Uma nova porta de entrada no mercado de trabalho na era da IA

A natureza mutável dos empregos significa que os trabalhadores precisam de novos percursos de educação e formação que se adaptem a essa realidade
Billion Photos / Shutterstock

O uso crescente de inteligência artificial (IA) generativa no ambiente de trabalho cria um paradoxo para os trabalhadores em início de carreira. As mesmas tarefas que antes serviam como treinamento – como resumir reuniões, limpar dados e redigir comunicados – estão sendo cada vez mais automatizadas. Isso significa que as vagas de entrada no mercado de trabalho hoje exigem experiência que essas próprias posições já não oferecem.

A IA canibalizou as tarefas rotineiras e de baixo risco que costumavam ensinar novos profissionais a operar dentro de organizações complexas. Sem esses degraus, a escalada na escada de oportunidades em direção a empregos melhores torna-se mais íngreme – e, para muitos, impossível. Essa não é uma falha temporária. A IA está reorganizando o trabalho, remodelando quais conhecimentos e habilidades são relevantes e redefinindo como as pessoas devem adquiri-los.

As consequências se espalham desde o início das carreiras individuais até a própria promessa de mobilidade econômica e social, que envolve tanto riqueza financeira como riqueza social, construída a partir das redes e relações que formamos. Ainda assim, a mesma tecnologia que dificulta o primeiro emprego pode nos ajudar a reinventar como a experiência é adquirida, validada e expandida. Se usarmos a IA para ampliar – e não restringir – o acesso à educação, ao treinamento e à comprovação de conhecimento e competência, poderemos construir uma escada profissional mais sólida rumo à classe média e além. Parte essencial desse caminho é redesenhar a infraestrutura de educação, capacitação e contratação.

Nas palavras do presidente do Burning Glass Institute, Matt Sigelman: “A IA não automatiza empregos. Ela automatiza tarefas. Se isso libera tempo para assumir funções mais valiosas, se novas eficiências destravam uma demanda latente que realmente expande oportunidades, ou se os empregadores optam por apenas absorver a economia gerada, depende de uma série de fatores e do tempo… Antes de tudo, precisamos de uma infraestrutura acessível.”

A transformação dos cargos de entrada 

Tradicionalmente, cargos de nível inicial cumprem dois propósitos: permitem que o trabalho seja executado e oferecem formação. À medida que tarefas rotineiras – como agendamento, análises básicas e comunicações internas – passam a ser realizadas por IA, as funções humanas já começam em um patamar mais elevado. No entanto, quando esse ponto de partida pressupõe fluência em fluxos de trabalho, normas e ferramentas que antes eram aprendidas no próprio ambiente profissional, muitos recém-chegados ficam para trás.

Isso cria uma lacuna: é preciso experiência para conseguir um emprego, e é preciso um emprego para adquirir a experiência necessária. Instituições de ensino e treinamento, como escolas e universidades, raramente são projetadas para acompanhar o ritmo das tecnologias que transformam o local de trabalho. Além disso, empregadores reduziram treinamentos internos, e algoritmos de triagem filtram currículos friamente em busca de “colaboradores com experiência comprovada”. Os primeiros degraus da escada, antes abundantes, hoje são escassos.

A IA também está reconfigurando a noção e o valor da expertise. A escassez está migrando do conhecimento estático – o que você sabe – para a capacidade dinâmica – como você resolve problemas com ferramentas, verifica resultados e aplica contexto. Empregadores valorizam cada vez mais profissionais capazes de colaborar com a IA, definindo problemas, articulando dados e modelos, verificando confiabilidade e comunicando resultados a terceiros.

Isso favorece uma combinação de competências analíticas, sociais e adaptativas – dificilmente dominadas apenas em salas de aula tradicionais. A questão deixa de ser “qual credencial você tem?” e passa a ser “o que você consegue fazer de forma consistente e como pode demonstrar isso?”. Nesse cenário, a prova vale mais que o pedigree. Portfólios, projetos, simulações e tarefas de desempenho tornam-se sinais mais fortes do que listas de cursos e diplomas convencionais do ensino médio ou superior.

Usada corretamente, a IA pode democratizar a expertise. Pode ajudar um universitário a analisar dados, um trabalhador do varejo a gerar trechos de código funcionais ou um recém-formado no ensino médio a produzir materiais de marketing em nível profissional. Ela revela o que analistas chamam de expertise latente – capacidades que credenciais tradicionais não conseguem enxergar. Se os empregadores procurarem esse tipo de evidência, mais talentos serão encontrados.

O dilema das credenciais

Empregadores lutam para ir além de diplomas e títulos acadêmicos, mas faltam alternativas confiáveis. As credenciais se multiplicam, mas o que realmente significam? E como criar um mercado de trabalho capaz de enxergar conhecimento e habilidade de fato?

