Convivência: rede de apoio institucional

Iniciativa articula educação, saúde e segurança para prevenir a violência escolar e garantir ambientes mais seguros e saudáveis para alunos e educadores
Ilustração de Valentina Fraiz

RAIO X

Conviva SP

  • O que é: Programa para promover convivência e proteção escolar.
  • Público-alvo: Estudantes, professores e famílias da rede estadual paulista.
  • Foco de atuação: Clima escolar, saúde mental, prevenção de violência.
  • Início das atividades: 2019.
  • Impacto até agora: Ações preventivas na rede estadual de São Paulo; inspiração para outros Estados.

No dia 13 de março de 2019 ficou transparente para quem trabalhava com a educação pública no Brasil que era preciso tomar providências para que as cenas que dominavam o noticiário não se repetissem. Naquele dia, dois ex-alunos executaram um ataque a tiros na Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP). Além deles, outras oito pessoas morreram.

Nascia ali o que seria oficializado cerca de seis meses depois como o Conviva SP (Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar, no âmbito da Rede Pública Estadual de Educação de São Paulo). “O que o Conviva traz são redes de apoio para a educação no nível institucional: é a saúde olhar para a educação, a segurança olhar para a educação, porque ela é vulnerável e precisa se refazer constantemente, se adaptar aos novos tempos”, explica Mário Augusto Almeida, um dos gestores do programa paulista e hoje à frente de iniciativa semelhante do governo estadual do Pará.

O princípio desse tipo de programa de convivência escolar é apoiar os profissionais da educação com uma infraestrutura multidisciplinar a partir de parcerias com a Saúde, com a presença de psicólogos e assistentes sociais nas escolas e com a atuação conjunta com órgãos da segurança pública como as polícias Militar e Civil e o Corpo de Bombeiros. O objetivo, como expresso no programa nacional Escola que Protege, lançado em outubro de 2024 pelo Ministério da Educação, é “promover a cultura de paz e a convivência democrática”, e dessa forma “fortalecer a capacidade das redes de ensino para prevenir e enfrentar a violência nas escolas”. 

A necessidade de profissionais de psicologia na Educação ficou evidente naquele 13 de março de 2019. Almeida, professor de formação e que naquela época estava alocado havia mais de dez anos na área de finanças da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP), mas que também era psicólogo clínico, atendeu à convocação: todos os profissionais de psicologia deveriam se encaminhar ao comitê de crise estabelecido naquela tarde, no qual se estruturou o cuidado com as escolas do entorno da Raul Brasil. Foi uma “participação especial” de Almeida na situação de emergência, que logo alteraria definitivamente seu percurso na secretaria. Dois anos depois, ele estaria à frente do Conviva SP. 

O movimento de levar profissionais de psicologia para dentro das escolas foi uma resposta de política pública ao ataque de Suzano, não só em nível estadual, com o  Conviva em São Paulo, mas no federal, com a lei 13.935, de 11 de dezembro de 2019, que determinou a presença de serviços de psicologia e serviço social nas escolas públicas brasileiras.

Estudos já indicavam que o caminho do enfrentamento à violência nas escolas passava pela melhoria do ambiente de ensino pela convivência, como os desenvolvidos pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (GEPEM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade  Estadual  Paulista (Unesp), mas o ataque de Suzano acabou dando força para que as ideias fossem colocadas em prática. 

O Conviva é a saúde olhar para a educação, a segurança olhar para a educação, porque ela é vulnerável e precisa se refazer constantemente, se adaptar aos novos tempos

O espírito dos programas de convivência escolar, que vêm se espalhando desde então para estados como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Pará, não se limita a esse tipo de contratação nas escolas. Trata-se de uma articulação no nível das instituições, e um dos pontos-chave para que eles funcionem e efetivamente reduzam a violência e favoreçam o ambiente de aprendizado é que quem atua na linha de frente entenda o papel de cada um dos atores institucionais. 

“Na cabeça do diretor da escola, nós iríamos fazer clínica lá dentro. Já pensavam em preparar uma sala para atendimentos, só faltava um divã”, conta o psicólogo Leandro Nunes, da assessoria de convivência educacional da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc-PA), sobre os desafios da implantação. “Porque eles não tinham ainda o conhecimento do papel do psicólogo escolar, que é coletivo e preventivo.”

Os núcleos multiprofissionais são compostos de profissionais de pedagogia, psicologia, serviço social e das forças de segurança, com a possibilidade da presença de policiais aposentados como consultores. O resultado esperado é que, na ocorrência de um problema dentro da escola, o trio gestor (diretor, vice-diretor e coordenador pedagógico) se sinta apoiado para tomar as medidas mais adequadas, como encaminhamento a serviço de saúde ou assistência social, trabalho psicológico preventivo, ações de justiça restaurativa e até intervenções policiais.

