Filantropia e financiamento

Como financiadores podem apoiar comunidades transgênero

Os movimentos trans já estão construindo um futuro em que todas as pessoas possam prosperar, e podem ampliar exponencialmente seu impacto com o apoio de financiadores aliados

Por Aldita Gallardo

Foto de manifestação pública de movimentos trans
Foto cortesia de SisTers PGH

No meu trabalho no Fund for Trans Generations (FTG), colaboro com financiadores que estão comprometidos em apoiar organizações lideradas por pessoas trans na construção de um futuro onde pessoas transgênero, de gênero não conforme e não binárias possam viver com liberdade, segurança e autodeterminação. Entre sua criação, em 2016, e o começo de 2023, o FTG arrecadou e distribuiu mais de US$ 10 milhões [cerca de R$ 55,4 milhões] para apoiar diretamente organizações trans, e os doadores passaram a compreender profundamente e a se alinhar com os movimentos trans.

Ainda assim, financiadores que não atuam diretamente nesse campo frequentemente perguntam: por que fazer esse trabalho, com esse foco específico em apoiar organizações pequenas, emergentes e lideradas por pessoas trans não brancas? Para mim, a resposta é clara: porque liberdade e emancipação para todas as pessoas começam quando colocamos pessoas trans não brancas no centro.

Como gestora de programas, líder translatina na filantropia e ex-integrante de uma organização que dependia de doadores, eu entendo na pele o que está em jogo – desde conhecer, na prática, tanto a beleza quanto os desafios da minha comunidade, até as minhas experiências pessoais de navegar em um mundo construído sobre sistemas racistas, misóginos, transfóbicos e baseados em outras formas de opressão, além de tudo o que aprendi e realizei como profissional na gestão de fundos e como líder no setor social. Também pude ver de perto que a forma como financiadores entendem seu papel e como eles escolhem se posicionar e atuar têm um impacto crítico no sucesso dos movimentos que lutam por equidade.

A partir desse lugar e dessa perspectiva, quero oferecer algumas reflexões aos meus colegas na filantropia que estão genuinamente interessados em construir parcerias e apoiar transformações sociais lideradas por pessoas trans.

1 – Financiadores comprometidos com a equidade devem se solidarizar com ativistas e movimentos trans

Os direitos das pessoas trans, assim como suas vidas, não existem de forma isolada. As comunidades trans estão localizadas na interseção de múltiplas identidades, experiências e movimentos – desde a saúde reprodutiva até justiça racial, de gênero e econômica, passando pela luta contra o encarceramento em massa e pela promoção da segurança comunitária. Diante dessa realidade, quando financiadores escolhem investir em transformação social de maneiras que apagam pessoas trans não brancas, em vez de reconhecê-las e colocá-las no centro, estão perdendo a oportunidade de construir futuros verdadeiramente inclusivos.

Isso é especialmente verdadeiro para fundos voltados para populações LGBTQ+ e para os direitos das mulheres, muitos dos quais há muito tempo apoiam o fortalecimento desses movimentos, mas que não investiram explicitamente nas pessoas trans dentro de suas próprias comunidades. Nos últimos anos, alguns desses financiadores passaram a direcionar seu apoio para a justiça de gênero, bem como para os direitos e a organização política de pessoas trans. Como compartilhou Jennie Agmi, diretora sênior de Programas para Justiça de Gênero na Libra Foundation: “Quando a Libra alterou seu portfólio de Direitos Reprodutivos para Justiça de Gênero, em 2019, isso nos ofereceu uma oportunidade de investir em trabalhos liderados por pessoas trans, que frequentemente foram invisibilizados pela filantropia. Embora essa área de atuação fosse nova para nós, rapidamente percebemos que adotar uma análise inclusiva das questões trans enriquece e fortalece todo o nosso portfólio de justiça de gênero.”