A Credentials Engine identificou quase 1,1 milhão de credenciais únicas somente nos Estados Unidos, distribuídas em 18 categorias e emitidas por quatro tipos de provedores:

  • Instituições pós-secundárias, com mais de 350 mil diplomas e certificados.
  • MOOCs (cursos online abertos), com mais de 13 mil certificados de conclusão, microcredenciais e títulos online oferecidos por universidades estrangeiras.
  • Provedores não acadêmicos, com mais de 650 mil certificados de conclusão, licenças, certificações e programas de aprendizagem profissional.
  • Escolas de ensino médio, com mais de 56 mil diplomas de instituições públicas e privadas, certificados alternativos e diplomas equivalentes ao ensino médio.

O relatório enfatiza a necessidade de ampliar significativamente a transparência no mercado de credenciais para estimular a mobilidade individual e o crescimento econômico nacional. Por exemplo: como as práticas de credenciamento se sobrepõem, incluindo de que forma certificados oferecidos por instituições de ensino superior se conectam – ou equivalem – a outros certificados e diplomas? Como classificamos diferentes programas de formação de modo que reflitam corretamente o tempo necessário para concluí-los e seu valor no mercado?

Outro relatório da Credential Engine estimou que o gasto anual total de instituições educacionais, empregadores, programas federais, estados e Forças Armadas dos Estados Unidos em programas de credenciais ultrapassa US$ 2,1 trilhões [R$ 11,4 trilhões]. Esse investimento substancial evidencia a seriedade do mercado de credenciais e a necessidade de estabelecer processos mais eficientes de prestação de contas e tomada de decisão.

Esse gasto anual também levanta perguntas sobre o valor real e os resultados individuais de tais credenciais, especialmente quais delas de fato impulsionam uma carreira e geram ganhos salariais relevantes. Uma análise do Burning Glass Institute e do American Enterprise Institute mostra que cerca de 12% das credenciais resultam em aumentos salariais significativos que seus detentores não obteriam de outra forma, e apenas 18% dos credenciados provavelmente verão ganhos superiores aos de seus pares. O Burning Glass Institute desenvolveu o Career Value Index Navigator, uma ferramenta online que oferece informações sobre resultados como aumento salarial e avanço profissional referentes a praticamente todas as certificações dos Estados Unidos, além de mais de 20 mil outras credenciais não relacionadas a diplomas.

Uma infraestrutura de educação e treinamento para a era da IA

A IA não será alcançada apenas com orçamentos maiores. Uma análise resume a situação da seguinte forma: “historicamente, programas de capacitação profissional têm sido um fracasso. Menos da metade das pessoas treinadas por meio de subsídios de Assistência ao Ajuste Comercial conseguiu emprego, sem evidências de que os postos obtidos eram bem remunerados. Da mesma forma, estudos sobre treinamento de força de trabalho revelam evidências mínimas de sucesso.”

O que precisamos é de um modelo redesenhado, que trate o trabalho como principal espaço de aprendizagem, valide a capacidade com evidências concretas e ajude as pessoas a continuar subindo após o primeiro emprego. A seguir estão dez princípios de design para reinventar a infraestrutura de educação e treinamento na era da IA:

1. Criar instituições híbridas que eliminem fronteiras. Organizações que atuem de forma integrada entre educação básica e secundária, faculdades comunitárias, outros provedores e empregadores permitiriam que os alunos transitassem por um único sistema, em vez de múltiplos caminhos desconectados. Hoje, estudantes do ensino médio dos Estados Unidos já representam 21% das matrículas totais em faculdades comunitárias. Esse modelo híbrido tem sido difundido por Jobs for the Future e outras organizações, sob o conceito do “big blur”, que propõe apagar as fronteiras entre ensino médio, ensino superior, formação profissional e empregadores.

2. Tornar a aprendizagem baseada no trabalho o padrão, não a exceção. Experiências práticas remuneradas e estruturadas devem estar no centro da preparação profissional inicial. Isso inclui aprendizagem profissional jovem e adulta, co-ops [programa universitário que combina estudo e trabalho remunerado], clínicas práticas e bootcamps integrados às empresas com vias claras para contratação. Onde possível, programas de aprendizagem profissional devem prever progressão de responsabilidade e remuneração. Para funções avançadas, ampliar modelos de programas de aprendizagem integrados com diplomas, que combinam emprego, mentoria e créditos acadêmicos, permitindo que o aluno obtenha uma credencial reconhecida enquanto desenvolve domínio prático no trabalho.

3. Criar habilidades adjacentes para acelerar transições. A maioria dos trabalhadores não começa do zero. É preciso mapear o conhecimento que eles possuem e as habilidades que podem demonstrar em relação aos novos requisitos do trabalho e construir pontes de educação e treinamento para eles. Módulos de capacitação direcionados podem converter experiência prévia em competências valorizadas pelo mercado em semanas ou meses, não anos. Ajude trabalhadores iniciantes a encontrar um emprego sem exigência de diploma – ocupações como técnico em emergências médicas ou operador de usina – que funcionam como trampolim para carreiras com bons salários, estabilidade e mobilidade ascendente. Isso reduz o tempo até a competência ser adquirida e diminui custos para trabalhadores e empregadores.

