Filantropia e financiamento

A força das estratégias coletivas

Estratégias controladas por financiadores costumam acentuar o desequilíbrio de poder entre doadores e beneficiários e privilegiar resultados mensuráveis e de curto prazo, limitando o impacto da filantropia; estratégias coletivas são mais eficazes para enfrentar desafios globais e sistêmicos

Por Jordan Fabyanske, Sonila Cook e Mariah Levin

Ilustrações de Juan Bernabeu

estratégias coletivas

É prática comum que financiadores definam pautas, ditem prioridades e decidam como alocar recursos – em suma, que “controlem” estratégias de impacto social. Na disputa por fundos, potenciais parceiros desenham propostas que buscam refletir a estratégia de possíveis doadores, não raro adaptando-se às expectativas e exigências deles, em vez de partir de sua própria expertise. Nosso trabalho de cocriação e gestão de iniciativas de mudanças sistêmicas na Dalberg Catalyst, entidade sem fins lucrativos, leva-nos a crer que o controle de estratégias por financiadores pode estar limitando a capacidade do setor para enfrentar os desafios mais importantes do mundo. 

Para que uma estratégia seja transformadora – ou seja, para que mude a maneira como partes de um sistema operam e interagem entre si –, é preciso que ela seja coletiva. Portanto, doadores e parceiros devem ter uma intenção partilhada de reequilibrar dinâmicas de poder e aceitar a incerteza e a experimentação. O controle coletivo começa como um compromisso compartilhado, fundado em uma compreensão comum da situação. E produz uma ação colaborativa que impulsiona a transformação, já que os parceiros têm maior agência e dividem responsabilidades, os pontos fortes de cada um concorrem para diversos objetivos simultaneamente e suas ações ganham mais agilidade.

Traçar e executar estratégias de controle coletivo não é um processo simples. Exige abertura para questionar o status quo, discutir valores e comprometer-se com a colaboração. É verdade que o envolvimento de todo um universo de atores pode gerar impasses e produzir soluções de difícil redimensionamento e replicação em outros contextos. Mas, sem esse controle coletivo, doadores e parceiros tendem a adotar estratégias voltadas à solução de problemas definidos de forma muito restrita e à produção de resultados quantificáveis, trocando a transformação sistêmica por ganhos de curto prazo e negligenciando os desafios mais complexos e urgentes da atualidade.

Com base em nossa experimentação, pesquisa e aprendizado, queremos trazer uma perspectiva mais matizada a apelos recentes por uma filantropia baseada na confiança e por mudanças sistêmicas colaborativas. Doadores devem compartilhar com seus parceiros a responsabilidade e o controle de estratégias para a promoção de agendas de transformação. Mostramos como parceiros e financiadores podem ampliar seu impacto com estratégias de controle coletivo apoiadas por facilitadores (mais precisamente, orquestradores de sistemas). Estratégias de controle coletivo podem gerar aprendizado, inovação colaborativa e mudanças profundas de mentalidade, na dinâmica de poder, nas normas, políticas e estruturas de sistemas financeiros e econômicos. Estamos empolgados com seu potencial para ajudar a conceber e concretizar uma sociedade mais justa, inclusiva e regenerativa para todos. 

 

Limitações das estratégias controladas por financiadores

Doadores vêm testando maneiras distintas de enfrentar problemas globais. No meio filantrópico e no da inovação social, certos líderes acreditam que a filantropia estratégica fracassou e propõem modelos com maior participação da sociedade. Outros acreditam que a filantropia estratégica está viva e segue em constante adaptação e aprimoramento. Muito já se falou sobre o ritmo notável e a flexibilidade da filantropia praticada por MacKenzie Scott, que questiona velhas normas sobre como e quanto doar. A Philanthropy Together, iniciativa global para democratizar e diversificar as doações de caridade, tem destacado a importância das colaborações filantrópicas em geral e, em especial, daquelas focadas em equidade e prestação de contas. Essas colaborações apresentam um potencial único para superar barreiras tradicionais de financiamento, apoiar movimentos inteiros de forma estratégica e dividir custos e riscos entre financiadores. Exemplos recentes de organizações dedicadas a promover mudanças transformadoras reforçam a importância de recursos não monetários – incluindo inteligência contextual, capacitação técnica, redes de relacionamentos, advocacy e influência – aportados por outros atores, não só os próprios filantropos.

