A ameaça do vírus da desinformação à saúde pública
A falta de confiança nas vacinas e no sistema de saúde, somada à disseminação de informações enganosas ou descontextualizadas, cria um ambiente de incerteza com enorme impacto nas campanhas de vacinação. Em um cenário de hiperconectividade, as plataformas digitais se tornaram um campo estratégico para o combate à desinformação e, ao mesmo tempo, para espalhar fake news e teorias da conspiração. Conheça os resultados de uma investigação sobre o papel que WhatsApp, TikTok, Twitter/X, Instagram, YouTube e Telegram desempenham na disseminação de informações falsas
Por Ana Julia Bonzanini Bernardi e João Guilherme Bastos dos Santos
EM FOCO
NARRATIVAS SOBRE VACINAÇÃO NO AMBIENTE DIGITAL é uma pesquisa que olha para a interseção entre a hesitação vacinal e o papel das plataformas digitais na propagação de informações falsas. Com o apoio da Fundação José Luiz Setúbal, o Instituto Democracia em Xeque mapeou as principais narrativas sobre vacinas nas mídias sociais. Além de identificar estratégias para combater campanhas de desinformação, o objetivo do estudo foi localizar rumores de reações adversas com o propósito de restaurar a confiança nas vacinas.
A história da vacinação no Brasil está profundamente enraizada no desenvolvimento de políticas públicas de saúde. Pioneiro no controle de doenças imunopreveníveis desde o século 19, o país teve sua primeira grande campanha vacinal durante um surto de varíola no início do século 20. A imposição da vacinação obrigatória gerou intensos protestos populares, culminando na Revolta da Vacina em 1904. O episódio, que resultou em 945 prisões, 110 feridos e 30 mortos, marca o início de um longo processo de construção de confiança pública nas vacinas.
No decorrer das décadas seguintes, o Brasil desenvolveu o Programa Nacional de Imunizações (PNI), um dos mais robustos do mundo. Criado em 1973, o programa foi crucial para a eliminação e controle de diversas doenças, como a poliomielite e o sarampo. Com o apoio de campanhas públicas e a expansão da infraestrutura de saúde, coube ao PNI universalizar o acesso às vacinas, alcançando taxas de cobertura vacinal superiores a 90% durante várias décadas1. Além de garantir a vacinação de milhões de brasileiros, o PNI também desempenhou importante papel na cooperação internacional, ajudando outros países em desenvolvimento a estruturarem seus próprios programas de imunização.
No entanto, desde 2015 as taxas de cobertura vacinal, que historicamente ficavam acima de 80%, vêm registrando uma queda preocupante. O menor percentual de pessoas protegidas com vacinas em 20 anos foi registrado em 2021: 52,1%. Esse declínio pode ser atribuído a múltiplos fatores, incluindo uma crescente desconfiança na eficácia e segurança dos imunizantes. Embora a imunização tenha sido um fator-chave no arrefecimento da pandemia de covid-19, cerca de três anos depois a hesitação vacinal, entendida como o atraso na aceitação ou recusa da vacinação, apesar da disponibilidade de serviços para tal emergiu como um fenômeno que ameaça os avanços conquistados no controle de doenças imunopreveníveis.
Confiança, complacência e conveniência
A revisão bibliográfica e a análise nacional feitas pelo ImunizaSUS em parceria com diferentes instituições identificaram diversas causas para a hesitação vacinal, que também se manifesta em outros países da América Latina. Fatores não associados à desconfiança em relação às vacinas contribuem para a discrepância nos dados de vacinação. Dentre eles, destacam-se a escassez de profissionais em horários e locais apropriados para que toda a população tenha condições de inserir a vacinação em seu cotidiano, questões de infraestrutura logística e de armazenamento necessários em diferentes regiões do país e incongruências trazidas por mudanças no sistema de registro paralelamente ao aumento das vacinas inseridas no calendário em um curto período de tempo.