No fim das contas, assim como nossa libertação é interdependente, também precisa ser a nossa luta por ela. “Organizar movimentos sociais a partir de uma perspectiva de solidariedade nos convida a enxergar e valorizar uns aos outros em toda a nossa complexidade e também a compreender como as opressões estão interligadas”, observa Amoretta Morris, presidente da Borealis Philanthropy. “Isso exige que sejamos capazes de conectar as raízes da supremacia branca com os ataques contínuos à soberania corporal e o aumento das ofensivas contra a própria existência das pessoas trans. E entender que, se queremos uma democracia segura, justa e multirracial, só venceremos como um ecossistema de movimentos forte, que enxerga o todo.”

2 – Invista nas lideranças trans, incluindo organizações emergentes e com ideias inovadoras

Ativistas trans já estão se organizando e se fortalecendo dentro e além de suas comunidades, e muitas vezes oferecem centros de apoio amplo às necessidades comunitárias. As organizações e coletivos financiados pelo FTG, especialmente os grupos locais situados nos estados do Sul dos Estados Unidos e em áreas rurais, criam espaços que promovem conexões entre pessoas trans, oferecem acesso a serviços diretos e necessidades básicas, desenvolvem oportunidades de liderança e muito mais. Por exemplo, a TAKE (Transgender Advocates Knowledgeable and Empowering), no Alabama, é um espaço onde mulheres trans negras podem obter orientação jurídica sobre mudança de nome e gênero em documentos, apoio para moradia e abrigo e acesso a serviços de saúde afirmativos para pessoas trans. Enquanto acessam esses recursos, também participam de campanhas de mobilização pelos direitos trans e aprendem a liderar ações de advocacy. Organizações emergentes lideradas por pessoas trans, como a TAKE, constroem poder comunitário e criam espaços de cura coletiva, ao mesmo tempo que ajudam seus membros a se conectar com uma comunidade mais ampla.

Pode ser tentador, para alguns financiadores, priorizar seus próprios programas, temas e estratégias ao considerar expandir seus portfólios para apoiar comunidades trans. No entanto, essa abordagem pode, na prática, frear ou até reverter avanços conquistados com muito esforço, baseados em anos de construção estratégica dos movimentos. Em vez disso, financiadores devem construir relações diretas com grupos e lideranças locais e financiar o trabalho e as estratégias que as próprias comunidades definiram como prioritárias para suas realidades.

“O FTG foi um dos nossos primeiros financiadores”, disse Emanuel H. Brown, diretor-executivo do Acorn Center for Restoration and Freedom, na Geórgia. “Ter autonomia para decidir como usar esses recursos significou que nossa pergunta central foi: o que é essencial para a saúde e a cura da nossa comunidade? Não perdemos tempo tentando atender a expectativas externas.”

No FTG, a maioria dos nossos parceiros financiados são grupos pequenos e emergentes, liderados por pessoas trans não brancas. (Mais de 80% das organizações têm orçamentos de US$ 300 mil [R$ 1,6 milhão] ou menos, e mais de 85% das organizações que recebem financiamento institucional são lideradas por pessoas negras, indígenas e não brancas). O FTG prioriza direcionar recursos para regiões historicamente subfinanciadas, incluindo o Sul dos EUA, onde estão localizados 40% dos nossos parceiros financiados. Grupos emergentes são, frequentemente, aqueles que estão realizando os trabalhos mais inovadores e de maior impacto, em estreita relação com as comunidades trans e não binárias. E, mesmo assim, são frequentemente negligenciados por financiadores maiores e mais consolidados. Os recursos que, eventualmente, entram na ampla categoria do “financiamento LGBTQ+” raramente chegam a essas organizações trans. O relatório Funders for LGBTQ Issues 2018 Tracking Report constatou que, “para cada US$ 100 [R$ 554] concedidos por fundações nos EUA, apenas US$ 0,04 [R$ 0,22] são destinados às comunidades transgênero”.