Isso posto, estudos realizados nos últimos anos demonstram que ainda é difícil arrecadar fundos para projetos de longo prazo voltados à promoção de mudanças sistêmicas, como advocacy e mobilização comunitária.¹ Iniciativas com potencial transformador não recebem recursos suficientes para concretizá-lo. Ou, nos raros casos em que recebem, doadores tendem a limitar a agilidade, a criatividade, o empreendedorismo e a colaboração de parceiros com incentivos distorcidos, prazos limitados e outros entraves. O fato de os sistemas financeiros não estarem abordando as crises globais (e de por vezes até agravá-las) tem despertado em toda sorte de doadores o desejo de alocar capital de forma mais sistêmica. Em janeiro passado, pioneiros do investimento de impacto, filantropos, instituições financeiras, especialistas em finanças, acadêmicos e agentes de mudança social se reuniram no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) para explorar o potencial do investimento sistêmico, metodologia que incorpora o raciocínio sistêmico à lógica de investimentos e reimagina sistemas financeiros. Eles reconheceram que, na maioria dos casos, fluxos de capital financeiro, mesmo aqueles voltados à promoção de resultados sociais, perpetuam mentalidades e dinâmicas de poder predominantes, em vez de viabilizarem transformações em sistemas como energia, uso da terra, infraestrutura, indústria, transporte e cidades.

Em 2023, fomos facilitadores em um experimento que buscava entender o que impede doadores de apoiar iniciativas de mudanças sistêmicas. Com parceiros como Fundação Bill & Melinda Gates e Catalyst 2030, além de representantes de Ashoka, Echoing Green, Fundação Skoll e Fundação Schwab pelo Empreendedorismo Social, ajudamos a criar um programa-piloto, o Catalyst Hub. O objetivo era apresentar a mais de 30 doadores dez iniciativas lideradas por especialistas em mudança de sistemas em busca de investimento. Depois de entrevistas em profundidade com os líderes, apresentamos argumentos para o investimento na aceleração dos projetos, incluindo evidências de seu histórico de realizações e do financiamento necessário para ampliar seu impacto. Também investimos em uma agenda de aprendizado para verificar como se dava o encontro entre doadores e parceiros, contando com o feedback de mais de cem pessoas de diferentes organizações – das quais cerca da metade eram doadores e metade consultores de doadores ou agentes de mudança – para entender melhor as parcerias de financiamento.

Apesar da robustez das evidências a favor das dez iniciativas, somente uma atraiu interesse e promessas de financiamento. A fim de compreender esse resultado decepcionante, decidimos tornar a agenda de aprendizado o foco principal do Catalyst Hub. Em meio ao crescente desejo de financiamento para mudanças sistêmicas e críticas à qualidade e à quantidade dos recursos disponíveis, por que ainda há relutância em bancar atores engajados em projetos transformadores? 

Parte dos financiadores expressou frustração com a mudança sistêmica propriamente dita. Muitos se queixaram da natureza confusa e não linear do processo, no qual inúmeros fatores – muitos fora do controle de beneficiários – contribuem para o sucesso ou o fracasso. Muitos preferiam investir em algo que trouxesse resultados concretos e diretamente vinculados ao seu financiamento, ainda que o potencial de transformações em larga escala fosse reduzido. Outros se incomodavam com o vocabulário da mudança sistêmica. Havia preocupação com o que um entrevistado chamou de “system washing”: usar um discurso pomposo para falar de iniciativas de mudança social modestas, de escopo reduzido. Essas reflexões sugerem que a expressão “mudança sistêmica” virou um modismo, sem ligação com o sentido original de transformação expressiva. A tendência é agravada quando potenciais beneficiários de recursos incorporam essa linguagem a suas propostas para atender às prioridades de doadores, sem de fato entender ou abordar um sistema. Isso mina a credibilidade e o valor de iniciativas legítimas de mudança sistêmica.

A relutância de financiadores partia, sobretudo, da convicção de que iniciativas do gênero estavam, no momento, “descasadas da estratégia”. Ou seja, eles já tinham traçado estratégias com áreas prioritárias ou abordagens específicas e queriam destinar seus recursos a quem se adequasse a elas. Iniciativas e líderes que tínhamos reunido não casavam com as prioridades estratégicas desses financiadores. Como sua estratégia já estava definida, pareciam achar que cabia a eles decidir que trabalho deveria ou não ser feito em áreas de seu interesse – e não aceitavam incorporar outras opiniões ou apoiar parceiros que divergiam de suas prioridades.

Essas entrevistas nos fizeram perceber que quando financiadores controlam a estratégia da concepção à execução, a descoberta de soluções eficazes e de longo prazo para desafios complexos sai prejudicada. Muitos financiadores consultam as partes interessadas ao atualizar suas estratégias, mas o engajamento dessas partes durante um momento específico de um processo que termina a portas fechadas tende a priorizar as perspectivas, as crenças e os preconceitos daqueles que estão na sala. Uma estratégia que pretenda abordar causas profundas de problemas complexos, da sociedade e do planeta, não pode ser traçada e conduzida por um único financiador – menos ainda por um indivíduo ou grupo de organizações com uma visão uniforme. Da mesma forma, várias estratégias de financiamento díspares e postas em prática por financiadores isolados não vão garantir a coordenação necessária para promover mudanças transformadoras.

