Entre o urgente e o essencial: a filantropia brasileira diante dos ventos iliberais

A filantropia pode reagir ao populismo antidemocrático e reconstruir o espaço público por meio do apoio estável à sociedade civil e da formação de coalizões amplas 
Ilustração de Brian Stauffer

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em seu segundo mandato desde janeiro de 2025, escancara uma tendência já identificada mundo afora: usar a democracia eleitoral para construir uma democracia iliberal, substituindo o Estado democrático de direito pelo governo de um homem só (one man rule), em que no lugar de uma norma jurídica geral, estável e impessoal, o presidente governa como se ele fosse a própria lei. Trump tem intimidado e perseguido instituições independentes e entre seus alvos declarados estão juízes e promotores, jornalistas, universidades e organizações da sociedade civil e da filantropia.

Emitiu ordens executivas que suspenderam bilhões de dólares para a cooperação internacional e para organizações não governamentais, e ameaça adotar medidas legais para sufocar e controlar a filantropia no país e impedir que se façam doações para o exterior. Além disso, usa uma retórica hostil e estigmatizante, rotulando grupos civis de “subversivos” e “terroristas”, o que tem consequências e gera riscos para quem atua na defesa dos direitos humanos e da democracia.

Trump não está sozinho nem é o único problema. Ele é a expressão mais visível do populismo antidemocrático que ameaça os fundamentos da democracia liberal, aquela assentada no equilíbrio entre voto e direitos, entre a maioria e a proteção individual, entre as liberdades cívicas e o império da lei. 

Completa essa espiral negativa um cenário de enfraquecimento do multilateralismo, de guerras duradouras e de migração de recursos de assistência humanitária para gastos militares, como tem acontecido na Europa. Esse contexto acende um alerta para a filantropia brasileira repensar seu papel e sua responsabilidade.

Da reação à reconstrução do espaço público  

O Instituto Galo da Manhã é uma organização filantrópica que doa recursos para fomentar uma atuação estratégica da sociedade civil organizada no fortalecimento da democracia e do Estado de direito. Acreditamos que recursos advindos da filantropia podem assegurar às organizações da sociedade civil condições para incidirem coletivamente de forma qualificada no debate sobre políticas públicas, trabalhando por um ambiente mais bem informado, orientado pelas melhores evidências e mais plural. Temos sentido de forma concreta os efeitos da intimidação sobre fundações filantrópicas e dos cortes da cooperação internacional, inclusive com as organizações brasileiras. O impacto mais tangível é o dramático aumento da demanda por recursos. Organizações que apoiamos, e muitas que não recebem nosso apoio, passaram a nos procurar em busca de socorro para manter suas atividades. O campo se vê diante de uma corrida de resistência. Não por expansão, mas por sobrevivência.

Há, porém, danos menos visíveis, e talvez mais graves. Um deles é a insegurança em relação ao futuro. A instabilidade crônica mina a capacidade das organizações de planejar de forma consistente a sua atuação, e mesmo investir em sua estruturação e inovação. 

Em um ambiente de ameaças permanentes, somos levados a sacrificar agendas de longo prazo e concentrar esforços para responder aos ataques presentes

Outro efeito é o deslocamento da atenção da sociedade civil para o campo da reação. Em um ambiente de ameaças permanentes, somos levados a sacrificar agendas de longo prazo e concentrar esforços para responder aos ataques presentes. Como escreveu o filósofo francês Edgar Morin, “ao sacrificar o essencial pelo que é urgente, acaba-se por esquecer a urgência do essencial”. 

O sentido de urgência nubla a visualização do futuro e mina a possibilidade de diálogo. A pressão por unificar o pensamento e reagir ao contexto torna-se um problema quando anula a força que há em nossas diferenças.

O desafio de não desacreditar a democracia  

Vivemos em um contexto informacional fragmentado e hiperpartidarizado, o que desafia a possibilidade de um debate público racional e de uma visão partilhada sobre a realidade. Estudos mostram que, em sociedades muito polarizadas, as pessoas tendem a priorizar a lealdade a identidades políticas em detrimento do respeito às normas democráticas. A adesão ou a rejeição emocional a um grupo – a chamada polarização afetiva – alimenta a radicalização.

Um dos sintomas da crise democrática é o aparente rompimento de normas sociais que funcionam como grades de proteção para a democracia e para a coesão social. É sobre esse terreno que líderes antidemocráticos instrumentalizam a indignação legítima dos cidadãos e preenchem a falta de confiança com soluções radicais que oferecem às pessoas a sensação de acolhimento. 

A filantropia tem papel estratégico para influenciar essa realidade. Atua com recursos próprios e independência em relação às políticas governamentais e às divisões partidárias. Seja executando projetos próprios ou oferecendo apoio financeiro a parceiros, a filantropia pode influenciar a opinião pública, projetar lideranças cívicas e indicar prioridades para a atuação da sociedade civil organizada em torno de agendas dedicadas à promoção do bem público e do desenvolvimento da sociedade. 

