Repensando a escalabilidade das soluções climáticas por meio dos movimentos de base

Experiências de movimentos de base ao redor do mundo mostram como criar impacto duradouro e transformador
Arroz produzido por membros do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Maranhão.
Foto: Grassroots International

A crise ecológica exige soluções urgentes, coordenadas e de alto impacto, em um nível sem precedentes na história humana. No entanto, a filantropia frequentemente adota uma visão estreita demais sobre escalabilidade quando se trata das mudanças climáticas, concentrando-se em estratégias específicas, com o objetivo de gerar quantidade rapidamente. Em particular, doadores do setor de tecnologia muitas vezes preferem a distribuição rápida para o maior número possível de beneficiários, negligenciando métodos que capturam complexidade e desmantelam a homogeneidade.

No entanto, a escalabilidade precisa ir além da rapidez de crescimento de uma solução ou de quantas pessoas alcança – ir além dos números. E os movimentos sociais de base possuem abordagens sofisticadas para dar escala ao impacto, que garantem que uma multiplicidade de estratégias seja relevante, resiliente, adaptável e equitativa. Como os movimentos de base são grupos interconectados, liderados por aqueles mais afetados por um problema, eles deslocam poder e mudam a cultura: em vez de vincular a escalabilidade apenas a um resultado ou à fidelidade ao modelo original, os movimentos de base usam métodos para dar escala que garantem a profundidade e a durabilidade do impacto, resolvendo múltiplos desafios sociais, políticos e econômicos ao mesmo tempo.

À medida que bilhões em novos financiamentos climáticos entram em jogo, é fundamental ampliar o entendimento dos financiadores sobre escalabilidade, para que possam compreender melhor e apoiar estratégias com maior probabilidade de sucesso a longo prazo. O CLIMA Fund, uma colaboração entre quatro fundações que apoiam dezenas de milhares de grupos de base que promovem soluções de justiça climática, aprendeu muito sobre as maneiras diversas e poderosas pelas quais movimentos de base criam impacto em escala. Este se dá desde as bases populares que eles fortalecem até as alianças e coalizões que lhes permitem construir poder para conquistar mudanças em nível global.

Para valorizar a profundidade do impacto, o processo de construção de poder comunitário sustentado e a transformação de sistemas arraigados e extrativistas, podemos conceber escalabilidade como profundidade, relacionamentos, descentralização e poder.

Profundidade. Em vez de se concentrar exclusivamente em uma única estratégia que enfatiza quantidade ou velocidade de difusão, movimentos de base valorizam uma solução por seu alcance e influência. Dessa forma, estratégias de base resolvem múltiplos problemas ao mesmo tempo: não apenas reduzem emissões, mas também constroem equidade, resiliência e saúde planetária no processo. Seu trabalho não é apenas mudar os pressupostos narrativos subjacentes da sociedade, mas também transformar a realidade material de milhões de pessoas por meio de mudanças políticas ou ajuda mútua.

Tomemos, por exemplo, o Movimento Camponês de Papaye (MPP na sigla em francês), no Haiti, que há 45 anos reúne comunidades em torno de uma visão e prática de autodeterminação haitiana. Eles têm 61 mil membros que se engajam em esforços comunitários para construir resiliência climática, enquanto se conectam entre comunidades para trocar sementes crioulas, conhecimento e trabalho. Há infraestrutura comum, como uma cooperativa de poupança e crédito, cooperativas multissetoriais para armazenamento de produtos agrícolas e um banco camponês, além de uma rede de escolas de agroecologia.

A agroecologia tem o potencial de mitigar entre 390 e 490 gigatoneladas de CO₂e (equivalente a dióxido de carbono) até 2050, o mesmo que as emissões da China nesse período. Mas o trabalho do MPP vai além dos números: ao focar em uma visão holística do que as comunidades precisam para enfrentar desastres climáticos crescentes – em vez de apenas um resultado, como os 50 milhões de árvores que já plantaram em toda a ilha – o MPP está trabalhando para transformar a economia, a governança e os contratos sociais em todo o Haiti.

Relacionamentos. Relacionamentos e conectividade são a força vital da construção de movimentos. Em contraste com abordagens padronizadas, muitas soluções adaptadas localmente conseguem dar escala e gerar mudanças globais por meio de relacionamentos fortes, coordenação robusta e amplificação mútua.

Por exemplo, o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) é claro ao afirmar que o desenvolvimento e a produção de combustíveis fósseis precisam acabar se quisermos um planeta habitável. Qualquer esforço isolado de base para resistir à indústria fóssil pode fracassar, mas juntos eles estão fazendo diferença, em grande parte devido aos relacionamentos construídos dentro e entre movimentos de resistência. Construção de relacionamentos é o alicerce da formação de bases, e alianças, coalizões e redes de movimentos dão suporte a esses relacionamentos em diferentes escalas. Por exemplo, redes regionais como a Indigenous Environmental Network ou redes globais como a Oilwatch International apoiam campanhas distintas, porém coordenadas, que levam à troca essencial de conhecimento, expertise técnica e visão compartilhada.