A consequência de estratégias controladas por quem financia é tornar doadores e parceiros:

 

  • Desconectados | Quando cada financiador tem um entendimento próprio da situação e do que considera importante, a conversa não avança. A tendência é focar em objetivos isolados em áreas específicas, promovendo intervenções pontuais que não culminam em uma agenda integrada, e negligenciar oportunidades de apoiar metas ou setores adjacentes, mesmo quando as vantagens disso são evidentes.

  • Superficiais | Financiadores priorizam resultados a curto prazo, mensuráveis e diretamente atribuíveis a seu investimento, em geral na suposição de que tais resultados podem contribuir para algo maior. Financiadores e parceiros subutilizam ativos e capacidades uns dos outros, incluindo conhecimento e capital social.

  • Rígidos | Financiadores não adaptam objetivos e abordagens à medida que as circunstâncias mudam, focando em soluções que possam ser definidas de antemão e implementadas de forma estrita, conforme sua estratégia ou perspectiva. Não há espaço para conquistar confiança mútua e trabalhar em conjunto para lidar com desafios ou oportunidades inesperadas. 

 

A maioria dos financiadores entrevistados reconheceu que a mudança sistêmica exige um financiamento maior e melhor de modo geral. E admitiu que um volume excessivo de doações foca em resultados de curto prazo. A maioria entende que a transformação sistêmica requer múltiplas fontes de financiamento para criar condições que viabilizem a mudança. Concluímos que, apesar do interesse em mudar sistemas, muitos financiadores acabam traçando estratégias de modo convencional por não enxergarem uma via alternativa clara ou por não terem apoio para segui-la. 

 

Características das estratégias controladas coletivamente 

Estratégias convencionais, controladas por financiadores, podem ser adequadas para enfrentar problemas que demandam soluções técnicas e se prestam a convocatórias sob medida. No entanto, são estratégias que tendem a reforçar desequilíbrios de poder, pois deixam ao financiador ou grupo de financiadores – e não à comunidade e seus parceiros – a palavra final sobre qual trabalho terá suporte financeiro. Estratégias ditadas pela visão de uma organização isolada não sustentam a transformação sistêmica, que só se tornará realidade quando cada estratégia for embasada, desenvolvida e implementada por um conjunto de parceiros. 

Facilitar o diálogo entre atores do campo exige tempo e esforço. Há quem sinta dificuldade em compreender o propósito de investir tempo e energia para chegar a um entendimento comum. Mas esse processo constrói uma base de confiança entre parceiros

Financiadores e parceiros unidos em uma estratégia de controle coletivo são mais eficazes porque há um espírito compartilhado de agência e responsabilidade: a estratégia é de todos, cabe a todos melhorá-la ou mudá-la, e é responsabilidade de todos levá-la adiante. Esse controle coletivo envolve um reequilíbrio de poder entre quem desembolsa e quem recebe os recursos. Mas não estamos sugerindo que financiadores sejam meros espectadores. Controle coletivo significa que anseios e prioridades de todo um grupo são definidos em conjunto – inclusive por financiadores – e todo o grupo contribui para abordar e continuamente transformar essas prioridades.

Uma estratégia controlada coletivamente ajuda a manter inovadores sociais e seus financiadores alinhados, coesos e ágeis por comportar três características: 

Reunir representantes de todo o campo e cocriar uma narrativa holística. | Criar uma estratégia cujo controle é coletivo significa reunir atores que compartilhem o mesmo espírito de urgência e responsabilidade e que tenham experiência relevante, conhecimento do contexto e um interesse direto nas consequências, além de autoridade e recursos para agir. Essa reunião pede um catalisador visionário que congregue os demais. Em geral, é uma voz respeitada no campo, um financiador ou um facilitador neutro. Esse catalisador é especialmente importante para unir parceiros que normalmente não somariam esforços, por competir por recursos ou outras razões. Facilitar o diálogo entre atores do campo exige tempo e esforço. A princípio, há quem sinta dificuldade em compreender o propósito de investir tempo e energia para chegar a um entendimento comum. Mas esse processo constrói uma base de confiança entre parceiros, permitindo que elaborem conjuntamente uma narrativa sobre sua realidade – individual e coletiva –, desafios interligados e suas causas, além de possíveis futuros. A narrativa comum que emana disso é a base para o campo se aglutinar. Em geral, é preciso muita conversa e a inclusão de outros atores para garantir que todo o campo seja representado. 