Esse cenário está alinhado ao modelo explicativo da Organização Mundial da Saúde (OMS) para elucidar os motivos que levam à hesitação vacinal. Trata-se dos “três Cs”: confiança (na eficácia da vacina e nas intenções de seus produtores e gestores em cada país); complacência (baixa percepção individual do risco de doenças imunopreveníveis e, consequentemente, do valor atribuído às vacinas); conveniência (facilidade para se vacinar quando o indivíduo deseja fazê-lo). A comunicação social pode atuar nessas três frentes no que tange aos fatores individuais, seja buscando aumentar a confiança nas vacinas e gestores, trazendo percepção de risco com relação à não vacinação, seja lidando com possíveis fatores socioculturais que podem fazer com que indivíduos não busquem a vacinação, e por fim informando cidadãos sobre modos mais fáceis de acessar as vacinas disponíveis.
É relevante considerar todo o espectro da hesitação vacinal, ou seja, diferenciar a hesitação – pessoas que podem se vacinar e o fariam em outros cenários, mas não se vacinam em um momento específico – de outros comportamentos, como recusa vacinal a priori, crença em teorias da conspiração sobre vacinas, inação por apatia com relação a vacinas ou, ainda, questionamentos feitos por pessoas que acreditam em vacinas em geral mas têm alguma dúvida ou insegurança sobre imunizantes específicos. Cada um desses comportamentos se refere a um tipo diferente de relacionamento e confiança no governo, na ciência ou nas universidades, de percepção de risco relacionado às doenças e à vacinação e também de acesso a informações e serviços de saúde.
A interação entre diferentes fatores deve ser considerada em países como o Brasil, marcado por grande desigualdade social. Por exemplo, altos índices de hesitação entre mulheres de baixa renda em regiões remotas podem ter causas completamente distintas daquelas identificadas entre homens de alta renda em grandes centros urbanos. De modo similar, há estados com mais de 90% da população vacinada com a primeira dose contra a covid-19, como São Paulo e Piauí, e estados em que menos de 70% da população se vacinou, como Amapá e Roraima, com desigualdades regionais e diferenças consideráveis em termos de densidade populacional, acesso a profissionais de saúde e infraestrutura.
Um obstáculo à saúde pública
Historicamente, a introdução de vacinas tem sido acompanhada por resistências, frequentemente ligadas à desinformação e a teorias da conspiração que distorcem fatos científicos. No caso da vacina contra a covid-19, esse fenômeno ganhou proporções alarmantes, exacerbado pelo que em 2020 a OMS nomeou de “infodemia”: a superabundância de informações – algumas precisas, outras não – que circulam nas redes sociais em época de pandemia. Tal sobrecarga de informações enganosas dificulta o acesso da população a fontes confiáveis. A pandemia de covid-19 e a subsequente infodemia de informações falsas sobre vacinas trouxeram novos desafios para o PNI.
As informações falsas podem atuar contra cada um dos três Cs: minando a confiança na eficácia das vacinas e nas intenções de seus produtores e gestores; subestimando a doença ou superestimando possíveis efeitos colaterais a ponto de distorcer a percepção de risco dos cidadãos; ou ainda encaminhando pessoas ao erro ao veicular que vacinas não estejam disponíveis em regiões específicas ou que haja obstáculos (falsos) impedindo a vacinação. Portanto, embora a hesitação vacinal tenha causas multifatoriais, elas são alimentadas por campanhas de desinformação, tornando-se um dos principais obstáculos para a saúde pública contemporânea.
Embora a hesitação vacinal tenha causas multifatoriais, elas são alimentadas por campanhas de desinformação, tornando-se um dos principais obstáculos para a saúde pública contemporânea
Em março de 2020, a OMS declarou a covid-19, causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), como uma pandemia devido à sua rápida disseminação entre os continentes e ao agravamento do quadro global de saúde. O primeiro surto foi registrado em Wuhan, na província de Hubei, China, e logo se espalhou pelo mundo, gerando uma emergência de saúde pública de alcance internacional. Esse cenário sem precedentes resultou em 503 milhões de casos confirmados e mais de 6 milhões de mortes. Em meio à crescente hesitação vacinal, especialmente em relação à vacina contra a covid-19, as plataformas digitais se tornaram tanto um campo de batalha para o combate à desinformação quanto um canal para a disseminação de teorias da conspiração.