Uma avaliação recente da resistência indígena aos combustíveis fósseis na América do Norte mostrou que vitórias em disputas sobre infraestrutura já impediram o equivalente a 12% da poluição anual dos Estados Unidos e do Canadá (779 milhões de toneladas métricas de CO₂e). Outra análise mostrou que, se esforços de resistência direta fossem financiados, eles teriam o potencial de mitigar 1.300 gigatoneladas de CO₂e até 2050, o equivalente ao carbono contido no estoque total de todas as florestas do mundo.

Descentralização. Movimentos de base aceleram a escalabilidade por meio de impacto e liderança distribuídos. A organização descentralizada é mais eficaz e resiliente porque pode responder melhor às necessidades das comunidades e ser mais flexível ao experimentar uma maior diversidade de estratégias (são “diversos demais para falhar”). Lideranças heterogêneas, autônomas, porém interconectadas, geram maior estabilidade diante de condições políticas e ecológicas incertas e em rápida evolução. Além disso, quando comunidades têm poder soberano para avançar soluções localmente relevantes, essas soluções tendem a ser mais ágeis e duráveis, porque se disseminam por redes locais de confiança.

Por exemplo, a ZIMSOFF, no Zimbábue, envolveu 12 mil pessoas por meio de Organizações de Pequenos Agricultores (SFOs, na sigla em inglês) descentralizadas. Por meio das SFOs, agricultores conseguem localizar a troca de sementes e conhecimento e, sob liderança local, coordenar seus esforços para influenciar o governo nacional. Desde 2017, quando agricultores em Murowa e Sashe começaram a estabelecer bancos de sementes, a prática se espalhou por todo o Zimbábue. Em estruturas descentralizadas, inovações locais têm maior probabilidade de serem duráveis e, portanto, maior probabilidade de se disseminarem. E como a liderança da ZIMSOFF é descentralizada, até meados de 2021 líderes tradicionais estavam apoiando as propostas dos agricultores para conservação e revitalização do uso de sementes indígenas. Líderes tradicionais estavam sediando os “dias de campo” da ZIMSOFF, bem como feiras de sementes e alimentos, para que agricultores pudessem aprender e compartilhar sementes. Graças ao forte engajamento local e aos relacionamentos consolidados, a ZIMSOFF teve poder político para influenciar formuladores de políticas em diferentes regiões, incluindo os Ministérios da Agricultura e da Saúde e a Comissão Parlamentar de Mudanças Climáticas.

Poder. Para construir uma vontade política ampla que possa promover mudanças políticas, organizar-se contra interesses corporativos arraigados ou garantir que um grupo comunitário consiga manter uma nova forma de compartilhamento de energia, é preciso haver uma organização forte para construir poder. Construir poder inclui desenvolver conhecimento, relacionamentos, ideias, visibilidade, influência e liderança. O poder coletivo é central para dar escala, especialmente em uma era em que sistemas políticos oligárquicos e autoritários se sobrepõem aos interesses da maioria.

Por exemplo, em 2018, a Save Rivers Sarawak envolveu o povo Kayan da vila de Long Liam, na Malásia, em torno da ideia de instalar um sistema de energia renovável de micro-hidrelétrica. A Save Rivers reuniu autoridades governamentais, especialistas internacionais e locais em energia, representantes da indústria e comunidades locais para esclarecer caminhos em direção à soberania energética. Isso incluiu interromper megaprojetos de hidrelétricas patrocinados pelo governo e construir sistemas de energia micro-hidrelétrica governados pela comunidade. Por meio desse processo, a vila desenvolveu sua capacidade e liderança para se organizar e se autogovernar. Desde 2019, 50 famílias – todas pessoas indígenas Kayan – agora têm uma fonte de energia renovável sustentável, acessível e mais ambientalmente segura. Elas não dependem mais de geradores a diesel poluentes, estão protegendo a zona de captação de água e estão comprometidas em manter grandes empreendimentos energéticos afastados. A vila, entre muitas apoiadas pela Save Rivers, tem a organização e o poder coletivo para identificar e mobilizar seus compromissos de proteger seus ecossistemas e seu modo de vida.

Superando noções estreitas sobre escalabilidade

Na medida em que a filantropia é cada vez mais influenciada por noções de escalabilidade inspiradas no setor de tecnologia, vale destacar como priorizar números e velocidade pode nos levar a ignorar soluções mais sistêmicas. Nem todas as tendências abaixo são inerentemente equivocadas, mas financiadores devem estar atentos para identificar onde as abordagens acima podem ampliar o enquadramento.

