Nos Últimos meses, assistimos a mudanças profundas no ecossistema da cooperação internacional para o desenvolvimento social. A redução dos orçamentos da cooperação bilateral dedicados à assistência humanitária e a programas de desenvolvimento social teve significativas consequências. Em todos os continentes, iniciativas em curso foram abruptamente interrompidas, reduzidas ou forçadas a se encerrar por completo. Em regiões afetadas por conflitos ou desastres naturais, a retirada repentina do financiamento internacional deixou populações vulnerabilizadas sem acesso a serviços essenciais, como saúde, educação e segurança alimentar. Organizações que antes dependiam de subsídios internacionais para sustentar as suas operações viram-se incapazes de responder a necessidades urgentes, e algumas foram obrigadas a demitir funcionários ou até mesmo pôr fim em suas atividades.
As restrições orçamentárias foram acompanhadas por uma mudança importante na definição de áreas prioritárias. O financiamento a iniciativas em agendas que podem ser consideradas politicamente sensíveis foi relegado, o que para as organizações que trabalham com essas agendas dificultou ainda mais a obtenção de apoio. A tendência dos financiadores de reduzirem o apetite pelo risco não ficou restrita à cooperação bilateral e foi sentida em todo o campo, em menor ou maior grau.
Embora essas mudanças tenham sido disruptivas, elas também podem ser um chamado para realizar mudanças na arquitetura de cooperação internacional para o desenvolvimento. As estruturas que orientaram o desenvolvimento global durante décadas – em grande parte moldadas por um amplo consenso sobre os valores e prioridades dos direitos humanos, compiladas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e posteriormente detalhadas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável; bem como por um fluxo unidirecional de recursos do Norte para o Sul Global – estão cada vez mais desalinhadas com as realidades atuais. Os desafios de desenvolvimento tornaram-se mais complexos, interligados e específicos de cada região. Questões como migração, inclusão digital e justiça climática exigem abordagens diferenciadas que reflitam os contextos e prioridades locais. Agora os interesses nacionais frequentemente ofuscam os globais, e o fluxo de recursos deve adaptar-se a um mundo onde a concorrência e a fragmentação são a norma.
Conexão global-local
Nesse novo ambiente, dentre os vários elementos que podem ser repensados e ajustados, destacam-se a composição do campo de financiamento ao desenvolvimento social, com maior relevância da filantropia, e as mudanças na dinâmica das relações entre os distintos atores desse campo social.
Sabemos que o mundo não carece de recursos para lidar com as desigualdades sociais. Numa economia em que 1% da população controla 40% da riqueza, o desafio reside na alocação dos recursos para a promoção do desenvolvimento social e do bem comum. No Brasil, essa concentração é ainda maior, com 1% da população controlando 63% da riqueza nacional, segundo relatório da Oxfam de 2024.
Diante desse cenário, as organizações multilaterais do sistema ONU, assim como as agências de cooperação bilaterais de vários países, cumprem um papel importante na redistribuição de recursos para que cheguem àqueles que mais precisam. Sua capacidade de mobilizar recursos, que normalmente vêm do Norte Global para o Sul, foi um mecanismo encontrado para promover maior justiça socioeconômica mundialmente.
Tendo em vista os cortes de orçamento e as mudanças de prioridades observadas de maneira mais aguda nas organizações de cooperação bilateral, outros atores passam a ter maior relevância no campo. Dentre eles, destaco a filantropia, tanto a internacional como a nacional. Embora os recursos da filantropia não consigam preencher a lacuna deixada pela cooperação bilateral, ela está em uma posição única de salvaguardar iniciativas estruturantes, testar soluções inovadoras, gerar novos conhecimentos e servir como catalisadora de mudanças sistêmicas.
A filantropia internacional, por exemplo, pode desempenhar um papel importante para garantir estabilidade de fluxo de recursos mais livres a organizações da sociedade civil. Ao oferecer financiamento flexível e plurianual, financiadores internacionais podem ajudar a sociedade civil a superar crises e construir resiliência a longo prazo. Outra importante contribuição é o estabelecimento de conexões entre atores locais e redes globais, a fim de amplificar as vozes das comunidades e facilitar a troca de conhecimento entre regiões. No Sul Global, onde as realidades locais muitas vezes divergem das narrativas globais, essa polinização cruzada é essencial para o desenvolvimento de soluções específicas para cada contexto.
Por sua vez, a filantropia nacional tem o potencial de mapear prioridades e urgências específicas de cada contexto, atuando de maneira rápida e próxima à sociedade de seu país. No Brasil, a necessidade de um setor filantrópico mais robusto é particularmente premente. Apesar de ter quase 60 bilionários e 400 mil milionários, o volume anual de doações privadas do país – cerca de R$ 24,5 bilhões, ou menos de 0,2% do Produto Interno Bruto (PIB) – continua baixo em comparação com países como os Estados Unidos – 1,44% do PIB –, ou Cingapura e Índia, que se aproximam de 0,4% de seus PIBs.