A ansiedade e o medo diante da imunização e as reações psicossomáticas decorrentes trouxeram o que a OMS classifica de Immunization Stress-Related Response (ISRR): respostas associadas não aos componentes da vacina, mas às emoções e gatilhos psicológicos vinculados à experiência de se vacinar. Trata-se de reações físicas e psicológicas reais, causadas pelo estresse em relação à vacinação. A circulação de vídeos no YouTube em que pessoas experimentam esse tipo de resposta cria ainda mais medo e ansiedade, aumentando as chances de que outros grupos tenham respostas induzidas pelo estresse. O desafio de explicar esse tipo de fenômeno em um momento em que crises de ansiedade são cada vez mais frequentes, e vídeos em plataformas de redes sociais online podem circular completamente fora de seu contexto original, faz com que o combate à hesitação precise considerar seriamente conteúdos que circulam em redes sociais no espaço virtual. Em um cenário de hiperconectividade, as plataformas digitais como Facebook, Twitter/X, Instagram, YouTube e Telegram tornaram-se canais ativos na disseminação de informações falsas e teorias conspiratórias, que minam a confiança pública nas vacinas.
Para além de casos de ISRR, há também a possibilidade de superdimensionar casos raros e reais. Apesar dos rigorosos testes e avaliações pelos quais as vacinas passam antes de ser disponibilizadas, as notícias falsas e distorcidas costumam omitir esses fatos, dando uma dimensão exagerada a possíveis eventos adversos raros. Segundo o Boletim Epidemiológico de 2022, os eventos adversos graves ocorrem em apenas 0,07% das doses aplicadas, um índice extremamente baixo se comparado ao benefício coletivo da imunização. No entanto, a narrativa a respeito desses raros casos é explorada com frequência para alimentar a desconfiança, especialmente entre grupos antivacina.
De acordo com o relatório do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), é fundamental que as campanhas de imunização sejam fortalecidas e que estratégias de comunicação sejam desenvolvidas para combater a hesitação vacinal. Para isso, a colaboração com profissionais de saúde é essencial. Esses profissionais desempenham um papel estratégico, tanto no fornecimento de orientações claras para a população como no combate a mitos e informações falsas. A falta de confiança nas vacinas e no sistema de saúde, somada à disseminação de informações enganosas ou descontextualizadas, cria um ambiente de incerteza que prejudica a adesão às campanhas de vacinação.
No rastro da desinformação
Narrativas sobre vacinação no ambiente digital é uma pesquisa que olha para a interseção entre a hesitação vacinal e o papel das plataformas digitais na propagação de informações falsas. Com o apoio da Fundação José Luiz Setúbal, o Instituto Democracia em Xeque, do qual somos diretores, mapeou as principais narrativas sobre vacinas nas mídias sociais.
Além de identificar estratégias para combater campanhas de desinformação, tínhamos também como objetivo localizar rumores de reações adversas com o propósito de restaurar a confiança nas vacinas. Acompanhamos as narrativas no YouTube, TikTok, Instagram, Twitter/X, WhatsApp e Telegram ao longo de 2023 para entender como diferentes plataformas influenciam a disseminação de informações sobre vacinação, especialmente no contexto de desinformação e hesitação vacinal.
Ao analisar o conteúdo de campanhas pró e antivacina, demos especial atenção ao papel das plataformas de redes sociais na amplificação dessas mensagens. Argumentamos que a viralização de informações na internet ocorre de forma integrada nas diferentes plataformas como um sistema complexo em que cada um desses ambientes virtuais adquire diferentes funções.
Nossa análise qualitativa mostra que as plataformas apresentam algumas similaridades importantes. O apelo emocional, tanto em mensagens pró-vacina como antivacina, desempenha um papel central no engajamento do público. Ainda, seja nos comentários ou nos conteúdos que circulam, informações falsas, teorias conspiratórias e narrativas antivacina (mais do que rumores aparentemente orgânicos) marcam o tipo de conteúdo problemático identificado.
