A filantropia voltada à biodiversidade precisa olhar além do próprio quintal

Durante a sexta extinção em massa, é necessário maximizar o impacto dos investimentos com melhores escolhas sobre onde alocar recursos

É difícil exagerar a gravidade da crise da biodiversidade. As taxas de extinção estão entre cem e mil vezes acima do nível natural, ameaçando até um milhão de espécies. Desde 1970, as populações de vertebrados selvagens caíram 73%. As consequências econômicas também são profundas: segundo o Fórum Econômico Mundial, mais da metade do PIB global – o equivalente a mais de US$ 44 trilhões [ou R$ 240 trilhões] – depende, em algum grau, da natureza. Setenta e dois por cento das empresas da zona do euro estão expostas a riscos decorrentes da degradação ambiental e aos custos não contabilizados da destruição da natureza. Em escala global, esses custos – incluindo impactos sobre a biodiversidade, a água, a saúde e o clima – são estimados entre US$ 10 trilhões e 25 trilhões [R$ 54,5 trilhões e R$ 136,4 trilhões] por ano. A agricultura depende de polinizadores e de solos ricos em nutrientes, os setores de energia e pesca precisam de ecossistemas intactos e as seguradoras enfrentam perdas crescentes com desastres naturais agravados pelas mudanças climáticas. Como a perda de biodiversidade e a crise climática se retroalimentam – a destruição de florestas e turfeiras libera carbono, enquanto o aquecimento empurra espécies para além de seus limites climáticos – é essencial enfrentar essas duas emergências de forma integrada.

Apesar disso, embora em todo o mundo haja investimentos voltados à natureza, a filantropia global ainda está muito aquém do desafio. Recursos existem, mas muitas vezes são aplicados nos lugares errados e em espécies erradas.

Todos os que distribuem recursos precisam se fazer uma pergunta simples: onde meu financiamento terá o maior impacto?

Historicamente, a filantropia tende a permanecer próxima de casa. Doadores e fundações preferem apoiar projetos locais, onde podem ver as árvores que ajudaram a plantar e onde os investimentos também melhoram a qualidade de vida da comunidade. É compreensível. Queremos plantar essas árvores. Queremos aproveitar sua sombra

No entanto, diante de um problema genuinamente global, como a extinção de espécies, esse tipo de localismo faz com que as causas mais urgentes fiquem cronicamente subfinanciadas. Pior ainda, como alertou recentemente a revista Science, projetos de conservação bem-intencionados em países ricos podem ter o efeito inverso, transferindo a pressão sobre o uso da terra para regiões mais biodiversas (e mais críticas) no exterior. Pesquisadores da Universidade de Cambridge e de outras instituições chamam de “vazamento de biodiversidade” quando terras agrícolas ou florestais produtivas são “re-naturalizadas” em países temperados com baixa riqueza de espécies, deslocando a demanda por alimentos ou madeira para regiões tropicais, onde os ecossistemas são muito mais ricos. Segundo a análise, transformar áreas agrícolas típicas no Reino Unido em florestas pode causar um impacto cinco vezes mais danoso para a biodiversidade global do que os benefícios locais gerados, justamente porque a produção seria transferida para países com muito mais espécies ameaçadas.

Em resumo, ao observar qualquer mapa de prioridades globais de conservação que destaque áreas de biodiversidade excepcional, espécies endêmicas ou habitats insubstituíveis, fica claro que os filantropos ocidentais precisam investir não apenas em seus próprios quintais.

Melhores escolhas para os investimentos

Imagine se os financiadores se perguntassem: “Devo investir em uma espécie ‘criticamente ameaçada’ ou em uma ‘pouca preocupante’?”

A forma mais simples de medir a importância de uma ação de conservação está nas Listas Vermelhas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), tanto a de espécies ameaçadas quanto a de ecossistemas. Trata-se do inventário mais completo do mundo sobre o estado de conservação global de espécies e habitats. Ainda assim, embora a pergunta pareça simples, centenas de milhões de dólares são destinados todos os anos a espécies e paisagens classificadas como “pouco preocupantes”, enquanto os animais e ecossistemas mais raros e únicos continuam dramaticamente subfinanciados.

