Deixem as comunidades liderarem a pesquisa

Financiadores devem capacitar comunidades para que comandem os próprios projetos de pesquisa

Há tempos os movimentos por justiça social certificam o lema: “aqueles mais próximos do problema estão mais próximos da solução”. Pessoas com experiência vivida relevante, que residem em uma mesma área geográfica e/ou compartilham aspectos comuns de identidade ou origem encontram-se numa posição singular para se engajar em questões críticas de pesquisa e ajudar a desenvolver e implementar soluções. No entanto, fundações filantrópicas e governos, os principais financiadores de investigações científicas, têm relutado em investir nesses indivíduos como líderes de pesquisas.

Organizações de base comunitária (OBCs), normalmente lideradas por membros locais e formadas em resposta às necessidades da comunidade, representam uma das vias para que pessoas com experiência vivida conduzam pesquisas. Embora tenhamos observado algum avanço em direção ao engajamento comunitário em investigações, por meio de abordagens participativas baseadas na comunidade e de incentivos de financiadores, esse tipo de engajamento tende a ocorrer apenas quando as OBCs e as comunidades têm necessidades que coincidem com a agenda de pesquisa de acadêmicos em condições de garantir financiamento para investigar a questão. Os recursos financeiros para pesquisa ainda fluem majoritariamente por meio de instituições acadêmicas, e não diretamente para as OBCs, o que reforça o desequilíbrio de poder. 

Se aqueles mais próximos do problema estão mais próximos da solução, devemos equipar comunidades e organizações que as representam com fundos suficientes para que conduzam as próprias pesquisas e desenvolvam e implementem as próprias soluções. No modelo de pesquisa liderada pela comunidade, a própria coletividade identifica um problema, coleta e analisa informações sobre ele, e propõe e implementa uma solução, com ou sem o apoio de colaboradores.

A filantropia pode oferecer um terreno fértil para testar essas mudanças, que podem ser ampliadas e disseminadas para outros financiadores privados e governamentais. Nos últimos cinco anos, a AcademyHealth, uma associação profissional que representa os campos de serviços de saúde e pesquisa sobre políticas públicas, e a Robert Wood Johnson Foundation (RWJF), uma instituição filantrópica dedicada a transformar a saúde, realizaram um programa-piloto de pesquisa liderada pela comunidade para reformular sistemas de saúde locais, com o propósito de testar estruturas de financiamento equitativas, apoiar uma cultura de pesquisa inclusiva e promover a liderança comunitária nesse tipo de investigação. Essa experiência apresenta oportunidades para financiadores reavaliarem como seus fundos são concedidos, quem é financiado, como a pesquisa é conduzida e como esse trabalho é comunicado e valorizado.

Engajamento comunitário

A pesquisa liderada pela comunidade é uma abordagem importante, mas subutilizada, que os financiadores deveriam considerar em seus esforços para apoiar o crescimento comunitário. Esse modelo de pesquisa pode assumir muitas formas diferentes. Nosso trabalho tem se concentrado em auxiliar OBCs como líderes em pesquisa, o que demanda ajustes nas abordagens de concessão de financiamento para garantir que o processo de solicitação não seja penoso ou injusto. Isso requer abertura e disposição para considerar a comunidade como o centro da pesquisa, permitindo que novos e diferentes métodos sejam identificados e defendidos pelas próprias comunidades com base em seu conhecimento. E exige que financiadores reconheçam e confrontem preconceitos que subestimam a capacidade das OBCs para a pesquisa.

Os investimentos em pesquisa têm historicamente favorecido pesquisadores e instituições bem estabelecidos, com frequência liderados por pessoas brancas e com infraestrutura de pesquisa robusta. Essas instituições recebem a maior parte do financiamento de organizações privadas e do governo, e decidem as questões, a agenda e as prioridades da investigação sem considerar as preocupações ou necessidades de comunidades sub-representadas. Além disso, financiadores de pesquisa podem hesitar em subsidiar OBCs devido a preocupações com sua estabilidade fiscal ou à percepção de que não possuem expertise para gerenciar grandes somas de dinheiro. Instituições acadêmicas, mesmo quando conduzem pesquisas em parceria com uma comunidade, podem não tratar seus parceiros comunitários como colíderes. Essa abordagem de cima para baixo permite que pessoas normalmente distantes das experiências da comunidade moldem a investigação científica. Esse desequilíbrio de financiamento e poder restringe o escopo da pesquisa, produz muitas vezes resultados que não refletem as experiências vividas ou as preocupações das comunidades e perpetua injustiças sistêmicas.

Já a pesquisa com engajamento comunitário envolve membros do grupo no planejamento, na divulgação, na execução e no processo global da investigação. Nas últimas décadas, o número de projetos que se valem dessa abordagem aumentou de maneira significativa. O sucesso dessas iniciativas depende da qualidade da parceria que se estabelece entre a academia e as comunidades. No entanto, a despeito da proposta de se criarem parcerias equitativas, os desequilíbrios de poder com frequência persistem, em especial em funções de liderança e no acesso a financiamento.