A seguir, apresentamos os achados em cada uma das plataformas analisadas.
Máquinas de propagação altamente contagiosas: NOSSA COLETA DE DADOS
Utilizamos instrumentos específicos de monitoramento em cada plataforma, abrangendo ferramentas abertas disponibilizadas pelo Digital Methods Initiative da Universidade de Amsterdã, intermediários como CrowdTangle e serviços de Social Listening como a Palver, além de APIs das plataformas.
Youtube: Foram analisados 1.477 vídeos e 862 canais, com 9.570 resultados de busca coletados entre 24 de julho e 7 de agosto de 2023, utilizando o YouTube DataTools/DMI (Rieder, 2015).
Para mensageria, no WhatsApp foram coletadas 56.052 mensagens sobre vacinação de 1o de janeiro a 4 de setembro de 2023, por meio do acesso à ferramenta de monitoramento de mensageria da empresa Palver.
No TikTok, foram coletados 10.537 vídeos únicos entre 13 e 26 de setembro de 2023, via Zeeschuimer/DMI.
No Telegram, as 69.914 menções a vacinas foram extraídas de um total de 5,1 milhões de mensagens entre janeiro e julho de 2023.
No Instagram, 78.739 postagens foram extraídas usando o CrowdTangle, abrangendo o período de 1o de janeiro a 15 de setembro de 2023.
No Twitter/X, foram analisados 13.173 tweets coletados de 13 a 27 de agosto de 2023, utilizando a API do Twitter, em que se destacaram discussões tanto pró como antivacina.
YouTube
No YouTube, encontramos 862 canais diferentes, mas apenas 285 deles recebem featured channels (conexões indicadas pela API do próprio YouTube) ou inscrições de outros canais da amostra. Esses 285 canais possuem um total de 602 conexões com outros canais. Canais oficiais de saúde, como os do Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde, Fiocruz, e Hospital Israelita Albert Einstein, foram identificados na rede, mas com menos visibilidade em comparação com canais de notícias e entretenimento.
Apesar de a plataforma abrigar conteúdos educativos e científicos relacionados à vacinação infantil e ao calendário vacinal, os vídeos com maior visibilidade são frequentemente de canais de entretenimento ou notícias, e não de canais especializados em saúde. Isso demonstra que, nessa plataforma, visualizações e engajamento não estão necessariamente ligados à qualidade ou à precisão das informações, mas sim à popularidade dos criadores de conteúdo, seja em termos de quantidade de inscritos em seus canais, aparição em posições relevantes graças aos algoritmos de ranqueamento de busca ou recomendação de conteúdo, ou ainda distribuição de links diretos sem passar pelos recursos de gerenciamento de conteúdo da plataforma. Por exemplo, o canal de entretenimento Maria Clara & JP, que mostra crianças tomando vacina, possui 24.423.131.942 visualizações em 749 vídeos identificados e mais de 37 milhões de inscritos, enquanto canais como o do Ministério da Saúde (490 mil inscritos na época do estudo) ou Drauzio Varella (3,5 milhões) não chegam sequer perto disso. Mesmo canais informativos como CNN, presentes na amostra, possuíam pouco mais de 15 milhões de inscritos.
Importante constar que devido à maior moderação de conteúdos, identificamos uma migração da desinformação para os comentários. Analisando especificamente os comentários dos vídeos relacionados à vacinação infantil em canais informativos como Metrópolis, CNN, Poder360 e TV Brasil, destaca-se especialmente que a popularidade de teorias da conspiração sobre a vacina, como alegações de que ela causa infartos ou convulsões, foi amplificada pelos comentários de usuários, o que reforça o impacto da desinformação na plataforma.
