China, Hong Kong e Coreia do Sul vêm se firmando como referência global no uso da inteligência artificial (IA) em políticas públicas voltadas a áreas sensíveis como educação e cultura. Com o propósito de conhecer in loco essas experiências, a Fundação Itaú e a InvestSP – Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade organizaram a Missão Ásia – uma imersão presencial para mapear como escolas, museus, bibliotecas e outros equipamentos educacionais e culturais desses países estão incorporando a IA aos seus sistemas. A viagem reuniu representantes do governo, fundações, organizações do terceiro setor, especialistas e artistas brasileiros.
Além das visitas a instituições culturais e educacionais, a programação incluiu encontros com empresas líderes em tecnologia – como Alibaba, Tencent, ByteDance, Baidu, iFlytek e Naver – e centros de pesquisa aplicada, entre eles a Korea Digital Education Frontiers Association (KEFA). O objetivo foi mais do que observar soluções técnicas: buscava-se compreender como políticas públicas orientadas por IA podem gerar inovação com impacto social, respeitando contextos locais, valores éticos e compromissos com o desenvolvimento sustentável.
Um dos aspectos mais relevantes da viagem, que aconteceu em novembro de 2024, foi a confluência de gestores das áreas de educação e cultura – pilares complementares na formação humana e na construção de políticas públicas de longo prazo. A avaliação é de Marilia Marton, secretária da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo. Ela destaca ter conhecido iniciativas inspiradoras no campo da criatividade, especialmente na China, como o uso de tecnologias digitais para mapear e integrar bibliotecas, ampliando o acesso e dando visibilidade à produção editorial local.
“Uma das coisas mais legais que vimos foi como eles trabalham a conexão entre os equipamentos culturais voltados à leitura, como as bibliotecas”, conta Marton. A constatação levou-a a traçar paralelos com o contexto paulista, que dispõe do Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas de São Paulo (SisEB), um dos mais antigos do país. “Isso ganha ainda mais relevância agora, num momento em que discutimos tanto a questão dos direitos autorais e como tudo isso pode ser trabalhado de forma conjunta.”
“Tecnologias não são soluções mágicas para os problemas da educação – ou de qualquer outra área –, mas sim recursos complementares, capazes de potencializar o trabalho sério e comprometido que já vem sendo feito por professores, gestores, secretários e outros profissionais”
Para Marton, a experiência na Ásia oferece referências concretas para a formulação de políticas públicas. Segundo a secretária, este é um momento estratégico de revisão e criação de novos marcos para os equipamentos culturais, incluindo tanto o SisEB como o Sistema Estadual de Museus (SISEM-SP). A proposta é refletir sobre como um sistema digital inteligente pode ser desenvolvido e adaptado às especificidades do contexto paulista. “As experiências internacionais estão servindo muito de base para a construção de dois chamamentos públicos que o estado de São Paulo deve soltar nos próximos meses”, anuncia.
Marton também ressalta outras vivências significativas durante a missão, como o emprego de telas interativas em museus para estimular novas formas de engajamento entre o artista, a obra e o visitante. “As telas interativas aproximam o público das obras, promovendo experiências em que o artista ou a própria criação ganham vida. É uma forma de despertar o interesse do público e criar novas conexões com essas produções artísticas”, afirma. Um exemplo especialmente impactante, segundo a secretária, foi o Samsung Innovation Museum (SIM), na Coreia do Sul, que combina inovação tecnológica com preservação cultural. A instituição faz uso de recursos digitais para viabilizar a visualização em 360° de peças delicadas, como pergaminhos históricos que não podem ser tocados, ampliando o acesso da população a acervos valiosos.
Fabrício Noronha, secretário da Cultura do Espírito Santo, destaca a diversidade e a qualidade das experiências observadas durante a missão, com ênfase em iniciativas voltadas à digitalização de acervos e à organização de grandes coleções – desde pinturas e objetos até documentos históricos –, apoiadas por tecnologias avançadas. Segundo ele, a visita à China reforçou a compreensão da cultura como um “ativo estratégico de soberania nacional”. Noronha enfatiza a importância desse ponto, já que o Brasil ainda carece de políticas estruturadas de preservação. “Foi interessante ver como a China se preocupa com isso, valorizando a defesa e a preservação da própria história para as novas gerações. Eles estão bastante avançados nesse aspecto, usando tecnologias e inteligência artificial para esse fim.” Para Noronha, essas experiências inspiram não apenas do ponto de vista direto do fazer cultural, mas também ampliam a perspectiva para um contexto maior: a construção de uma estratégia de desenvolvimento baseada na economia criativa.
