o progresso social — na verdade, apenas nos põe e mantém em modo de recuperação. Esse atraso aprofunda os custos não apenas para o progresso social e a mudança sustentável, mas também para a subsistência das próprias líderes – mulheres negras.
Se acreditamos no poder da liderança dessas mulheres, temos a obrigação de criar mais oportunidades para o capital de sonho. Eis a questão: mulheres e meninas negras há muito tempo imaginam e constroem soluções que impulsionam nossa nação com capital limitado. Agora, temos a oportunidade de romper um ciclo vicioso de esgotamento, expectativas injustas e soluções insustentáveis.
Resolver questões profundas e sistêmicas exige que ampliemos nosso pensamento fora dos limites há muito estabelecidos. Requer que liberemos toda nossa imaginação e sonhemos com soluções maiores, mais profundas e mais sustentáveis.
Vimos a generosa bolsa MacArthur, apelidada de Bolsa dos Gênios, contribuir para essa evolução. Ao permitir que seus recipientes se afastem de atividades meramente remuneradoras e se engajem em trabalhos inovadores que não têm um retorno material de curto prazo, a bolsa beneficia a sociedade ao longo do tempo, de maneiras imensuráveis.
Para tornar isso uma norma para mulheres negras, é necessário investir em espaços restaurativos como o The Highland Project, organização que fundei há dois anos, na qual investimos em líderes negras, ou “Líderes Highland”, dando-lhes espaço e capital de sonho para descansar, sonhar e construir. Especificamente, fornecemos três recursos importantes: uma experiência de 18 meses de encontros curados, ancorados em descanso, criatividade e imaginação; US$100 mil em capital de sonho direto e irrestrito; e uma comunidade de líderes negras de diferentes gerações, setores e posições de poder.
Para nós está claro que é essencial investir em espaços que coloquem a mulher negra no centro. A seguir, aprendizados que tiramos de nossa experiência.
Para retornar às nossas visões ousadas como mulheres negras, capital confiável e espaço para projetar são fundamentais. Acreditamos no poder dos líderes bem além dos ciclos de notícias, e, portanto, em nosso processo de aplicação, nunca somos informados de como eles usarão o capital, mas sim da visão de mudança que vislumbram para múltiplas gerações no futuro. Descobrimos que fornecer capital de sonho também permite que as líderes se concentrem na restauração pessoal, onde podem descansar, imaginar e desbloquear visões ousadas e soluções para o nosso mundo. Porque sabemos, e vimos, que olhos cansados criam um mundo cansado.
O capital de sonho é a ponte entre onde estamos e onde precisamos estar. O que estamos vendo em nossos investimentos iniciais, desenhados por líderes que tiveram espaço para descansar e sonhar, é que elas se concentram em romper o ciclo tóxico de investimentos de curto prazo em suas comunidades. Líderes como Carolene Mays estão construindo e sustentando o aprimoramento de líderes cívicos negros em Indiana; Rhonda Broussard está atuando com a Generation Hope para criar um ecossistema sustentável para apoiar jovens cuidadores na realização de seus sonhos educacionais a longo prazo; e Mary-Pat Hector está construindo um ecossistema para apoiar organizadores da Geração Z a adquirir seu poder máximo a curto e a longo prazo.
O capital de sonho traz uma mentalidade de abundância, gerando resultados maiores orientados pela comunidade. Por gerações, líderes negras compartilharam suas aspirações e desafios com uma irmandade de apoio que nos dá coragem para enfrentar transformações em um nível sistêmico, inacessível quando estamos isoladas. Mas, quando mulheres negras de diferentes setores, gerações e posições de poder se reúnem com uma mentalidade de abundância que diz que tudo é possível, a inovação se multiplica.
Nos encontros que organizamos, vemos o que é possível: ideias maiores, maior criatividade e ambições mais audaciosas. Ao longo dos anos, nós – juntamente com nossos investidores – aprendemos que criar essa comunidade afetiva e centrada em mulheres negras exige que todos nós desaprendamos os mecanismos tradicionais da filantropia e retornemos ao DNA da filantropia liderada por mulheres negras, fundamentada em comunidade, colaboração, amor e restauração.
Para investir em um mundo mais sustentável, justo e equitativo, precisamos reconhecer e tratar as mulheres negras como líderes e investir em apoiá-las e ao seu trabalho. Ao pensar sobre esses últimos anos e sobre os enormes compromissos corporativos e filantrópicos que foram feitos, pergunto-me quanto poderia ter sido realizado se o direcionamento tivesse sido para restaurar e sustentar o bem-estar das líderes negras. Como o impacto desse capital poderia ter se multiplicado se essas mulheres pudessem liberar seu poder coletivo e individual?
Por muito tempo, as mulheres negras nos mostraram como a filantropia precisa mudar – é hora de começarmos a ouvir e repensar radicalmente o que significa investir nelas.
A AUTORA
Gabrielle Wyatt é fundadora do The Highland Project, uma organização focada em construir e sustentar uma coalizão de mulheres negras que lideram comunidades, instituições e sistemas. Anteriormente, ela foi sócia do The City Fund, diretora de estratégia da Civic Builders e diretora-executiva de estratégia das Escolas Públicas de Newark.
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