Os comentários mais perigosos encontrados no YouTube durante o estudo incluíram alegações de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estaria aprovando “experimentos” vacinais, sugerindo que o Brasil seria um dos poucos países que ainda confiavam nas vacinas. Outros comentários afirmavam que infartos e convulsões eram resultados diretos das vacinas, com alguns indivíduos se identificando como médicos e alegando que não vacinaram seus familiares. Havia também referências a supostos eventos adversos em crianças, em particular meninas no Acre (estado relevante se considerarmos que foi lá que surgiu a Abravac, a Associação Brasileira de Vítimas de Vacinas e Medicamentos, além de um dos primeiros movimentos antivacina nos moldes atuais), sugerindo que esses casos foram ignorados pelas autoridades de saúde.
A seguir, os canais identificados como especializados.
TikTok
No TikTok, as hashtags desempenham um papel central na propagação de informações sobre a vacinação. A plataforma mostrou um alto volume de engajamento com hashtags como #vacina (2,5 bilhões de visualizações) e #vacinacovid (852,2 milhões), alcançando centenas de milhões de visualizações. Em menor proporção, mas ainda relevante considerando que os casos anteriores trazem toda a discussão sobre vacinas na pandemia, a #vacinaçaoinfantil obteve 279,4 mil visualizações. A plataforma se destaca, ainda, como ambiente em que o conteúdo é impulsionado por desafios – como chamadas para gravar vídeos realizando determinadas ações, histórias pessoais e vídeos curtos. Por essa razão, vídeos de pessoas tomando vacina ou narrando suas experiências com a vacina têm um grande apelo emocional e são amplamente compartilhados.
Ao executar uma clusterização hierárquica descendente nos textos das postagens identificadas juntamente a essas hashtags, identificamos oito classes de conteúdo sobre vacinação, cada uma com foco em um tópico específico. A classe “Vacinas/Crianças” abrange vídeos sobre vacinação infantil, enquanto “Vacina/Tomar/Mês” foca nas vacinas contra a covid-19, incluindo experiências pessoais de vacinação. A classe “Vacina/Obrigação” discute a obrigatoriedade da vacinação. Há também conteúdos ligados a “Bolsonaro/Polícia/Federal”, que abordam debates sobre o ex-presidente e a vacinação. Outras classes incluem “Caderneta/Capa”, sobre registros de vacinação, e “Não/Coração/Mãe/Doer”, que explora experiências emocionais maternas com a vacinação infantil. “Amigo/Marcar/Medo” incentiva a vacinação entre amigos, e “Jacaré/Lacoste/Cuca” usa humor para satirizar teorias conspiratórias sobre vacinas.
A plataforma hospeda teorias conspiratórias e desinformação sobre a eficácia das vacinas, como vídeos afirmando que “Lula quer eliminar os pobres”, ou ainda algumas narrativas antivacina explorando medos relacionados à saúde infantil, mas boa parte do conteúdo com maior engajamento está relacionada a uma abordagem mais próxima ao entretenimento – filtros que transformam pessoas em jacarés, memes envolvendo vídeos de pessoas com medo de tomar vacina ou cartazes com piadas expostos no momento da vacinação.
O Instagram, por sua vez, mostrou-se uma plataforma com grande volume de postagens relacionadas à vacinação, principalmente por perfis oficiais de prefeituras e secretarias da saúde, focados em incentivar a vacinação. Assim como TikTok, a plataforma se distingue pelo uso de imagens e vídeos curtos acompanhados de hashtags, que indexam à discussões específicas e ampliam o alcance do conteúdo, direcionando a outras diferentes discussões. Durante o período de coleta, houve um pico de postagens relacionado à investigação sobre o cartão vacinal do ex-presidente Jair Bolsonaro, o que mostra a sensibilidade da plataforma a eventos políticos e noticiosos.