Além da presença física dos profissionais no ambiente escolar, o Conviva e outros programas de convivência escolar trabalham com capacitação online e presencial de professores e de todos os outros profissionais envolvidos, com apoio de organizações como o Instituto Ame sua Mente, que participou no Conviva SP de um percurso formativo voltado a ensinar os docentes a cuidar da própria saúde mental e a reconhecer questões dentro da sala de aula, ou a Fundación MAPFRE, com trabalhos sobre bullying.

Como resultado dos treinamentos, surge a figura do professor orientador de convivência. “Quando acontece a ocorrência, essa pessoa tem condições de identificar se aquele caso precisa de uma intervenção especial”, explica o capitão William Thomaz, que esteve à frente da ação Escola + Segura, o braço de segurança pública do Conviva SP, até 2022. Ele ressalta que esse tipo de treinamento ajuda inclusive a comunidade escolar a reconhecer alunos ou pessoas que deem sinais psicológicos indicando propensão a fazer ameaças ou executar ataques.

Assim como em outros programas focados na convivência escolar, o componente da segurança é forte, com ações bastante concretas para enfrentar e prevenir a violência, como testemunho de terem sido criados após o ataque de Suzano. Em alguns casos, como o da Seduc-SP, a convivência serve de guarda-chuva para subprogramas que incluem o plano específico para a segurança. Já no Pará e no âmbito nacional é o contrário: a política pública tem a denominação principal ligada à segurança, e a convivência é uma parte dela.

Em São Paulo, no Escola + Segura, houve ações muito objetivas: instalação de câmeras de vigilância no ambiente escolar, rastreamento e análise dos dados de ocorrências e mais recentemente a instalação de botões de pânico nas escolas, que podem ser acionados por meio do aplicativo usado por professores.

Uma das iniciativas mais importantes, na avaliação do capitão Thomaz, “foi explicar para a rede de ensino o papel de cada um no sentido da segurança. O que os oficiais faziam antes era acompanhar o serviço da ronda escolar”, lembra ele. Com o programa, a visão da segurança nas escolas passou a ser muito mais integrada, a partir da comunicação entre as áreas. “A Educação precisava melhorar no sentido de identificar o que é uma ocorrência criminal e o que não é. Quando é que a polícia atua? Estabelecemos então esse nome: ocorrência criminal, quando é responsabilidade policial, e ocorrência de convivência escolar, e aí a polícia não tem nada a ver.”

Manuais e protocolos ajudam a comunidade escolar e os gestores a distinguir os dois casos e acionar as forças de segurança. O policial dá um exemplo: “Um aluno não quer sair da sala de aula. A professora pede para ele sair e ele não sai. Isso é um problema policial? Não. Mas muitas vezes a escola chama a polícia, e aí sim vira um problema policial”. Com os programas de convivência, a direção da escola tem mais ferramentas para lidar com esses casos e a polícia pode se concentrar nos eventos de real gravidade. “A gente teve apreensão de armamento, conseguiu impedir atentados”, conta Thomaz.

O protocolo paulista dá o passo a passo para a tomada de providências, desde os casos de agressão verbal, em que o acionamento das forças policiais é opcional, até a situação de porte de arma na escola ou bullying sistêmico, em que é obrigatório lavrar um boletim de ocorrência, entre outras medidas.

Usamos diversas dinâmicas para trabalhar com os alunos, e também com os professores e as famílias. Essa nova geração precisa desse diálogo. Isso pode evitar muitos conflitos

A ênfase na comunicação entre os atores ficava clara também nas visitas das equipes às escolas com problemas, das quais o capitão participou quando estava no programa. Esse intercâmbio deve ser feito com toda a comunidade escolar, que, como ressalta ele, não se limita a alunos e professores, mas envolve todas as pessoas que pisam na escola e no entorno – da dona da venda na esquina ao faxineiro. De acordo com Thomaz, uma visita incluiria a equipe completa: policial militar, profissional de psicologia, de serviço social e de pedagogia, que fazem uma roda de conversa com representantes locais, o capitão da área, o dirigente de ensino, para entender o problema em questão – por exemplo, uma ameaça de ataque. 

A rapidez no atendimento desse tipo de ocorrência é crucial, destaca o professor e psicólogo Mário Augusto Almeida. Quando acontece um caso grave, a resposta de toda a administração precisa ser imediata, e não só para evitar concretamente que ocorra um ataque ou um suicídio, mas para acolher e minimizar danos. Almeida conta que, certa vez, atendeu uma situação de mal súbito em que o estudante veio a óbito dentro da sala de aula. “Chegamos rápido, fizemos o acolhimento com a equipe da escola, os primeiros socorros psicológicos.” E essa agilidade, explica, impediu que se espalhassem boatos na escola sobre a causa da morte. A assistência social também participou no momento do enterro. 