4. Colocar a contratação por desempenho no centro. Substituir currículos por tarefas alinhadas ao trabalho real, como amostras de tarefas estruturadas, simulações, projetos de teste supervisionados e análises padronizadas, com apoio de IA na avaliação quando adequado. Um candidato em análise de dados, por exemplo, deve mostrar que sabe limpar dados brutos, construir um modelo básico, verificar confiabilidade e explicar vantagens e desvantagens a um público não técnico. Desempenho constrói confiança e abre espaço para talentos não tradicionais.

5. Apoio contínuo e mobilidade pós-colocação. Conseguir um emprego é um marco, não a linha de chegada. Muitos trabalhadores deslocados precisam primeiro de um “emprego estilo bote salva-vidas”, um passo estabilizador que pode se tornar estação de passagem. Orçamentos e planejamentos devem considerar o pós-contratação: coaching, grupos de pares, projetos no trabalho, bolsas para educação continuada, incentivos por aumento salarial, mecanismos que ajudam a ir do bote à escada. Programas devem ser medidos e financiados pela mobilidade, não apenas pela colocação inicial.

6. Credenciais portáteis, legíveis por máquina e com prova anexada. Toda credencial deve ser modular e facilmente integrável a sistemas de contratação. Sempre que possível, incluir evidências verificadas, como repositórios de código, dashboards, avaliações clínicas e pareceres de supervisores com níveis claros de proficiência. A T3 Innovation Network, apoiada pela Câmara de Comércio dos EUA, e a Achievement Wallet da Western Governors University são exemplos. Portabilidade permite que trabalhadores carreguem um “histórico de habilidades” entre plataformas e empregadores.

7. Sinais de qualidade e prestação de contas desde o início. Usar ferramentas baseadas em evidência, como os índices de valor das credenciais mencionadas anteriormente, para separar sinal verdadeiro de ruído. Financiamentos públicos e empresariais devem seguir provedores que demonstram valor real no mercado: colocação em primeiro emprego, ganhos salariais, progresso na carreira e retenção. Exigir transparência total nos resultados e adoção de práticas de contratação orientadas por habilidades. Ampliar a escala daquilo que funciona e corrigir o que não funciona.

8. Rede de proteção modernizada e alinhada à aprendizagem. Atualizar seguro-desemprego e benefícios associados para apoiar a requalificação rápida enquanto se busca uma posição. Implementar projetos-piloto de aprendizagem e investir em hubs regionais de trabalho e estudo, incluindo as instituições híbridas citadas acima. Esses espaços devem oferecer acesso a banda larga, ferramentas de IA, mentores e programas patrocinados por empregadores, tudo no mesmo lugar.

9. Parcerias com empregadores para redesenhar cargos de nível inicial. Empresas devem reestruturar cargos iniciais para que o aprendizado seja equivalente à produção. Esses cargos precisam incluir projetos com tempo dedicado à aprendizagem e à mentoria, com trilhas claras de promoção baseadas em competência demonstrada. Modelos de aprendizagem profissional e diplomas vinculados a esses programas oferecem a referência, enquanto RH, áreas de negócio e educadores podem coconstruir funções e resultados.

10. Infraestrutura de dados que enxerga habilidade, não apenas tempo de ocupação. Criar mapeamentos interoperáveis entre tarefas, competências e resultados de aprendizagem para que currículos, incluindo de programas de aprendizagem profissional, se alinhem a requisitos reais de trabalho. Compartilhar dados de resultados com provedores para aprimorar continuamente os caminhos formativos.

Em síntese, um modelo duradouro de educação e treinamento na era da IA conecta aprendizagem ao trabalho real, valida aquilo que as pessoas sabem fazer e continua sustentando seu crescimento após o primeiro emprego. Como defende Ryan Craig no livro Apprenticeship Nation, a aprendizagem profissional é o caminho mais claro e passível de ser ampliado para tornar esse modelo realidade.

Por que isso importa agora

A IA já está aqui e está mudando a forma como o trabalho é realizado. Isso nos leva a uma pergunta simples: ela vai apagar os primeiros degraus da escada profissional ou nos ajudar a construir novos? Podemos escolher a segunda opção combinando sinais de qualidade confiável, como um índice de valor de credenciais e ferramentas semelhantes, com contratação baseada em desempenho; ampliando programas comunitários que conectam e somam habilidades adjacentes; e financiando apoio pós-colocação que garanta que as pessoas continuem subindo após o primeiro emprego. Feito em conjunto, esse modelo orientado por habilidades deixa de ser discurso e se torna prática. Trabalhadores ganham históricos verificáveis de competências e empregadores contratam com segurança a partir de um grupo mais amplo de talentos.

As consequências são reais. Se usarmos a IA apenas para remover tarefas e reduzir equipes, a vantagem ficará concentrada. Mas se projetarmos funções de modo que a IA eleve a capacidade humana, mais pessoas poderão realizar trabalhos de impacto mais cedo. O resultado é um mercado que enxerga habilidades, um sistema de formação que valoriza o conhecimento já adquirido e uma cultura que torna visível o porquê do esforço. Assim o primeiro emprego se torna um ponto de partida melhor e transformamos a disrupção em uma escada mais justa e rápida rumo às oportunidades.

*Texto publicado originalmente na Stanford Social Innovation Review com o título “A New AI Career Ladder”.

Leia também: Em defesa do aprendizado pessoal