Embora o Instagram tenha se revelado um ambiente mais favorável para a promoção de narrativas pró-vacina, o engajamento com desinformação também está presente, especialmente através de contas que compartilham teorias da conspiração e críticas ao governo. Entre perfis noticiosos, o desenvolvimento de diversas vacinas, o fim da pandemia e o calendário de vacinação dividem espaço com notícias sobre suspeitas de fraude no cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro. Em outros perfis, os grupos favoráveis à vacinação e sem pautas político-partidárias dividem espaço com grupos críticos à gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua ministra da saúde Nísia Trindade, bem como grupos com críticas contundentes à gestão da saúde durante o governo de Jair Bolsonaro, repercutindo também a polêmica relativa à suspeita de fraude em seu cartão de vacinação.
WhatsApp e Telegram
As plataformas de mensageria, como WhatsApp e Telegram, revelaram-se ambientes propícios a conteúdos mais explícitos e nitidamente falsos sobre vacinação e supostos efeitos adversos.
No WhatsApp, as mensagens antivacina frequentemente utilizam apelos emocionais, como a apresentação de imagens de crianças sofrendo supostas reações adversas, para convencer os usuários a não vacinarem seus parentes mais novos. Entre as informações falsas com maior repercussão, podemos diferenciar as de âmbito internacional – teorias da conspiração centradas na ideia de que políticas de saúde estariam comprometidas com a redução populacional, seja seguindo interesses de uma suposta Nova Ordem Mundial ou da China – e outras mais centradas na ideia de efeitos adversos sem necessariamente focar em atores externos. Nesse segundo grupo, as informações falsas são validadas por menções e entrevistas com supostos especialistas da área médica como legitimadores de um discurso antivacinação. Há um forte apelo emocional contrário à vacinação infantil associado a imagens de crianças enfermas presumidamente sofrendo de reações à vacina contra a covid-19; constante menção à trombose, miocardite e mortes supostamente frequentes e relacionadas à vacina contra a covid-19, tanto em adultos como em crianças; e listas de pessoas famosas que teriam adoecido ou falecido em decorrência da vacinação contra a covid-19.
No Telegram, as informações falsas parecem ser coordenadas. Circulam tanto através de canais e grupos específicos sobre vacinação, como em grupos e canais de cunho conspiratório e extremista, e até mesmo em canais com título de “receitas da vovó” (que podem ajudar a despistar políticas de moderação). Assim como no WhatsApp, há informações que ligam as vacinas a supostos casos recorrentes de doenças graves, como miocardite e trombose. Além disso, no Telegram observa-se uma reciclagem de conteúdos desinformativos – muitos dos vídeos apresentados nos últimos meses já circulavam na rede em 2021 – sobre presumidas reações adversas, que ressurgem durante campanhas de vacinação ou morte de figuras públicas – como foi no caso da morte de Agnaldo Timóteo – como se ocorressem em decorrência da vacina e não da covid-19.
De forma geral, esses grupos e canais exploram a temática de vacinação infantil utilizando argumentos de riscos à saúde e desenvolvimento de sequelas gravíssimas, até mesmo a ideia de um genocídio infantil caso não se evite a vacinação de crianças. Há ainda a ideia de que as vacinas alterariam o DNA das pessoas, trazendo supostos problemas genéticos e transtornos comportamentais, como por exemplo o transtorno do espectro autista, que para esses grupos estaria relacionado a vacinas MMR (tríplice viral), à vacina do sarampo e ao mercúrio presumidamente presente nas vacinas. Por fim, há diversas sugestões para “desintoxicar” pessoas já vacinadas, ou a seus filhos, com uso de ivermectina, assim como se indica o uso de outros medicamentos e substâncias como zeólita, chá de funcho, vitamina C, vitamina D e suramina – inclusive com links para compra no Mercado Livre.