A coalizão multissetorial Preventing Pandemics at the Source (PPATS) é um exemplo de colaboração entre atores de um setor para criar, juntos, uma estratégia de controle coletivo. A PPATS começou a tomar forma em meados de 2020, quando a pandemia de covid-19 fechava fronteiras mundo afora. Cientes de um desafio sistêmico crítico, mas comumente negligenciado – a transmissão de doenças de animais para humanos, origem de quase todas as pandemias virais dos séculos 20 e 212 –, Sonila Cook, CEO da Dalberg Catalyst (e coautora deste artigo), e Nigel Sizer, ex-presidente da Rainforest Alliance, reuniram 40 líderes mundiais das áreas da saúde e da conservação ambiental. Esse grupo somava uma mescla de conhecimento técnico e de experiência em distintos contextos. Guiado por cientistas e ativistas comunitários das áreas da saúde e da conservação, o grupo compreendeu o amplo, concreto e multiplicador impacto dos benefícios da prevenção de zoonoses. Ao mesmo tempo, sabia que líderes da saúde no mundo todo seguiam indiferentes ou céticos em relação a essas iniciativas, pois julgavam que o problema era inevitável e que melhor seria monitorar e conter novas doenças nos países onde surtos geralmente ocorrem.

O grupo concluiu que era preciso uma nova narrativa, que mostrasse como a prevenção na origem era essencial. Prevenir a transmissão interespécies é uma medida equitativa e abrangente, já que ajuda todo mundo em todo lugar (diferentemente de medidas de contenção como medicamentos e vacinas, aplicadas de forma desigual).3 Além disso, ações como a redução do desmatamento ajudam a mitigar mudanças climáticas e a perda de biodiversidade, e a um custo bem menor do que enfrentar pandemias.4 Logo, iniciativas de enfrentamento de pandemias deviam incluir prevenção (em particular na transmissão interespécies), não só preparação e resposta. Ancorada no conhecimento científico sobre a origem de pandemias, a narrativa sobre a transmissão viral entre espécies norteou o trabalho da PPATS, deixando claros princípios, valores e lógica da coalizão na busca por uma mudança transformadora. Construir essa narrativa conjuntamente foi um processo. A prevenção de zoonoses não era comumente discutida entre esferas distintas como a da conservação ou a da saúde global e foi preciso a contribuição de diversos atores, incluindo aqueles que trabalham com surtos de novas doenças infecciosas, para contextualizar evidências e trazer para o primeiro plano a perspectiva de comunidades.

O passo seguinte foi difundir amplamente a narrativa da prevenção, envolvendo ativistas e canais diversos para comunicar a mensagem como um marco crucial dentro e fora do grupo, o que incluiu o Congresso dos Estados Unidos, G20, Organização Mundial da Saúde e Banco Mundial. Em julho de 2023, Neil Vora, conselheiro da Conservação Internacional para a iniciativa One Health, fez uma TED Talk sobre prevenção de pandemias na origem, transbordando o tema para além da área da saúde. Uma análise feita por um financiador da PPATS revelou que em 2023 houve um aumento de menções na mídia sobre transmissão viral interespécies em relação a pandemias; quase todas as menções estavam vinculadas a membros da coalizão.

Congregar um setor inteiro para desenvolver em conjunto uma narrativa e controlar coletivamente a estratégia diminui o risco de vieses e pontos cegos. O processo incorpora uma diversidade de perspectivas, ajudando a produzir uma visão holística

Além de mudar a narrativa, a PPATS produziu avanços em políticas públicas nos últimos três anos, com o vocabulário da prevenção sendo incorporado a leis nos EUA e a diversos instrumentos globais de enfrentamento de pandemias. Atualmente, a coalizão copatrocina a Comissão para a Prevenção de Transmissão Viral Interespécies com a revista The Lancet, um dos principais periódicos médicos do mundo, para promover o conhecimento científico sobre o tema.

Congregar um setor inteiro para desenvolver em conjunto uma narrativa e controlar coletivamente a estratégia diminui o risco de vieses e pontos cegos, pois desde o início o processo incorpora uma diversidade de perspectivas, ajudando a produzir uma visão holística. Se a estratégia da PPATS não tivesse tido a participação de atores de todo o setor e não tivesse envolvido todos em um discurso coletivo sobre sua visão e o que seria necessário para materializá-la, é possível que não tivessem chegado a uma narrativa comum e confiável sobre a transmissão interespécies como a causa maior de pandemias. E iniciativas subsequentes de planejamento da coalizão, tomada de decisão, conscientização e defesa de políticas públicas teriam sido prejudicadas sem uma visão clara e comum do mundo que estavam construindo. A estratégia controlada coletivamente – e o tempo e o esforço dedicados a sua criação e fortalecimento – fez a diferença, garantindo o alinhamento de parceiros em torno de um objetivo comum, com agência e responsabilidades compartilhadas para alcançá-lo.