 

3 – O compromisso com os movimentos trans (ou a ausência dele) se reflete nos processos de financiamento

A maneira como financiadores fazem seu trabalho e como escolhem se apresentar para realizá-lo importa. Isso já foi dito de muitas formas e em muitos espaços, mas é especialmente crucial quando se trata de apoiar lideranças trans e não binárias não brancas. No fim das contas, isso se resume à responsabilidade que financiadores têm com as comunidades. Estamos apoiando nossos parceiros financiados de maneiras que reconhecem e valorizam sua sabedoria e criatividade? Nossos processos são acessíveis? Nossas palavras e práticas estão realmente alinhadas com os valores de equidade e justiça que declaramos?

O FTG adota uma abordagem de financiamento participativo, na qual membros da comunidade ocupam papéis estratégicos nas tomadas de decisão. Os financiamentos do FTG oferecem apoio institucional irrestrito, permitindo que os parceiros do movimento definam, com autonomia, onde precisam investir para avançar em suas lutas. Além disso, o desenvolvimento de capacidades faz parte de todos os financiamentos, de modo que as organizações possam fortalecer suas lideranças e acessar os apoios específicos de que precisam, desde mentorias até práticas de justiça restaurativa. A equipe do FTG, assim como a maioria dos seus parceiros financiados, é liderada por pessoas trans e não binárias não brancas. Nos últimos anos, o FTG também tem aprendido com o Disability Inclusion Fund, um fundo irmão dentro da Borealis Philanthropy, sobre o que significa, de fato, colocar a justiça para pessoas com deficiência no centro de seus programas e processos. Como uma pessoa gorda, com deficiência e ex-imigrante em situação irregular vinda do Peru, para mim, acessibilidade sempre incluiu práticas de justiça linguística, incluindo processos multilíngues, de consciência crítica sobre o jargão da filantropia (e o compromisso de priorizar a clareza), além de enfrentar normas tácitas e implícitas da cultura dominante.

Essas são algumas das medidas que adotamos para garantir que nossos processos de financiamento reflitam, de fato, nossos valores e compromissos e, ainda assim, sabemos que isso faz parte de um processo contínuo de aprendizado. Por exemplo, quando o FTG passou a trabalhar com uma organização parceira cuja liderança era composta por pessoas que falavam apenas espanhol e que também passaram a integrar nosso comitê consultivo, nosso compromisso com a justiça linguística exigiu a criação de um orçamento específico para tradução de todos os nossos formulários, a oferta de serviços de interpretação simultânea e a parceria com a equipe do Babilla Collective, especializada em justiça linguística. Esse processo também nos levou a reflexões mais profundas sobre como desafiar o binarismo de gênero linguístico no espanhol e em outros idiomas em alinhamento com os nossos valores.

 

4 – Financie de forma flexível com apoio plurianual, abrindo espaço para a alegria trans

Nosso objetivo final com este trabalho é que as comunidades prosperem, vivam com alegria e experimentem o amor em todas as suas formas. Mas, no dia a dia dessa luta, isso muitas vezes parece algo distante. Como escrevi anteriormente, a rápida escalada de discursos, políticas e violências estatais anti-trans ajudou a alimentar uma cultura que “normaliza a violência de gênero contra todas as pessoas trans e, em especial, coloca mulheres trans não brancas em alto risco, ao fomentar a transmisoginia nas relações interpessoais”.

Ao adotar uma abordagem inclusiva, financiadores podem, ao mesmo tempo, direcionar recursos para respostas emergenciais e aumentar seus aportes para curto, médio e longo prazos. No primeiro ano da pandemia, o FTG conseguiu mobilizar mais de US$ 1 milhão [R$ 5,5 milhões] em resposta à covid-19. Esses recursos foram, em sua maioria, redistribuídos às comunidades por meio de iniciativas de auxílio mútuo lideradas por pessoas trans, criando espaços de cura e organizando ações de justiça social. Embora as comunidades trans precisem urgentemente de recursos agora, sabemos que, para que haja uma construção sólida e sustentável dos movimentos trans, será necessário que a filantropia realize investimentos maiores e de longo prazo, fortalecendo a infraestrutura e a capacidade organizativa desses movimentos. É animador ver que financiadores e indivíduos estão doando mais para apoiar as comunidades trans, mas será que conseguiremos chegar a um ponto em que esse apoio exista não apenas quando os ataques físicos e legislativos contra nossas comunidades estão nas manchetes?