“O Conviva é isso. Permitir que a gestão escolar possa se preocupar com a aprendizagem, deixando que esses outros atores cuidem das outras coisas”, diz Almeida, ao descrever a rede de apoio institucional dos programas de convivência.

Sem calendário colorido

O psicólogo Leandro Nunes explica que, no Pará, as atividades diretas com os alunos, ligadas à assessoria de convivência educacional, já não seguem mais os chamados meses coloridos, como o janeiro branco, de conscientização sobre saúde mental, ou o setembro amarelo, de prevenção ao suicídio, ou ainda as ações antirracistas concentradas em novembro. “A gente tem de trabalhar saúde mental todos os meses, bullying todos os meses, racismo todos os meses. Fazemos o enfrentamento de todas as formas de violência, com rodas de conversa, palestras, justiça restaurativa, sempre com caráter preventivo e de forma coletiva.”

Em termos de estrutura, a assessoria de convivência educacional do Pará comanda o programa no nível da Seduc, com psicólogos, pedagogos, assistentes sociais, que trabalham em paralelo com o Núcleo de Segurança Pública e Proteção Escolar, no qual atuam coronéis da reserva. Abaixo dessa esfera estão as Diretorias Regionais de Ensino (DREs), distribuídas geograficamente e responsáveis por um determinado número de escolas. Nas DREs, também há núcleos multiprofissionais, com psicólogo, assistente social, pedagogo e policial militar. E, nas escolas, há a presença de profissional de psicologia, embora, devido ao onipresente desafio orçamentário enfrentado por essas iniciativas, ainda não haja um assistente social para cada escola.

Os serviços sociais orientam o encaminhamento de estudantes para a rede de proteção, se necessário, e também chamam a família para a escola – não só para falar de alunos problemáticos, como era feito antes, mas também, segundo Almeida, para propor temas que precisam ser discutidos, como: “Quando dá para deixar a criança dormir na casa do vizinho?”.

No caso do Pará, há um planejamento anual de temas a serem abordados nos treinamentos e com os estudantes, que pode ser adaptado e modificado de acordo com os acontecimentos e as características de cada região. “Na região do Marajó, pode haver um trabalho maior sobre a questão da gravidez na adolescência, da violência contra meninas e mulheres, diferente da região de Marabá, pois em Parauapebas, ou Canaã dos Carajás, há mais necessidade de educação antirracista”, diz Nunes.

A pedagoga Maria Bernadete Santos de Oliveira, dirigente da DRE responsável por 45 escolas do município de Belém (PA), considera que a contratação de profissionais de psicologia e de serviço social para atuar na educação foi uma resposta positiva à “sobrecarga da equipe da escolar e ao pedido de socorro dos pais, que não sabem lidar com essa nova era de nossos alunos”.

“Predominavam as problemáticas de violência, bullying, evasão escolar, conflitos, baixa autoestima, dificuldade de cuidar da saúde emocional e psíquica, falta de respeito às diferenças, de gênero e outros”, descreve Oliveira, acrescentando que a iniciativa proporciona aos alunos o que ela chama de “a necessidade do século”: a escuta. “Usamos diversas dinâmicas para trabalhar com os sujeitos do processo, os alunos, e muitas vezes também com os professores e com as próprias famílias. Essa nova geração precisa desse diálogo. Isso pode evitar muitos conflitos.”

Como as iniciativas multiprofissionais voltadas para a convivência escolar são relativamente recentes, ainda não há números consolidados com resultados, mas em seu dia a dia a pedagoga diz perceber uma redução palpável nos casos de violência.

O psicólogo Almeida concorda, dando como exemplo a educação antirracista adotada pela Seduc-SP em 2021 na formação voltada para os professores. “Foi uma grande sacada, porque quando a gente começa a pensar em racismo, a oferecer letramento racial para todos, a violência despenca. Ele traz um olhar mais empático para o ambiente escolar, e há um aquietamento das unidades, aumenta o senso de pertencimento.” Para Almeida, “o Conviva é um programa feito para não aparecer”. O trabalho de inteligência policial e até inteligência internacional é feito de forma sigilosa, diz ele, para monitorar a movimentação de grupos extremistas. 

Nas palavras de Nunes, “sem uma estrutura de convivência, as escolas ficam apagando incêndio. Ficam esperando, torcendo e rezando para que não aconteça nada naquele dia. Com o sistema, se cria um ambiente preventivo, com uma ação antes do problema”. 

A meta das formações e da estrutura dos programas de convivência é multiplicar, a partir da administração, uma liderança empática. “Se o líder tem um olhar de cuidado, ele vai passar isso para a equipe, incluindo o professor. E o professor é um líder, que vai impactar na aprendizagem dos estudantes. Os alunos terão o mesmo olhar empático. E, se a gente desenvolve uma competência socioemocional em que o estudante entende que cuidar do outro te faz ainda melhor, o Conviva chegou”, conclui Almeida. 

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