A atuação de Sizer como orquestrador do sistema da coalizão, juntamente com o apoio estratégico e a condução de Cook, reforçaram o foco do grupo em uma narrativa comum. Parceiros tiveram de transcender objetivos isolados e deixar de lado o próprio ego para aproveitar uma oportunidade sem precedentes de promover transformações radicais em diversas áreas importantes simultaneamente. O sucesso da PPATS se deu, em parte, porque os parceiros sabiam que o esforço de todos estava sendo facilitado por uma entidade neutra, que não competia por recursos nem buscava crédito pelo sucesso. Sizer e Cook pretenderam dar o exemplo de humildade e generosidade para toda a coalizão, e de um senso de responsabilidade comum pelo sucesso da estratégia. Membros da PPATS classificam a iniciativa como uma das coalizões mais colaborativas e de melhor desempenho de que já participaram.

Para ser completo, um universo de controladores parceiros também precisa contar com pessoas com autoridade e recursos para agir. No caso da PPATS, embora convidados, financiadores da área optaram por não se envolver logo no começo. Membros da coalizão compartilharam ativos de outra natureza (o próprio tempo) e avançaram por quase um ano antes que o primeiro apoio financeiro se materializasse. Porém, sem fundos suficientes para sustentar a campanha, a coalizão perdeu um tempo precioso levantando recursos, teve de alterar a sequência planejada de prioridades e não pôde aproveitar algumas oportunidades na hora certa. O exemplo da PPATS demonstra o poder desproporcional detido por financiadores. Quando filantropos decidem não investir – apesar de todo um setor se unindo para pedir seu apoio –, uma coalizão é quase obrigada a encerrar suas atividades conjuntas. A PPATS teve a sorte de atrair sete financiadores para a iniciativa. Mas, se tivesse contado com ao menos um doador âncora desde o início, teria sido possível agir de forma mais eficiente e decisiva.

estratégias coletivas

Definir metas com base na visão coletiva e na capacidade combinada de atingi-las. | Assim como a PPATS, a GroundBreak Coalition foi outra iniciativa surgida de um longo período de envolvimento e construção de confiança entre distintos parceiros, que trabalharam para criar uma narrativa comum sobre sua realidade, desafios e visão para o futuro. Mas, ao contrário da PPATS, a GroundBreak contou desde cedo com o apoio financeiro e o espírito de corresponsabilidade de uma fundação filantrópica. E, em contraste com estratégias ditadas por financiadores, a GroundBreak adotou uma visão ampla dos pontos fortes de membros da coalizão, incluindo parceiros financeiros, reconhecendo seu potencial e responsabilidade para apoiar uma série de metas interligadas.

Em 2022, a diretora da Fundação McKnight, Tonya Allen, resolveu abordar a questão do racismo sistêmico e da equidade racial na região de Minneapolis-St. Paul, envolvendo mais de 170 indivíduos e 120 organizações em grupos de trabalho. A ideia era discutir as barreiras que impediam a criação de comunidades ambientalmente resilientes, como a dificuldade de acesso de pessoas negras a casa própria, imóveis para locação, empreendimentos comerciais, empreendedorismo e preparo climático. O grupo buscou saber quais ferramentas financeiras, se ampliadas, poderiam beneficiar a população negra em cada uma dessas esferas.

Desde o início, a Fundação McKnight procurou remanejar o poder por meio de uma liderança inclusiva e facilitadora. Por ser uma instituição local respeitada e comprometida com aquela região metropolitana, a fundação conseguiu promover um processo de cocriação com várias instituições, mobilizando uma equipe de três orquestradores encarregados de alinhar interesses e contribuições dos participantes com debates dirigidos e colaborativos. Cientes de que a transformação não poderia ser efetivada por uma entidade isolada, a fundação ajudou a criar uma estrutura de governança interina com 40 representantes do empresariado, da sociedade civil e da filantropia. Esses líderes seguem trabalhando para a missão da GroundBreak como membros do conselho de liderança da coalizão.