Como fundo, um dos nossos valores centrais é “confiar na liderança trans.” Na prática, isso significa atuar com flexibilidade e não esperar que os financiamentos gerem retornos imediatos e quantificáveis, mas sim confiar que as lideranças trans estão, simultaneamente, atendendo às necessidades urgentes de suas comunidades e fortalecendo suas organizações. Por exemplo, no início da pandemia, vários dos nossos parceiros financiados organizaram, de forma independente, fundos de auxílio mútuo, redistribuindo recursos para comunidades que já enfrentavam situações de falta de moradia, insegurança alimentar e ausência de redes de cuidado. Coletivos de arte e cultura também têm se mostrado espaços essenciais para a sobrevivência e a vitalidade das comunidades trans. O Comfrey Films, sediado na Carolina do Norte, produz filmes feitos por e para comunidades trans negras, como uma forma de organização cultural e de transformação narrativa, abordando temas como a euforia de gênero, a vivência plena dos corpos e a construção de mundos livres de violência e de controle policial. Financiar os futuros trans exige, além de maiores investimentos financeiros, uma mudança de paradigma que coloque no centro as necessidades, os sonhos, a alegria e os desejos das comunidades trans não brancas como parte essencial da nossa libertação coletiva.

Um convite

Existem muitos motivos pelos quais financiadores interessados em apoiar o ativismo trans podem sentir que não estão prontos para começar imediatamente ou que não têm condições de financiar esse trabalho de forma direta, incluindo a falta de relações com grupos de base, a falta de familiaridade com o tema ou a falta de capacidade para administrar pequenos financiamentos. Para financiadores que estão começando a apoiar comunidades transgênero, uma possibilidade é se juntar a coletivos de financiamento que já possuem relações profundas com os movimentos trans, incluindo muitos grupos menores e emergentes. Pesquisas já comprovaram aquilo que sabemos na prática: uma abordagem colaborativa é mais eficaz, mais eficiente e mais justa. Quando financiadores trabalham juntos em torno de objetivos compartilhados; quando esse trabalho é conduzido por equipes que entendem e vivenciam as experiências das comunidades que atendem; quando olhamos não apenas para o potencial de cada financiamento isolado, mas para o que um ecossistema de movimentos mais forte, mais conectado e melhor apoiado pode alcançar; é aí que avançamos de verdade pelas nossas comunidades. À medida que colocamos nossos recursos a serviço da transformação das comunidades trans, também precisamos estar abertos a sermos transformados pelos modelos baseados na partilha de poder, na criação de espaços inclusivos e acessíveis, e em uma atuação guiada pela consciência e pela convicção.

O trabalho de defender, afirmar e financiar de forma consistente e significativa as comunidades trans nunca foi tão urgente. Como financiadores, temos uma oportunidade única de contribuir para uma mudança verdadeiramente transformadora, começando por investir em organizações lideradas por pessoas trans não brancas.

Sobre a autora

Aldita Gallardo (ela/elu/ella) atuou como organizadora, facilitadora, mobilizadora de recursos e gerente de programas no Fund for Trans Generations (FTG), da Borealis Philanthropy, além de participar no conselho diretor da Funders for LGBTQ Issues.

*Artigo publicado originalmente no site da Stanford Social Innovation Review com o título 4 Ways Funders Can Build Authentic Partnerships With Trans and Nonbinary Communities

Leia também: Mobilizar recursos para imigrantes negros e LGBTQ+

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