Liderança orientada para o futuro

Propósito, valores e humildade serão as maiores forças do setor social
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À medida que o mundo muda, nós também precisamos mudar. A humanidade enfrenta a instabilidade climática, o avanço do autoritarismo e possíveis novas formas de vida artificial. Líderes do setor social se deparam com governos hostis, um ambiente de financiamento incerto e uma força de trabalho exausta. Liderar continua sendo o ato de convidar outras pessoas a participar de uma história comum, um exercício que deve se enraizar na ética e na decência humana básica. Mas essa liderança também precisa evoluir diante desse contexto turbulento.

Neste ensaio, compartilhamos lições sobre liderança neste momento, extraídas de diálogos intersetoriais que organizamos entre lideranças da filantropia, organizações sem fins lucrativos, governo e setor privado. Identificamos temas claros que oferecem um guia para uma liderança preparada para o futuro: aquela que sustenta o indivíduo, serve à missão e responde ao momento presente. Embora o caminho adiante não seja fácil, ele pode ser pleno de propósito. As lideranças que prosperarão talvez não sejam as mais barulhentas ou carismáticas, mas sim aquelas firmes, inspiradoras e comprometidas em evoluir junto com o mundo que buscam transformar.

1. Retornar ao propósito

Fay Twersky, presidente da Arthur Blank Foundation, oferece um mantra básico para o trabalho de transformação social: comece pelo propósito. Como tantas outras afirmações aparentemente autoevidentes, essas palavras sábias podem se perder no cotidiano profissional. Não podemos permitir que isso aconteça. O propósito é a nossa força motriz, não apenas uma frase em um documento estratégico esquecido em uma prateleira.

Por definição, os agentes de mudança precisam começar pelo propósito. No entanto, essa ideia ganhou um novo significado em nosso tempo. Muitos líderes da transformação social construíram suas carreiras com base em crenças fundamentais: que as mudanças climáticas são perigosas; que o racismo é real; que é bom se importar com os mais pobres entre nós; e que os imigrantes tornam um país mais forte. Em um momento em que essas suposições estão sendo abertamente rejeitadas, muitos desses líderes se veem perdidos. Eles – nós – passamos décadas sustentando essas ideias como base moral e estratégica. O que fazer agora?

Retornar ao propósito. Pode parecer absurdo ter que reafirmar a importância da decência e da compaixão, dos fatos e da razão. Mas fazê-lo nos oferece uma oportunidade estratégica de redefinir nossas conversas com aliados: financiadores, beneficiários, parceiros. Muitos deles também estão desorientados. Convidá-los de volta a um propósito comum é um presente.

Esse momento de reafirmação oferece a chance de revigorar nosso próprio espírito. Muitos de nós, que estamos há anos mergulhados nesse trabalho, perdemos a paixão que nos levou ao setor social em primeiro lugar.

Por exemplo, quando uma organização local de defesa dos direitos de imigrantes enfrentou hostilidade política, sua diretora reorganizou a comunicação da entidade em torno da crença fundadora: “Toda família merece segurança e dignidade.” Destacar esse propósito compartilhado em reuniões de funcionários e atualizações para financiadores ajudou a equipe a se reenergizar e permitiu que aliados se reconectassem à causa. Ao nos ancorarmos no propósito novamente, podemos injetar nova energia em nosso trabalho e em nossas vidas.

2. Liderar a si mesmo

Os líderes mais eficazes são aqueles alinhados no sentido de que sua ética interna corresponde ao seu comportamento externo, e de que suas organizações refletem essa coerência. Centrados e consistentes, tais líderes inspiram confiança nas pessoas ao seu redor e cultivam estabilidade por meio de uma rede de relacionamentos construída com cuidado ao longo do tempo. Ao inspirar e capacitar outros, eles também delegam poder, ampliando o impacto coletivo.

No entanto, alcançar esse alinhamento exige um trabalho voltado para dentro. Liderar é ao mesmo tempo revigorante e exaustivo. Em tempos de caos e estresse, evitar o esgotamento torna-se uma tarefa de liderança em si mesma. Os líderes mais resilientes priorizam o bem-estar pessoal como meio para gerar impacto, e isso requer investimento, desde hábitos físicos (exercícios físicos, sono) e clareza mental (meditação, mentoria, oração) até estruturas organizacionais saudáveis (limites, pausas, ritmo sustentável).

Para manter o foco na missão, é preciso também incorporá-la. É necessário proteger o corpo e o espírito para poder servir aos outros. Há uma razão pela qual comissários de bordo têm seu próprio mantra: “coloque sua máscara de oxigênio antes de ajudar os outros”. Embora possa parecer egoísta concentrar-se em si mesmo antes dos demais, é, na verdade, um ato de humildade reconhecer que líderes não podem carregar peso infinito. É também uma oportunidade de apoiar aqueles ao nosso redor que compartilham desses fardos, de encarar juntos a tarefa da liderança. Imagine a CEO de uma empresa de triplo impacto que decide instituir “sextas sem reuniões” para si e sua equipe. Essa decisão exemplifica limites saudáveis, cria espaço para o pensamento estratégico e melhora o moral em toda a organização.

3. Ampliar a visão

É natural pensar em estratégia a partir da nossa experiência imediata, focando naquilo que é próximo, urgente e familiar. No entanto, o trabalho de transformação social vai muito além da lista de tarefas do dia ou do plano para o próximo trimestre. Para mudar o mundo, não podemos nos refugiar no conhecido.