Twitter/X
Por fim, no Twitter/X as mensagens mais compartilhadas podem ser facilmente divididas em dois campos distintos: um pró-vacina, que promovia a vacinação, e o antivacina, que disseminava desinformação sobre os riscos das vacinas. Enquanto o campo pró-vacina se concentrou na promoção de campanhas e na normalização da vacinação, o campo antivacina explorou alegações falsas, como a de que as vacinas frequentemente levam a quadros graves de saúde ou até mesmo à morte. A consideração das dez mensagens com maior número de compartilhamentos no período mostra essa divisão acirrada:
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Seis das mensagens mais compartilhadas no período analisado foram produzidas e/ou engajadas pelo segmento envolvido no incentivo à vacinação: uma do presidente Lula, uma da primeira-dama Janja Lula, uma da mídia Choquei, uma de um petista “comum”, uma de uma profissional da saúde e outra do Ministério da Saúde. O discurso positivo, de união nacional e sobre a importância de se vacinar como hábito desde a infância muitas vezes vem associado à divulgação do início da campanha de atualização de vacinação de crianças e adolescentes com menos de 15 anos. Vale notar que figuras públicas, como a apresentadora Xuxa, também desempenharam um papel relevante: em uma campanha governamental, a artista participou de vídeos incentivando a vacinação infantil, gerando grande repercussão positiva.
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Por outro lado, quatro das mensagens mais compartilhadas foram produzidas e/ou engajadas pelo campo oposto à vacinação contra a covid-19: duas por um médico infectologista alinhado aos grupos antivacina, uma por um militar apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro e duas por franceses também alinhados aos discursos antivacina. Entre os 20 principais perfis do segmento antivacina, foi possível identificar um ecossistema que conta com a maioria de perfis na chamada “extrema-direita” e que se articulam ocasionalmente com os bolsonaristas. O perfil mais relevante e compartilhado no segmento antivacina brasileiro durante o período analisado na plataforma é @Dr_Francisco_, perfil é atribuído a Francisco Eduardo Cardoso Alves, médico infectologista cujo registro no Conselho Federal de Medicina (CRM) consta como ativo em São Paulo.
As lições aprendidas: a caixa de ferramentas sugerida pela OMS para o combate à desinformação
“Não estamos combatendo apenas uma epidemia, estamos combatendo uma ‘infodemia’”, notou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS). “As fake news se disseminam mais rápida e facilmente que este vírus e são igualmente perigosas”, emendou. Era ainda 15 de fevereiro de 2020, antes portanto de a covid-19 ser caracterizada como pandemia.
Definida como um excesso de informações, algumas precisas e outras não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se necessita, a palavra infodemia se refere a um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento pontual, quando surgem rumores e desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa. Embora o fenômeno não seja novo, foi a pandemia da covid-19 que deixou claro o quanto a desinformação pode ser generalizada e corrosiva, prejudicando e colocando em risco a saúde e o bem-estar individual e coletivo.
Seu combate exige uma coalizão de partes interessadas para traçar estratégias sobre a melhor forma de enfrentar essa crise e garantir que as informações de saúde sejam confiáveis, baseadas em fatos e cientificamente fundamentadas. Por isso, é necessário garantir que as plataformas de mídia social, governos e sociedade civil adotem um esforço regulatório conjunto em que cada setor desempenhe um papel único e complementar. Governos definem políticas e promovem a educação em saúde, a indústria ajusta algoritmos e práticas de transparência e a sociedade civil participa ativamente da correção de informações e na promoção de debates saudáveis.
Aos governos cabe:
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Facilitar o diálogo entre os setores público e privado para desenvolver políticas conjuntas contra a desinformação.
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Criar normas que exijam transparência nas plataformas e definir padrões de moderação de conteúdo.
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Lançar campanhas de educação em saúde digital para capacitar a população a identificar fontes confiáveis.
Ao setor privado, em especial às plataformas:
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Ajustar algoritmos para promover informações confiáveis e reduzir o alcance de conteúdos prejudiciais.
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Implementar mecanismos que permitam ao usuário verificar a origem e autenticidade das informações.
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Colaborar com autoridades de saúde para traduzir dados complexos em formatos acessíveis ao público.
À sociedade civil:
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Trabalhar com plataformas para garantir que informações falsas não sejam impulsionadas, além de ajudar a desmonetizar páginas e perfis que disseminam desinformação.
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Corrigir registros incorretos, notificar usuários expostos a informações falsas e promover explicações alternativas baseadas em fatos.