Velocidade em detrimento do impacto. Planos feitos às pressas frequentemente enfrentam problemas, e isso é especialmente verdadeiro para decisões que afetam as ecologias complexas do nosso planeta. “Externalidades” se acumulam quanto mais rapidamente as decisões são tomadas, e o impacto de longo prazo acaba eclipsado em favor de ganhos superficiais e de curto prazo. O desenvolvimento internacional é notoriamente conhecido por entrar apressadamente com “soluções” que raramente consideram o contexto local, como quando a Organização Mundial da Saúde borrifou DDT em partes de Bornéu para combater a malária na década de 1950. Isso desencadeou uma cadeia de reações que acabou agravando significativamente os problemas de saúde pública na região, incluindo peste silvestre e tifo.

Quantidade em detrimento da qualidade. Estratégias ou planos de difusão que não levam em conta heterogeneidade e complexidade dificilmente serão duráveis. Projetos de energia renovável em larga escala podem causar mais mal do que bem e até replicar seus predecessores de combustíveis fósseis; grandes conjuntos de painéis solares que não são de propriedade e operação comunitária podem apenas reforçar as mesmas desigualdades que minas de carvão. O Business & Human Rights Resource Centre documentou mais de 200 denúncias de violações de direitos humanos relacionadas a projetos de energia renovável nos últimos 11 anos.

Amplitude em detrimento da profundidade. Projetos de desenvolvimento internacional muitas vezes preferem uma atuação ampla e melhorias de curto prazo, em vez de mudanças nos resultados, o que pode comprometer o impacto de longo prazo. Por exemplo, o REDD+ é um mecanismo pelo qual países, principalmente no Norte Global, financiam programas para impedir a perda de florestas em países tropicais e recebem créditos pelas emissões evitadas. Defensores do REDD+, em sua busca por garantir números de hectares preservados e assegurar lucros, em grande parte ignoraram o impacto destrutivo do REDD+ sobre povos indígenas e agricultores camponeses, entre outros.

Novidade em detrimento do que é comprovado. Empreendedorismo e a busca pelo novo são mais valorizados do que tradições e formas de conhecimento antigas e diversas. Há amplas evidências de que já temos soluções alimentares, energéticas e de governança para um planeta habitável; o que falta é valorizar as cosmovisões capazes de colocá-las em prática. Por exemplo, a agricultura inteligente para o clima (CSA, na sigla em inglês) está sendo promovida como a próxima “revolução verde” por nomes como Bill Gates (que tem sido responsável por políticas e iniciativas que empobreceram profundamente o continente africano). Mas, enquanto a nova tendência da CSA é projetada para alimentar lucros corporativos e prejudicará, em última instância, a saúde do solo e as comunidades locais, a agroecologia – práticas e princípios agrícolas desenvolvidos ao longo de milênios – já alimenta 70% do planeta usando apenas 25% das terras agrícolas.

Imediatismo em detrimento da mudança sistêmica. Movimentos são frequentemente subvalorizados porque mudanças na cultura e no poder acontecem por múltiplos meios, em diferentes escalas de tempo e junto a comunidades sistematicamente marginalizadas. No entanto, transformar políticas, narrativas, cultura e estruturas provavelmente é mais impactante do que o imediatismo ou a “solução rápida” de um novo serviço ou ferramenta. Por exemplo, esquemas de captura de carbono receberam mais de US$ 5,5 bilhões (R$ 29,3 bilhões) em novos investimentos em 2021, mas essas tecnologias não são comprovadas, ainda não funcionam de forma capaz de ganhar escala e, mais importante, permitiriam a continuidade da indústria de combustíveis fósseis. A ciência é clara: precisamos interromper totalmente o uso de combustíveis fósseis para cumprir nossa meta de carbono. Ainda assim, o imediatismo dessas tecnologias é atraente demais para bilionários do setor tecnológico. Como podemos redirecionar o financiamento para estratégias que reduzam o carbono enquanto enfrentam desigualdades sistêmicas?

Atender à elite global em vez da maioria global. Muitas vezes, um foco em escalabilidade reforça estratégias dependentes de mercados globais que ampliam desigualdades e dos quais a elite global mais lucra. Projetar soluções para relativamente poucas pessoas, quando sistemas extrativistas globais estão causando tamanha devastação aos sistemas planetários, é insustentável. Por exemplo, o sistema alimentar industrializado usa 70% das terras agrícolas e 70% da água doce; causa 70% da perda de biodiversidade terrestre e 73% do desmatamento nos trópicos; mas alimenta apenas 30% do mundo, principalmente no Norte Global. As pessoas mais ricas globalmente não têm incentivo para mudar um sistema que, em geral, funciona para seus estilos de vida.