A ciência, no entanto, vai além da classificação da raridade e oferece orientações claras sobre como obter o maior impacto de conservação por dólar investido. Pesquisadores identificaram 16.825 “Imperativos de Conservação” – áreas não protegidas que abrigam espécies raras, de distribuição restrita ou ameaçadas – cobrindo apenas 1,22% da superfície terrestre do planeta. Proteger essas áreas custaria cerca de US$ 34 bilhões [R$ 185,3 bilhões] por ano durante cinco anos, embora 38% delas estejam próximas de zonas já protegidas, o que reduziria os custos. Outro estudo mapeou as chamadas “Zonas EDGE” (de Evolutionarily Distinct and Globally Endangered species, ou Espécies evolutivamente distintas e globalmente ameaçadas), que cobrem menos de 1% da Terra, mas abrigam um terço de toda a história evolutiva ameaçada do planeta. Se o objetivo é investir em biodiversidade, existe causa mais nobre do que essa?

Financiar a biodiversidade onde ela mais importa oferece o maior retorno possível. Uma doação que, nos Estados Unidos, serviria apenas para plantar algumas árvores poderia, em outro contexto, pagar o salário de um guarda florestal responsável por proteger vastas áreas de floresta tropical – preservando muito mais carbono, água e espécies, além de sustentar o modo de vida de comunidades locais. Escolher proteger uma espécie criticamente ameaçada, com apenas algumas centenas de indivíduos na natureza, tem um impacto infinitamente maior do que apoiar uma espécie comum na Europa. Investir em hotspots globais de biodiversidade gera ganhos de conservação exponencialmente superiores.

Em toda a Ásia, répteis criticamente ameaçados, especialmente tartarugas, foram dizimados pela demanda por carne e, cada vez mais, pelo comércio de animais de estimação. Algumas populações contam hoje com apenas dezenas ou poucas centenas de indivíduos. Muitos são espécies EDGE (outro ótimo barômetro técnico para considerar na filantropia), com grande singularidade genética, e podem se recuperar rapidamente com medidas básicas de proteção, sobretudo patrulhas eficazes de vigilância. Diversos desses répteis, como o crocodilo-siamês, são fortes candidatos para projetos de reintrodução de baixo custo, alguns já em andamento. Que legado seria mais significativo do que impedir a extinção de uma espécie única no mundo pelo mesmo custo de um projeto urbano de arborização nos Estados Unidos?

Os primatas raros do Sudeste Asiático oferecem oportunidades semelhantes. O langur de Cat Ba, no Vietnã, aumentou de cerca de 50 a 60 indivíduos no fim da década de 2010 para aproximadamente 80 hoje; o macaco-narigudo de Tonkin permanece com menos de 250; o langur de Popa, em Mianmar, tem cerca de 250 adultos; e o gibão de Hainan, na China, sobrevive com apenas 40 indivíduos. Populações pequenas e isoladas como essas podem – e devem – ser protegidas por meio de patrulhamento intensivo, manejo eficaz de habitat e parcerias com comunidades locais. Do outro lado do planeta, o mico-leão-dourado mostra que isso é possível. Com cerca de 200 indivíduos na década de 1970, a espécie se recuperou para mais de 4 mil hoje. Podemos salvar essas espécies.

Independentemente de espécies ou locais específicos, o coração dessas iniciativas está nos guardas florestais – verdadeiros agentes de saúde planetária, que protegem tudo o que torna a Terra habitável e única. Financiar e profissionalizar guardas florestais em regiões críticas de biodiversidade é, muitas vezes, o melhor investimento possível na natureza: cada patrulha que impede a caça ilegal, o desmatamento ou a invasão de terras protege ecossistemas inteiros e os serviços ambientais dos quais as pessoas dependem. Apoiar guardas florestais é promover emprego local, proteção de espécies, articulação comunitária, sequestro de carbono, preservação de ecossistemas e mais.