A razão de ser da GroundBreak vinha do contexto local. Durante o processo de concepção, os envolvidos chegaram a um consenso: as crises de injustiça racial, econômica e climática que afligiam o país vinham de muito antes da pandemia de covid-19 e do assassinato de George Floyd em 2020 por um policial de Minneapolis. Seria preciso mudanças muito profundas para produzir um futuro de equidade racial em um clima político cada vez mais adverso. O grupo se comprometeu a remover obstáculos sistêmicos que impediam o acesso de pessoas negras ao capital necessário para comprar uma casa, criar ou expandir um negócio e investir em empreendimentos comerciais. A visão era a de um sistema financeiro renovado, capaz de canalizar altos volumes de capital para comunidades negras.

Os membros da coalizão GroundBreak converteram essa visão em metas que eram não só específicas, mensuráveis, realistas e com prazos definidos, mas interligadas e interdependentes. Entre essas metas estava garantir que 45 mil indivíduos de comunidades não brancas tivessem sua casa própria (11 mil delas especificamente para pessoas negras); que 23,5 mil famílias se instalassem de forma estável em imóveis com aluguel acessível; e concluir 60 empreendimentos comerciais liderados por pessoas negras e já adaptados a novas condições climáticas. Para atingir tais objetivos, seria preciso conseguir promessas de capital de US$ 5,3 bilhões para os próximos anos, e o grupo identificou instrumentos e produtos financeiros para isso. Com o apoio da equipe de coordenação, ajustaram os objetivos tendo em vista que o sistema financeiro seria integrado, e não um conjunto desconexo de metas pouco viáveis. Ao considerar de forma conjunta subsídios, garantias, capital de baixo custo e programas de crédito especiais em um novo sistema regional de instrumentos financeiros, a GroundBreak calculou que, ao longo de uma década, US$ 1,2 bilhão em capital flexível teria o poder de liberar US$ 4,1 bilhões em capital no mercado privado.

estratégias coletivas

As metas deram aos membros da GroundBreak uma visão privilegiada de suas vantagens e necessidades. Foi possível ver que, trabalhando juntos, eram mais fortes do que a soma de suas partes. Parceiros financeiros, por exemplo, perceberam que o diferencial de cada um – sua expertise, seus relacionamentos ou sua capacidade de articulação – podia servir a várias metas simultaneamente se agissem como um coletivo. Guiados por necessidades e ideias da comunidade, e com um forte senso de responsabilidade para com o grupo, a Fundação McKnight e outros parceiros financeiros de primeira hora buscaram mais doadores. Em nome da coalizão, foram atrás de filantropos, bancos, governos, empresas e investidores para conseguir doações, garantias e capital de baixo custo, na crença de que instituições que controlam mercados financeiros têm um papel crucial na transformação desses mercados. Em outubro de 2023, parceiros financeiros da coalizão anunciaram compromissos de capital no total de US$ 926 milhões – um marco inicial significativo na realização da visão da GroundBreak.

Coalizões efetivas como a GroundBreak têm metas coesas e, com a ajuda de orquestradores de confiança e credibilidade, seus membros são incentivados a reconhecer e aproveitar a contribuição que cada um pode dar. Essa consciência mais ampla dos pontos fortes de cada um é similar àquilo que o pesquisador do MIT Otto Scharmer e a inovadora social Eva Pomeroy descrevem como uma percepção maior tanto do “todo como do individual, possibilitando a liberdade de alinhar a atenção, a intenção e a agência individuais e coletivas”. Isso traz “um senso maior de possibilidades, no qual um futuro que parecia fora do alcance passa a estar dentro do horizonte viável e possível”.

Em contraste com estratégias ditadas por financiadores, a GroundBreak adotou uma visão ampla dos pontos fortes dos membros da coalizão, incluindo parceiros financeiros, reconhecendo seu potencial e responsabilidade para apoiar uma série de metas interligadas

Manter a agilidade para garantir o dinamismo coletivo. | Estratégias de transformação são necessariamente adaptativas, pois precisam se ajustar a sistemas complexos e dinâmicos. Estratégias coletivamente controladas são especialmente adaptativas, pois os envolvidos estão sempre aprendendo e trocando informações. Quando o senso de controle coletivo é forte, parceiros são proativos: dividem dados sobre oportunidades e riscos, trocam conhecimentos e lições, envolvem parceiros de áreas adjacentes e agem de modo coordenado. 

Durante a pandemia de covid-19, membros da PPATS se reuniam regularmente para trocar e analisar informações e ajustar a estratégia em resposta às circunstâncias. Grupos de trabalho ágeis, com foco na ação, faziam videoconferências semanais para avaliar seu conhecimento coletivo, ativos e capacidades relevantes, recursos necessários e a eficácia das intervenções. E tinham poder para tomar decisões, coordenando e alocando recursos para defender mudanças em leis e normas e influenciar o discurso público sobre a prevenção de pandemias.

