Contra o trauma da prisão parental
A Children Heard and Seen dá apoio para que filhos de detentos tracem um caminho diferente
Por David Shipley
Em 2011, trabalhando com crianças que entravam no sistema de justiça criminal, a gerente sênior dos Serviços Sociais de Oxfordshire, Sarah Burrows, percebeu que uma alta porcentagem desses jovens era de filhos de detentos. Burrows descobriu que não existia nenhuma organização no Reino Unido para ajudar esses jovens. Ela não conseguiu nem encontrar dados sobre quantas crianças britânicas tinham pai ou mãe na prisão.
No entanto, ela tinha os dados sobre os efeitos adversos do encarceramento dos pais sobre as crianças: filhos e filhas de prisioneiros têm três vezes mais chances de ir para a prisão quando adultos e três vezes mais chances de sofrer problemas de saúde mental ou desenvolver comportamento antissocial do que aqueles cujos pais nunca foram presos. Além disso, o encarceramento dos pais representa um fator de risco significativo para uso de drogas, abandono escolar e futuro desemprego.
Quando um dos pais vai preso, as famílias se tornam vulneráveis a instabilidade financeira, pobreza, dívidas e desestruturação da moradia. Os cuidadores sofrem, e as crianças podem ficar sujeitas a arranjos instáveis. Além disso, elas muitas vezes passam por um tipo de luto por uma pessoa que um dia saiu de casa e nunca mais voltou. A criança pode, ainda, experimentar o trauma de uma batida policial na casa.
Embora cada prisioneiro seja indagado sobre se é responsável por alguma criança, a desconfiança e o medo da autoridade os levam a mentir. Como Burrows descobriu, não há dados oficiais sobre o número de crianças britânicas afetadas pelo encarceramento dos pais, embora o relatório Crest Children of Prisoners de 2019 estime que o número seja de 312 mil jovens ao ano.
Burrows viu a necessidade de uma organização que apoiasse esses jovens. Atualmente, o Estado só provê aos prisioneiros, não a seus filhos. Ela decidiu por formar uma instituição de caridade, pois no Reino Unido muitos financiadores preferem essas entidades, por terem de seguir padrões de governança mais rígidos. E fundou a Children Heard and Seen (Chas) em julho de 2014. Sua missão é dar apoio a filhos dos prisioneiros, desenvolver e demonstrar as melhores práticas para quebrar os padrões de encarceramento intergeracional e aumentar a conscientização, a fim de obter financiamento do governo para todos. Hoje, a instituição fornece apoio a mais de mil crianças e suas famílias envolvidas com o sistema de justiça criminal.
Construindo propósito, pertencimento e confiança
A Chas foi lançada com uma campanha de crowdfunding que arrecadou aproximadamente £10 mil no fim do primeiro semestre de 2014. Ralph Lubkowski, diretor de uma prisão masculina em Worcestershire, Inglaterra, e presidente do conselho de curadores da Chas, disse que obter recursos tem sido difícil porque a maioria dos financiadores de grande escala exige métricas quantitativas como “quanto reduziremos a reincidência para cada US$ 10 mil doados” – uma estatística impossível de se determinar com base no modelo de apoio da Chas.
A instituição conta com crowdfunding, fundos de caridade e indivíduos generosos como Emma Wilson, advogada corporativa e monitora independente de uma prisão feminina, que apoia a Chas porque acredita que ela fornece um “apoio robusto” para as crianças, ao mesmo tempo que aumenta a visibilidade sobre uma questão muito escondida.
Naquele período inicial, Burrows utilizou seus contatos nos sistemas locais de assistência social e educação para distribuir materiais que anunciavam eventos para pais, cuidadores e crianças que precisavam de apoio. Os eventos foram financiados pelo Ian Mactaggart Trust e pela Fundação Comunitária de Oxfordshire, somando um total de £ 10 mil.
A Chas oferece serviços personalizados, que combinam elementos práticos e terapêuticos. Cada criança tem a oportunidade de ter um mentor e um profissional treinado, que se reúnem com elas fora de casa. Os jovens também participam de trabalhos em grupos adaptados em torno da identidade, origem socioeconômica e tipo de delito dos pais. O objetivo é ajudar as crianças a se curarem do trauma do encarceramento parental, construindo seu senso de propósito, pertencimento e confiança.
Uma vez que uma família entra em contato com a Chas, ela tem acesso a apoios não financeiros voltados para lidar com as fontes de insegurança. Por exemplo, a família pode receber aconselhamento gratuito sobre processos judiciais, terapia e orientação para cuidadores, além de assistência para encontrar emprego e moradia e acessar benefícios do governo e serviços sociais. A Chas chegou a assumir a defesa de cuidadores perante varas de família, em situações nas quais crianças corriam o risco de ir para orfanatos.
O foco estratégico da instituição na dignidade e no bem-estar impões seus próprios desafios. O diretor de políticas e comunicações estratégicas da Chas, Felix Tasker, diz que os financiadores geralmente exigem relatórios de impacto que indagam, por exemplo: “Se fizermos X por Y semanas, qual será o impacto na saúde mental e na taxa de delitos?”. Mas, explica, “o senso de propósito, de confiança e de pertencimento é difícil de medir. Não podemos nem sequer dizer exatamente como ajudaremos cada criança, porque o apoio é muito personalizado”.
Os serviços personalizados da Chas podem ser creditados, em grande parte, a muitos de seus funcionários e curadores que trabalharam no ou com o sistema de justiça criminal. Burrows e a diretora de operações, Leanne Manning, são assistentes sociais. James Ottley, um gerente que supervisiona o apoio pessoal, teve um cargo no serviço de “ajuda antecipada”, que atua no início da prisão parental, tentando evitar que as crianças e famílias venham a precisar de intervenção formal dos serviços sociais. Entre os curadores, há um diretor prisional (Lubkowski), um superintendente de polícia e um assistente social sênior. A Chas também trabalha em estreita colaboração com o sargento da região do Vale do Tâmisa, Russ Massie, que faz um trabalho de divulgação para combater o medo e a desconfiança das crianças em relação aos policiais.
Embora alguns pais possam inicialmente ser cautelosos com os assistentes sociais, pois temem que seus filhos possam ser levados, passam a valorizar a experiência e a capacidade da equipe para transitar pelo sistema. Jen, uma mãe cujos dois filhos foram sustentados pela Chas nos últimos seis meses, teve de comparecer a uma audiência por descobrir que seu marido estava abusando de sua filha. Jen e seus filhos ficaram profundamente perturbados e traumatizados, mas ela disse que agradecia a Manning por ter testemunhado na audiência como defensora dos interesses de sua filha.
Mudando para atender ao momento
Por causa dos estigmas, mesmo assistentes sociais e educadores muitas vezes não sabem como discutir a prisão dos pais com as crianças. Alice, cujo filho estava no jardim de infância quando seu pai foi preso, em 2021, ficou surpresa quando sua professora recomendou que ela inventasse uma história falsa para explicar a ausência. Alice queria ser honesta com o filho, mas não sabia bem como falar com ele.
A abordagem da Chas insiste na verdade porque, como explica Burrows, “uma vez que as crianças descobrem uma mentira sobre sua infância, elas questionam todo o resto”. Filhos de prisioneiros muitas vezes desconfiam de figuras de autoridade e podem ficar bravos com o que consideram ser o encarceramento injusto de seus pais.