Não sabemos como a inteligência artificial afetará nosso trabalho, quando um evento climático extremo  impactará nossa comunidade ou de que forma os líderes políticos transformarão a própria natureza das sociedades. Mas, ao nos recolhermos ao que é familiar, limitamos nossa capacidade de enxergar além. Se o mundo fosse permanecer o mesmo, não haveria problema em moldar nosso trabalho com base no que já conhecemos. Os últimos anos deixaram claro: o mundo não permanecerá o mesmo.

Líderes precisam expandir sua mente e considerar não apenas objetivos imediatos, mas também trajetórias de longo prazo (tempo), diferentes regiões (espaço) e sistemas em múltiplas camadas (escala).

Tempo: Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, quase todos os indicadores da economia humana entraram em sobrecarga, o que alguns chamam de “Grande Aceleração.” Sentimos isso em nosso cotidiano. Em vez de nos deixarmos prender pelo ciclo diário de notícias ou pela mais recente atualização de software, podemos ampliar a perspectiva e considerar o impacto de longo prazo do nosso trabalho sobre as próximas gerações, ajustando nossas ações de acordo.

Espaço: Todos vivemos em lugares inseridos em camadas de conexão – local, estadual, nacional, planetária. Neste mundo interconectado, não existe isolamento geográfico: as emissões de carbono em Omaha afetam os padrões de chuva em Déli. À medida que se torna cada vez mais evidente que os sistemas naturais terão voz na forma como gerimos nossos sistemas humanos, mesmo líderes focados em comunidades locais precisam manter uma referência constante ao planeta inteiro que chamamos de lar.

Escala: Enquanto alguns problemas resultam da soma de histórias individuais, como a falta de moradia, outros refletem processos exponenciais, como as pandemias, ou sistemas humanos, como a reforma da justiça criminal. Em cada caso, à medida que as partes afetam o todo e o todo influencia as partes, líderes precisam saber alternar entre o particular e o geral. Às vezes isso exige uma aposta ampla; em outras, um foco profundo em uma pessoa ou comunidade específica.

Por exemplo, considere as organizações de segurança alimentar que, além de gerenciar bancos de alimentos, também atuam na defesa de políticas públicas para o Programa de Assistência Nutricional Suplementar, uma iniciativa de combate à fome do governo dos Estados Unidos. Ao ampliar sua visão do atendimento imediato à transformação sistêmica, elas conseguiram gerar um impacto mais duradouro para famílias em situação de vulnerabilidade.

4. Você não é a sua organização

Organizações podem acabar sendo identificadas com seus líderes. Um investidor curioso sobre a estratégia da Apple pode perguntar: “O que Tim Cook vai fazer?” Em uma charge política, Xi Jinping pode aparecer como símbolo da China. Por outro lado, as identidades dos líderes também podem se confundir com as de suas organizações, especialmente no setor social, onde a devoção às missões institucionais acrescenta uma dimensão moral ao trabalho e fornece motivação pessoal.

Esse emaranhado pode se tornar uma armadilha. Todos nós já sentimos isso em nosso trabalho. Um de nós (Jacob) viveu isso de forma intensa ao deixar o cargo de diretor executivo da GuideStar durante a fusão com a Foundation Center, que resultou na criação da Candid. A outra (Sara), que é coach e CEO de uma empresa de coaching, é frequentemente vista como a personificação da estratégia da organização, goste disso ou não.

Cada um de nós precisa encontrar maneiras de se alinhar ao próprio trabalho sem se confundir com ele. O trabalho no setor social é uma expressão profissional dos valores centrais das pessoas que o realizam. Para quem dedicou a vida profissional a uma missão pessoal, pode ser muito fácil inconscientemente equiparar a própria identidade à da organização. Isso nos limita enquanto seres humanos: somos muito mais do que nossos cargos. Além disso, cria barreiras reais às mudanças organizacionais necessárias para que as missões sejam alcançadas. Considere, por exemplo, o fundador de uma instituição filantrópica voltada à saúde mental que, após 15 anos, decidiu deixar o cargo e escolheu se concentrar em celebrar a continuidade da equipe e do conselho, em vez de colocar sua saída no centro das atenções. Essa atitude demonstra que a missão é coletiva, e não vinculada a um único indivíduo.

5. A compaixão é uma vantagem competitiva

Quando as apostas são altas, é fácil recorrer à urgência e à pressão. Em situações de conflito, torna-se simples demonizar os outros. No entanto, os líderes mais fortes são aqueles que fazem uma pausa para cultivar paciência, empatia e espaço psicológico – para si mesmos, para suas equipes e para o mundo ao redor.

Isso vai muito além das chamadas soft skills [habilidades comportamentais e socioemocionais]. Trata-se de estratégia. A compaixão amplia a capacidade de resolver problemas, reduz a reatividade e constrói confiança. Líderes que permanecem calmos e curiosos diante da volatilidade não apenas tomam decisões melhores, como também ajudam os outros a fazer o mesmo. Evidências da teoria dos jogos mostram que as estratégias mais eficazes no longo prazo se baseiam na esperança e no perdão.

Por isso, em sua melhor forma, o setor social é a própria institucionalização da compaixão. Longe de ser uma fraqueza, ela é nossa maior força. Durante uma crise orçamentária, por exemplo, o diretor de um departamento municipal de saúde pode promover sessões de escuta com a equipe antes de realizar cortes; uma abordagem compassiva pode revelar soluções criativas e preservar a confiança, mesmo em tempos difíceis.

Tornemo-nos líderes preparados para o futuro: sustentando a nós mesmos como indivíduos, servindo às missões das nossas organizações e respondendo com coragem e humanidade a este momento.

*Artigo publicado originalmente na Stanford Social Innovation Review com o título “Future-Oriented Leadership”.