A comunicação regular dentro da PPATS reforçou não só a agilidade dos membros, mas o senso de controle coletivo e de responsabilidade mútua pela ação. Sempre a par do que acontecia, em reuniões mensais do grupo ou boletins informativos, todo membro tinha autonomia para ajustar seu trabalho, fazer questionamentos e, de modo geral, ser proativo na interação e na colaboração com os demais. Em comunicações regulares com todo o grupo, Sizer e Cook reforçavam a narrativa comum da coalizão, garantindo que todos estivessem cientes de vitórias recentes do coletivo e dando destaque a iniciativas isoladas de algum membro que contribuíam para os objetivos do grupo. Essa comunicação contínua também dava uma visão das contribuições individuais, reforçando a responsabilidade mútua e inspirando todos a agir.

A GroundBreak também garantiu que sua estratégia evoluísse e que seus membros seguissem informados e engajados. Quando passou da fase de concepção para a de formação de equipes para a implementação, o projeto priorizou a agilidade e a continuidade do controle coletivo. Os times incluíam especialistas técnicos e organizações comunitárias, todos com experiência nas áreas focadas pela coalizão e autonomia para tomar decisões – na seleção de organizações sem fins lucrativos e instituições financeiras de desenvolvimento comunitário e do setor privado que teriam acesso a bilhões em capital a ser canalizado para a geração de riqueza local. Desde o início, a equipe de projeto da GroundBreak produziu continuamente um conteúdo voltado a diferentes públicos e pediu subsídios e feedback de membros da coalizão. “Praticamente não havia limite de quanto podíamos investir em comunicação”, lembra um dos diretores. Assim como na PPATS, a comunicação regular dessa equipe também promoveu transparência e um senso mútuo de responsabilidade entre os membros do grupo.

A habilidade da orquestração foi essencial para garantir o dinamismo tanto da PPATS como da GroundBreak. Na PPATS, a facilitação de Sizer e Cook impulsionou o movimento rumo às metas acordadas e ajudou a cultivar um espírito contínuo de controle coletivo. Os dois administraram relacionamentos do grupo nos bastidores, ajudaram a resolver conflitos e se envolveram ativamente na construção de confiança. Também deram o exemplo de humildade, deixando de lado o ego, dividindo poder e praticando uma gestão cuidadosa. Sizer, ao deixar o cargo de diretor executivo em meados de 2024, escolheu a dedo o sucessor, Neil Vora, para assegurar a continuidade da iniciativa.

Na PPATS e na GroundBreak, a agilidade e o ímpeto coletivo foram facilitados por um indivíduo ou uma equipe responsável pela orquestração do sistema. Estes criaram espaços de diálogo contínuo, online ou presencial, para que os parceiros pudessem identificar e avaliar opções estratégicas, bem como coordenar ações e aprender juntos. Membros da coalizão tinham a opção e o incentivo – mas não a obrigação – de usar seus diferenciais para atender às prioridades comuns. 

 

Catalisando a filantropia transformadora

A principal recomendação feita por agentes de mudança e financiadores do Catalyst Hub foi a criação de mais espaços nos quais diversas áreas pudessem se reunir para definir coletivamente suas respectivas estratégias. Esses fóruns foram descritos como espaços seguros capazes de neutralizar desequilíbrios de poder, encorajando participantes a se comunicar, enfrentar duras verdades, construir confiança e desenvolver um entendimento comum. Na descrição dos participantes, eram “laboratórios de ação” em que potenciais parceiros convertiam possibilidades em esforços coordenados para tirá-las do papel. Esses espaços incutiam um senso de agência e de responsabilidade compartilhada, levando parceiros a seguir agindo juntos – em vez de retornar cada um a seu respectivo quadrado e modo de agir.

Para controlar coletivamente uma estratégia, nós, no papel de inovadores sociais e financiadores, devemos abrir mão de certos aspectos de estratégias convencionais: planos superficiais, reducionistas, voltados a uma meta específica, que tratam desafios globais como se fossem menos complexos ou mais fáceis de resolver do que realmente são. Precisamos, coletivamente, analisar nossas metas e prioridades com periodicidade menor do que a cada três ou cinco anos. Por mais difícil que seja para alguns, também é preciso abandonar o foco estrito em soluções fáceis de reproduzir, inclusive em grande escala. Uma estratégia de controle coletivo envolve um setor inteiro de parceiros que dedicam um tempo inicial para entender, juntos, o contexto que compartilham e alinhar objetivos (para a GroundBreak e a PPATS, isso levou um ano ou mais). Parcerias e soluções que surgem de uma estratégia coletivamente controlada são feitas para entregar resultados equitativos e sustentáveis.