É importante que essa capacidade seja usada para sinalizar que o compromisso com a democracia liberal é inegociável, e que as disputas pelas agendas em que investe, por mais conflituosas que sejam, são ancoradas na visão de longo prazo e na preservação das normas e instituições democráticas.

Não podemos tomar a democracia como algo consolidado, imune a retrocessos. É preciso investimento em pesquisas, produção e compartilhamento de conhecimentos que nos ajudem a entender essas mudanças de contexto e como elas impactam a confiança na democracia, mesmo porque um ambiente político saudável é pré-requisito para o debate e o avanço em direitos.

Precisamos ter uma mensagem clara, tanto para o público como para o campo social: ao defender a democracia das investidas que visam corroê-la, não estamos relativizando suas evidentes limitações; e ao criticarmos suas limitações, não fazemos coro às ideias de que a democracia liberal é descartável ou simplesmente “não funciona”.

Sabemos das limitações do sistema democrático e das persistentes injustiças que coexistem com ele. A sociedade civil organizada tem contribuído para mudar essa realidade e para que as instituições sejam mais representativas e inclusivas, mais transparentes e participativas, mais republicanas e responsivas às necessidades das pessoas. Nosso trabalho tem sido apoiar essas organizações, com recursos e a nossa capacidade de criar pontes e grupos de debate.

Coalizões, legitimidade e visão de longo prazo 

Recentemente, o Instituto Galo da Manhã organizou no Brasil um encontro entre o cientista político Yascha Mounk e parceiros convidados. No encontro, ele lembrou três lições deixadas pela experiência de outros países. Primeiro: nunca subestimar o populismo antidemocrático; ele é resiliente e mobilizador. Segundo: os democratas costumam demorar a se unir e só percebem o preço disso quando já é tarde. Terceiro: não basta denunciar o perigo, é preciso oferecer uma visão positiva do futuro.
A referência a essas lições é importante para provocar a filantropia a se reposicionar. Ofensivas como a do governo dos Estados Unidos contra fundações e organizações da sociedade civil atendem ao objetivo de concentrar poder e restringir o espaço cívico. E a melhor forma de lidar com isso é pela união de forças democráticas em coalizões amplas com capacidade de transcender diferenças em agendas específicas e unidas em torno da defesa das liberdades fundamentais e da independência da sociedade civil.
Nesse contexto, o setor da filantropia precisa adotar estratégias para que sua função seja melhor entendida pela população. Mesmo dentro do nosso campo ainda parece não existir a consciência de como uma filantropia livre e plural é importante para o fortalecimento da democracia.

Nossos aprendizados 

O papel primordial da filantropia é ser parceira confiável das organizações da sociedade civil, investindo recursos para que atuem de forma estável e estratégica, orientadas por boas evidências e de forma articulada. Um ecossistema bem organizado pode impactar efetivamente políticas públicas, propor inovações para aprimorar serviços públicos e a representação política, e canalizar demandas da sociedade, além de reagir adequadamente a momentos de crise.

É também por essa visão que acreditamos na doação de recursos institucionais, aqueles que mantêm as organizações vivas, e não para projetos pontuais. Isso permite que organizações e lideranças tenham estabilidade e possam se adaptar quando o contexto político é volátil e crises e oportunidades surgem sem aviso. A filantropia deve estar na retaguarda, inclusive para momentos críticos, como é o caso agora.

No contexto brasileiro, entendemos que é necessário haver maior engajamento da filantropia para avaliar os desafios da conjuntura e as oportunidades para atuar de forma estratégica. Por isso, temos atuado nos espaços de articulação do setor e promovido atividades com parceiros visando aprimorar o impacto da filantropia na promoção da democracia. 

É possível que instituições filantrópicas expressem a sua responsabilidade mais ampla e intencional com a saúde da democracia mesmo ao atuar em agendas temáticas ou setoriais. Isso pode ser feito por meio de ações e posicionamentos públicos, mas também mantendo ambientes de trabalho com diversidade e pluralidade de ideias, e apoiando lideranças e organizações que comuniquem com clareza valores democráticos ao defender suas causas.

Por fim, é necessário aceitar que nosso desafio requer planejar pensando em décadas, não em anos ou eleições. Enquanto movimentos autoritários vêm construindo redes intelectuais transnacionais e estruturas de mobilização pensadas para décadas, os setores democráticos frequentemente se limitam a respostas burocráticas, defensivas e imediatas. A sociedade civil organizada pode ajudar a oferecer às pessoas uma visão compartilhada para o futuro e um sentimento de comunidade que o populismo antidemocrático explora, mas não satisfaz. 

Para nós, toda mudança sistêmica e estrutural é fruto de um trabalho coletivo e plural, como afirma o poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto, que inspirou o nome do nosso instituto.

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.