Priorizar a confiança
A filantropia pode, cada vez mais, se consolidar como trincheira de resistência para diversidade e inclusão, desempenhando papéis que vão além do apoio a projetos pontuais. Ela pode pavimentar caminhos para que a sociedade civil organizada cumpra esse seu papel de forma exitosa, especialmente em tempos de policrise.
No entanto, para que a filantropia realize todo o seu potencial, ela deve operar em estreita parceria com aqueles mais afetados pelos desafios mundiais. As abordagens de cima para baixo correm o risco de perpetuar os desequilíbrios de poder e minar a apropriação local. Em vez disso, a filantropia deve priorizar relações baseadas na confiança, na cocriação e tomada de decisões partilhada. Há espaço para uma diversidade de modelos filantrópicos – desde financiamentos de curto prazo para iniciativas específicas até a filantropia de risco e o investimento de impacto –, e todos podem agregar valor quando alinhados com as necessidades e realidades locais.
Parcerias baseadas em confiança e colaboração genuína não são apenas aspirações – elas são essenciais para enfrentar os complexos desafios atuais. A filantropia deve ir além da concessão de apoio financeiro e adotar modelos baseados no respeito mútuo, na humildade e no compartilhamento dos resultados. Isso significa ouvir atentamente, ter disposição para se adaptar e reconhecer que o que funciona em um contexto pode não funcionar em outro. Por exemplo, apoiar fundos comunitários ou iniciativas participativas de concessão de subsídios pode capacitar os líderes locais a definir prioridades e alocar recursos da maneira mais relevante para suas comunidades. Fundos comunitários e territoriais têm se mostrado eficazes em canalizar recursos para iniciativas hiperlocais, com maior capacidade de gerar impacto profundo e duradouro.
Nesse novo ambiente, a adaptabilidade e a resiliência são fundamentais. O que é necessário e urgente numa região pode diferir drasticamente do que é necessário e urgente noutra. As estruturas de financiamento devem tornar-se mais flexíveis, participativas e diversificadas, para poderem responder adequadamente a essas necessidades, em vez de tentarem generalizar soluções e abordagens.
Trata-se de um processo contínuo de aprendizagem, adaptação e parceria, com a compreensão do papel de todos os envolvidos e transparência nas intencionalidades. O diálogo aberto, o investimento no desenvolvimento organizacional e o foco na qualidade das relações com os parceiros são fundamentais para aumentar a relevância e o impacto.
No entanto, o declínio da confiança entre a sociedade civil e o setor privado tem dificultado a colaboração. Muitas fundações privadas concentram-se na implementação direta de projetos, perdendo a oportunidade de fortalecer a sociedade civil como um pilar da democracia que proporciona equilíbrio de poderes, dialoga com todos os governos e mantém a dignidade humana no centro da vida pública. Para resolver isso, a filantropia precisa não apenas aumentar o seu compromisso financeiro, mas também investir na construção de confiança, transparência e objetivos comuns com parceiros da sociedade civil.
A fragmentação dos recursos já escassos é outro desafio. Os setores filantrópico e de responsabilidade social privada brasileiros raramente colaboram. Muitas vezes, financiam iniciativas que competem entre si, dividindo a energia e prejudicando a capacidade de impacto de tais empreendimentos. O cofinanciamento, o codesenho e outras formas de colaboração financeira exigem abrir mão da autoria e do controle, e essa é uma prática que precisa ser mais desenvolvida no Brasil.
Também é crucial reconhecer que a filantropia e os recursos privados, por si sós, não podem atender às vastas necessidades do desenvolvimento social. O financiamento governamental e público continua sendo fundamental, e desenvolver a capacidade da sociedade civil de acessar fontes de financiamento público é uma estratégia vital de longo prazo. Os quadros jurídicos e reguladores desempenham um papel significativo aqui: no Brasil e em outros lugares, a falta de requisitos claros e padronizados e de regulamentação tributária cria barreiras para o acesso ao financiamento, especialmente para organizações pequenas fora dos grandes centros urbanos. A simplificação desses processos é essencial para garantir que os recursos cheguem a quem está em melhor posição para promover mudanças significativas.
À medida que navegamos nesta nova ordem mundial, torna-se cada vez mais claro que nenhuma organização, setor ou país detém todas as respostas. O poder de transformar as nossas sociedades reside na soma das nossas ações, na diversidade das nossas perspectivas e na nossa vontade de trabalhar juntos além das fronteiras. Ao abraçar a confiança, a parceria e a colaboração verdadeiras, a filantropia pode cumprir seu papel na construção de um presente e um futuro mais justos, inclusivos e sustentáveis para todos.
*Este texto faz parte da série Coragem e colaboração para construir o futuro.