Não é uma questão de “ou isto ou aquilo”

Não é difícil imaginar como seria uma filantropia voltada à conservação com uma mentalidade verdadeiramente global. Tome como exemplo a generosidade do filantropo Gregory Carr, cujo investimento de cerca de US$ 100 milhões [R$ 545 milhões] ao longo de 35 anos foi fundamental para transformar o Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique, lar de mais de cem espécies de mamíferos, incluindo elefantes (ameaçados de extinção), leões, hipopótamos e espécies reintroduzidas como os cães-selvagens-africanos (também ameaçados), além de mais de 500 espécies de aves. Uma das regiões com maior diversidade de aves no sul da África, o parque é um refúgio para animais criticamente ameaçados, incluindo a maior densidade de casais reprodutivos de abutres-de-cabeça-branca do mundo e várias espécies de pangolins africanos.

Em termos de valor investido, o aporte de Carr em Gorongosa é comparável ao do Wallis Annenberg Wildlife Crossing, ainda em construção na Califórnia (EUA). Mas é aí que as semelhanças terminam. Esse grande projeto de infraestrutura verde se apoia na popularidade local do puma P-22, famoso habitante do Griffith Park, com o objetivo de conectar uma população isolada de pumas (classificados como “pouco preocupantes”) a um habitat maior e evitar atropelamentos nas rodovias. É uma boa iniciativa? Sim. Eu adoro pumas? Sim. Mas será que vale o investimento, considerando a necessidade global de proteger populações significativas de espécies criticamente ameaçadas?

Outro exemplo vem do meu conterrâneo, J. Irwin Miller, ex-presidente da Cummins Inc. e fundador da Cummins Foundation. Num período em que a maioria das empresas terceirizava a produção e cortava custos a qualquer preço, Miller decidiu investir em sua pequena cidade natal, Columbus, no estado de Indiana (EUA). Seu compromisso com a cidadania corporativa responsável está refletido na arquitetura de padrão internacional, nos espaços públicos e nas escolas locais. Mas Miller também compreendia que os negócios não podem se isolar dos desafios globais: enquanto financiava escolas e hospitais em sua cidade, lutava contra o apartheid na África do Sul. “É ridículo esquecer que você e sua empresa estão inseridos na sociedade de seu tempo… Não podemos ignorar o mundo em que vivemos”, escreveu. “É melhor compreendê-lo.”

A experiência me ensinou que doadores querem – e merecem – sentir-se conectados aos resultados de seu apoio. Investir exige confiança, e embora eu trabalhe com organizações do Sudeste Asiático para produzir relatórios atrativos e enviar atualizações personalizadas com belas imagens, é difícil para alguém do outro lado do planeta realmente sentir o impacto ou confiar plenamente nos resultados. Esse é o grande desafio de todas as organizações que atuam no Sul Global: conquistar confiança e compartilhar o poder transformador de seu trabalho com financiadores distantes. Grandes fundações contratam equipes locais ou regionais para acompanhar o impacto em campo, mas a maioria dos filantropos não dispõe dessa estrutura. No entanto, já vi inúmeras vezes como uma simples viagem e visita de campo pode transformar as prioridades de um doador. Por que não planejar suas próximas férias em um hotspot global de biodiversidade e ver de perto tudo o que seu apoio pode proteger?

Por tempo demais, os padrões de consumo do Ocidente exerceram um impacto desproporcional sobre os hotspots de biodiversidade do mundo. Nossa filantropia precisa refletir essa responsabilidade. Pergunte ao seu conselho, aos seus consultores financeiros e a si mesmo: onde podemos gerar o maior impacto? Se fizermos isso, poderemos evitar extinções, preservar os ecossistemas que sustentam a economia e o clima globais e garantir que o extraordinário mosaico da vida permaneça intacto para as próximas gerações.

*Texto publicado originalmente na Stanford Social Innovation Review com o título Biodiversity Philanthropy Must Look Far From Home.

Autor(a)

Ben Valentine

Ben Valentine é diretor de captação de recursos da WWF Tailândia e fundador da Ben Valentine Consulting.