Para controlar coletivamente uma estratégia, devemos abrir mão de certos aspectos de estratégias convencionais: planos superficiais, reducionistas e voltados a uma meta específica, que tratam desafios globais como se fossem fáceis de resolver

Para concretizar estratégias de controle coletivo, é preciso facilitadores, ou orquestradores de sistemas, com credibilidade e capacidade para tocar esse tipo de colaboração. O papel dessa liderança ainda não é bem entendido. Tampouco damos o devido valor a indivíduos capazes de conduzir esse diálogo, ajudar outros a chegar a um entendimento comum sobre sistemas e cultivar relações de confiança e produtividade. Nossa experiência mostra que, em geral, os melhores candidatos aparecem depois que inovadores sociais e seus financiadores já se reuniram para avaliar a situação que enfrentam. Somente quando essa coletividade começa a considerar cenários futuros é que fica clara a necessidade de um orquestrador e a relevância de uma qualificação específica (conhecimento técnico e relacionamentos relevantes, além de qualidades cruciais como boa capacidade de comunicação e integridade). Parceiros envolvidos na iniciativa precisam incentivar potenciais orquestradores a se apresentarem para a missão, pois os melhores talvez não respondam a um chamado aberto para a função ou nem estejam buscando ativamente esse posto.

Inovadores sociais também necessitam uma base de apoio financeiro flexível de todo o setor, que se estenda por anos e inclua apoio aos orquestradores do sistema. Devido à natureza de sua atividade, muitos orquestradores operam na interseção de setores tradicionais, sem uma “sede” institucional. Poucos têm os meios ou a capacidade de assumir riscos para aglutinar todo um setor de organizações antes de garantir pelo menos um financiador que sirva de âncora, algo primordial para facilitar a colaboração. “É difícil um orquestrador de mudança sistêmica fazer seu trabalho se der a impressão de que disputa recursos com os parceiros que está orquestrando”, explica Tim Hanstad, vice-presidente da Chandler Foundation e cofundador da Landesa. E se não fosse assim? E se o orquestrador tivesse uma base estável a partir da qual operar? Melhor ainda, e se todo um setor tivesse uma instituição neutra encarregada de criar espaços de diálogo, abrigar orquestradores de sistemas, facilitar atividades em todo o campo (como apoio à estratégia e comunicação estratégica) e garantir a gestão de longo prazo da pauta do setor? Inovadores sociais deveriam batalhar por isso, e financiadores interessados em apoiar grandes transformações deveriam estar abertos a essa ideia.

Acima de tudo, é preciso que nosso modo de pensar e planejar coletivamente esteja sempre evoluindo e que, na condição de inovadores sociais e financiadores, estejamos abertos a trabalhar fora de nossas caixinhas habituais. Isso inclui a disposição para ceder poder e ignorar incentivos que nos levam a competir. Inclui, ainda, uma mentalidade inquisitiva, que se pergunta “qual é a utilidade de meus diferenciais para o sistema como um todo?” e “com quem posso unir forças para produzir efeitos multiplicadores?”. As crises que assolam o mundo – pandemias, desigualdades, emergências climáticas – têm raízes em problemas sistêmicos que exigem que façamos essas perguntas. E vão persistir e se agravar se continuarmos fingindo que estratégias isoladas para enfrentá-las são a solução.

 

NOTAS

¹ Publicações como Embracing Complexity: Towards a Shared Understanding of Funding Systems Change, da Catalyst 2030, The Revolution Will Not Be Funded, da INCITE!, e Equitable Systems Change: Funding Field Catalysts from Origins to Revolutionizing the World, da Bridgespan, entre outras, destacaram a escassez de financiamento para inovadores sociais e iniciativas de mudança sistêmica.

² Neil M. Vora et al. “Want to Prevent Pandemics? Stop Spillovers,” Nature, v. 605, 2022.

³ Neil M. Vora et al. “The Lancet–PPATS Commission on Prevention of Viral Spillover: Reducing the Risk of Pandemics Through Primary Prevention,” The Lancet, v. 403, n. 10.427, 2024.

4 Aaron S. Bernstein et al. “The Costs and Benefits of Primary Prevention of Zoonotic Pandemics,” Science Advances, v. 8, n. 5, 2022.

 

OS AUTORES

Jordan Fabyanske é diretor de programas da Dalberg Catalyst e ex-consultor de estratégia.

Sonila Cook é CEO da Dalberg Catalyst e ex-consultora de estratégia.

Mariah Levin é diretora executiva da The DO School Fellowships e membro do conselho da Dalberg Catalyst.

 

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