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Criar bots informativos para responder automaticamente a dúvidas com base em dados verificados, como foi feito com o chatbot da OMS durante a covid-19.
Texto adaptado de Toolkit for tackling misinformation on noncommunicable disease: forum for tackling misinformation on health and NCDs. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe, 2022.
Plataformas permitem a circulação de teorias que ligam vacinas ao autismo e aproveitam tragédias para semear desconfiança e medo sobre a segurança das vacinas. Isso cria um terreno fértil para a hesitação vacinal
Existe vacina para a desinformação?
As plataformas virtuais, e aplicações como YouTube, TikTok, Instagram, Twitter/X, WhatsApp e Telegram, são arenas-chave para a disseminação de campanhas pró-vacina e, ao mesmo tempo, de informações falsas que dão sustentação a grupos antivacina. Nos conteúdos pró-vacina, vemos um foco no incentivo à imunização, com hashtags populares como #vacinasalvamvidas e perfis institucionais promovendo a vacinação infantil e contra a covid-19, além de perfis oficiais, como o do presidente Lula e a da primeira-dama Janja, que reforçaram a importância da vacinação, principalmente de crianças e adolescentes. Essa mobilização ajudou a promover um discurso de união nacional em torno da vacinação, especialmente no contexto da covid-19. Da mesma forma, histórias pessoais e apelos emocionais também desempenham um papel importante nessas campanhas, buscando destacar a importância da vacinação como uma prática de proteção coletiva.
Por outro lado, as narrativas antivacina exploram teorias conspiratórias e informações falsas, além de superestimar hipotéticos efeitos adversos e subestimar a eficácia das vacinas, muitas vezes com apelos emocionais e sensacionalistas para que pais “protejam seus filhos”. Teorias sobre a suposta censura à divulgação de casos fatais e supostos efeitos adversos frequentes, como trombose e miocardite, são amplamente disseminadas. Isso pode ser notado em especial em plataformas mais opacas como Telegram e WhatsApp, com indícios de coordenação. Essas plataformas permitem a circulação de teorias que ligam vacinas a doenças e condições como o autismo e aproveitam tragédias, como a morte de figuras públicas, para semear desconfiança e medo em relação à segurança das vacinas. Tudo isso cria um terreno fértil para a hesitação vacinal.
Como recomendações decorrentes do acompanhamento das plataformas digitais, indicamos ações concretas para enfrentar a desinformação sobre vacinas. Em primeiro lugar, propomos a investigação triangular, combinando dados de monitoramento com pesquisas qualitativas e quantitativas para mapear a hesitação vacinal. A criação de campanhas positivas e narrativas pró-vacina, com base em evidências, deve ser testada em públicos específicos para garantir seu impacto. Sugerimos ainda a articulação de canais e perfis pró-vacina, promovendo um compartilhamento coordenado de briefings e mensagens. O advocacy com plataformas digitais é essencial para negociar memorandos de cooperação que assegurem a moderação de conteúdos prejudiciais à saúde pública. Além disso, é importante consolidar o espaço da vacinação na mídia tradicional, com assessoria de imprensa que envolva programas de alta audiência e jornalistas especializados, fortalecendo as campanhas pró-vacina nos canais que concentram audiências mais hesitantes. Por fim, indicamos ações de formação em educação midiática, a fim de capacitar diferentes públicos para o reconhecimento da desinformação e apoiar as políticas de imunização.
Os autores
Ana Julia Bonzanini Bernardi é diretora de Projetos do Instituto Democracia em Xeque. Doutora e mestra em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora visitante na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e na Escola de Ensino Superior da Fundação Instituto de Pesquisa Econômica (FipeEES). Autora do livro Fake news e as eleições de 2018: como combater a desinformação (Appris, 2020).
João Guilherme Bastos dos Santos é diretor de Tecnologia e Estudos Temáticos e co-fundador do Instituto Democracia em Xeque. Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), membro do Carnegie Endowment’s Partnership for Countering Influence Operations Researchers Guild (PCIO). Doutor em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado no INCT.DD.