A partir de 2020, a RWJF buscou verificar se a exigência de liderança comunitária em projetos de pesquisa poderia ajudar a desmantelar as estruturas de poder tradicionais que sustentam os sistemas de opressão na pesquisa e na prática de saúde, além de fortalecer o poder comunitário. Em 2022, no programa-piloto Community Research for Health Equity (CRHE) [Pesquisa Comunitária pela Equidade em Saúde, em tradução livre], a fundação concedeu subsídios a dez organizações para a condução de projetos que abordassem questões de sistemas de saúde locais relevantes para comunidades não brancas, pessoas com deficiência, indivíduos LGBTQ+ e outras populações historicamente marginalizadas. O CRHE é gerenciado pela AcademyHealth, com apoio da empresa de inovação social sem fins lucrativos Design Impact e da consultoria Change Matrix.

Projetamos o CRHE e o edital de financiamento em colaboração com a RWJF, pesquisadores que trabalham em parceria com membros comunitários em projetos de pesquisa e, ainda, membros comunitários com experiência em atividades de pesquisa. O objetivo era abordar barreiras históricas que travam as solicitações de financiamento de pesquisa por parte das OBCs. Também simplificamos o processo de requerimento, por meio de respostas narrativas mais curtas e menos fases de inscrição. Além disso, fornecemos apoio aos candidatos, incluindo webinars para apresentar o edital, recursos para auxiliar na preparação de orçamentos de projetos e respostas a perguntas dos candidatos enquanto desenvolviam suas propostas.

Embora a solicitação de propostas (RFP, na sigla em inglês para Request for Proposal) tenha sido feita por convite e não aberta ao público, o que pode introduzir seu próprio viés ao depender de convites por meio de contatos conhecidos, convidamos mais proponentes de OBCs (60% dos convidados) do que de instituições acadêmicas. Para pesquisadores dessas instituições, a RFP estipulava que os pesquisadores principais deveriam ser OBCs ou pesquisadores engajados nas comunidades, trabalhando em parceria equitativa com membros ou organizações comunitários, e que o tema do projeto deveria ter se originado na comunidade em foco.

A maioria dos respondentes de uma pesquisa feita com os candidatos disse que tinha tido uma experiência positiva. Apreciaram o incentivo e o convite para se candidatar, a natureza direta do processo de proposta, o alinhamento do edital com as necessidades de sua comunidade e a oportunidade de desenvolver a solicitação em colaboração com parceiros comunitários. Alguns proponentes apontaram a falta de apoio ou de orientação relacionada ao processo de orçamento e aos critérios e diretrizes gerais para a RFP, refletindo níveis variados de capacidade, conhecimento e compreensão dos processos de RFP entre os candidatos. Essa questão foi mais presente entre as organizações menores. Embora tenhamos oferecido apoio durante o processo de solicitação, não foi suficiente para atender às distintas necessidades de todos os candidatos.

Apesar desse desafio, a maioria dos candidatos, ao longo de todo o processo de solicitação, foi de OBCs. No final, a maioria dos subsídios (60%) foi concedido diretamente a essas organizações, enquanto o restante foi para instituições acadêmicas com uma OBC como coinvestigadora. Esse resultado sugere que nossas mudanças no processo de requerimento realmente ajudaram as OBCs a conseguir fundos para sua pesquisa.

Promover a mudança

Estratégias para tornar justa a concessão de subsídios e realocar financiamento para a pesquisa liderada pela comunidade são essenciais. Mesmo no âmbito de seus sistemas atuais de concessão de subsídios, financiadores de pesquisa podem fazer modificações nos requisitos para solicitação, prazos, avaliadores e apoio aos proponentes – como oferecer webinars e modelos de propostas – para que as OBCs tenham mais sucesso em seus pedidos de financiamento para pesquisa, com ou sem parceiros formais. Por exemplo, os financiadores podem exigir que as OBCs liderem ou coliderem o projeto proposto. Esse papel de liderança capacita membros da comunidade a determinar se precisam de parceiros de pesquisa, a identificar os problemas prioritários para investigação e a coletar e se apropriarem de seus dados. As solicitações de financiamento também podem ser simplificadas, com menos detalhes ou em formatos alternativos às candidaturas feitas por escrito (por exemplo, chamadas telefônicas, inscrições por vídeo ou apresentadas em diferentes idiomas). Essas mudanças significam um enfrentamento às injustiças que historicamente direcionaram o financiamento de pesquisa para instituições com muitos recursos.

Para sustentar e ampliar tais mudanças estruturais, financiadores de pesquisa também precisam lidar com preconceitos que entendem a pesquisa liderada por comunidades como arriscada, demorada e custosa. As OBCs atendem comunidades que, por causa desses mesmos preconceitos, foram marginalizadas e excluídas do financiamento de pesquisa. Rótulos de advertência sobre risco, tempo e custo não são aplicados de forma consistente a esforços de pesquisa tradicionais que, igualmente, enfrentam desafios e exigem tempo e dinheiro. Os financiadores de pesquisa não têm desculpa para não expandir o papel das OBCs e dos líderes comunitários na pesquisa – ao contrário, precisam reconhecer e valorizar sua experiência vivida como um recurso subutilizado na transformação social.

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