Ampliando as nossas noções de escalabilidade

Como nós, financiadores e doadores, podemos apoiar grupos de base enquanto eles continuam a dar escala ao seu trabalho essencial?

Ofereça parcerias irrestritas e de longo prazo. Financiamento flexível permite que grupos de base sejam ágeis, responsivos e autodeterminados. Investimentos do Vale do Silício raramente têm amarras restritivas, para possibilitar “inovação”. Por que financiadores não oferecem isso aos grupos que estão promovendo o trabalho mais crítico para um mundo habitável? Movimentos de base sabem melhor o que priorizar, como se organizar ou como acompanhar seu próprio sucesso.

Mude os modelos de aprendizagem e avaliação. Muitas vezes, modelos de avaliação na filantropia reforçam tendências colonialistas de controle hierárquico de recursos e suposições de superioridade. E, embora o investimento do Vale do Silício frequentemente abrace o fracasso como parte essencial do aprendizado, a filantropia não financia grupos de base em seus próprios ciclos de aprendizagem. O risco real está na falta de investimento em lideranças da linha de frente.

Apoie conectividade impulsionada pela base. Espaços para que movimentos de base se reúnam, troquem e articulem coletivamente são necessários para dar escala. Com muita frequência, financiadores se baseiam seus próprios caprichos para reunir os parceiros que apoiam; financiadores podem apoiar espaços de aprendizagem conjunta e colaboração emergente ao seguir a liderança dos próprios parceiros.

Olhe além da novidade. Financiar esforços de base que solucionam múltiplos desafios entre os principais fatores da crise climática vai muito mais longe do que um curto impulso de financiamento para um novo conjunto de tecnologias não comprovadas (que muitas vezes não entregam os benefícios prometidos). Movimentos de base são ágeis e inovadores na forma como respondem a fatores globais e impactos locais, mas financiadores não estão ouvindo.

Garanta controle comunitário. Muitas vezes, financiadores apoiam a replicação de soluções por meio de transplantação, mas sem oferecer muito apoio para adaptar essas soluções a um território. Estratégias escaláveis são aquelas que pertencem às comunidades locais, de modo que possam apoiar a aplicação dessas estratégias em condições mutáveis e complexas.

Esteja pronto para mudar o enquadramento do problema. Ampliar a escalabilidade para incluir profundidade, poder e transformação exige flexibilidade na forma como financiadores enquadram o problema. Nenhum desafio existe de maneira isolada e, muitas vezes, desafios ecológicos são sustentados por fatores sociais complexos. Aprender com movimentos de base e apoiá-los provavelmente significará expandir e tornar mais complexas nossas estratégias de financiamento, além de desenvolver nossa capacidade de respeitar cosmovisões diferentes das nossas.

Invista em escala geracional. Movimentos de base trabalham para deslocar o poder e mudar a cultura ao longo do tempo. Mudança sistêmica é não linear e frequentemente exige tempo (pense no movimento dos direitos civis). Humanos podem criar muito mais valor investindo no futuro que desejamos para daqui a cem anos como no amanhã imediato. Financiadores tendem a ter visão estreita centrada em métricas de impacto de curto prazo, em vez de apoiar aqueles que têm visões de mudança multigeracionais.

Ganhar escala envolve muito mais do que o quão rápido algo pode crescer ou quantas pessoas uma solução alcança. Aprender com movimentos de base e apoiá-los provavelmente significará expandir e tornar mais complexas nossas estratégias de financiamento, além de desenvolver nossa capacidade de respeitar cosmovisões diferentes das nossas. Mas, ao ampliar nossa visão sobre escalabilidade, financiadores podem compreender melhor e apoiar estratégias com maior probabilidade de sucesso, a longo prazo, para resfriar o planeta e promover equidade.

Leia também: Como investir em talentos para a ação climática

*Agradecimentos a Solomé Lemma, Cindy del Rosario-Tapan, Luam Kidane, Hannah Twomey, Kim Kaletsky, Alex Grossman, Gargi Sharma, Peter Kostishack, Theo Gibbs e Christina Schiavoni pelos comentários substanciais neste artigo, que o melhoraram enormemente.

*Este artigo foi publicado originalmente na Stanford Social Innovation Review com o título “Rethinking Scale in Climate Solutions”.

Autor(a)

Lindley Mease

Lindley Mease é diretora do CLIMA Fund, que financia movimentos de justiça climática liderados por indígenas, mulheres, camponeses e jovens em todo o mundo. Também é cofundadora e diretora da Blue Heart, que mobiliza doadores millennials para apoiar organizações sociais nos Estados Unidos.