Sobre a Coreia do Sul, Fabrício Noronha ressalta o papel estratégico atribuído à cultura como motor de desenvolvimento nacional, com investimentos significativos na música, no cinema e nas indústrias ligadas ao entretenimento. “Isso mostra uma pulsão cultural muito forte. A partir do ponto de vista da nossa matéria-prima cultural e artística, também podemos avançar muito nesse campo.”
Marilia Marton também percebe esse movimento. Segundo ela, a China tem se utilizado muito da inteligência artificial para aproximar cultura da população. O país reconheceu e assumiu o desafio de oferecer acesso à cultura e à educação para mais de 1 bilhão de habitantes, em um cenário marcado por fortes desigualdades regionais, diz. A IA tem sido usada, de acordo com a secretária, para “criar capilaridade” em regiões onde faltam especialistas e recursos materiais. Ela estabelece uma analogia com a realidade brasileira: “É como se, na cidade de São Paulo, eu tivesse uma gama de médicos disponíveis, e quando vou para o sertão nordestino, nem todo médico se dispõe a ir até lá. Com cultura e educação é a mesma coisa. Os grandes equipamentos estão nos centros das cidades. Como fazer com que pessoas que estão longe consigam ter as mesmas oportunidades se não têm o mesmo acesso? Esse é o grande desafio.”
Parte da eficácia da experiência chinesa está na forma como o país identifica suas limitações. “A China reconhece seus problemas. Quando ela reconhece, ela mensura. E quando mensura, consegue criar estratégias para enfrentá-los”, diz Marton. Para a secretária paulista, o Brasil ainda precisa dar esse passo: enxergar com clareza os próprios desafios. “É preciso entender quais são os nossos problemas, reconhecer esses problemas, mensurá-los – e fazer isso de uma forma que não os ideologize, porque essas questões estão além das ideologias.”
A continuidade e outros desafios
Durante a missão asiática, Fabrício Noronha ficou muito bem impressionado ao constatar como os países visitados, em especial a China, conseguem alinhar diferentes atores em uma mesma direção, com um horizonte claro de desenvolvimento econômico, social e científico. No caso chinês, trata-se de uma estratégia integrada de desenvolvimento que o país vem conduzindo ao longo das últimas décadas, articulando governo, setor privado e universidades em torno de um projeto nacional de longo prazo. “Isso passa por um plano de posicionar talentos nas principais universidades do mundo, organizar o setor privado em torno de metas conjuntas e fazer investimentos em infraestrutura e educação”, diz Noronha.
Ao refletir sobre a possibilidade de implementar ações similares na realidade brasileira, Noronha chama atenção para um obstáculo persistente: a ausência de continuidade. “A cada troca de governo, muitas vezes se espera que tudo recomece, que se mude o nome das iniciativas, que a roda seja reinventada a cada quatro anos. Ficamos presos nesse ciclo”, aponta. Ele não defende que o Brasil copie modelos externos, mas avalia que há lições importantes sobre a necessidade de coordenação estratégica e de persistência institucional. Enquanto a China soma pelo menos duas décadas de construção consistente nessa área, o Brasil possui ativos culturais e criativos únicos no mundo – que, se articulados em uma estratégia de longo prazo, poderiam garantir ao país um papel relevante no cenário global emergente.
Noronha também ressalta especialmente a criatividade como uma marca distintiva do Brasil: a diversidade cultural, a riqueza dos territórios e modos de fazer, a força da música, do cinema e da linguagem popular. Tudo isso, segundo ele, já projeta o país como “um lugar da invenção”. “Esse é um superativo. As ferramentas estão disponíveis, mas, para funcionarem, precisamos de mentes criativas por trás delas.”
“Cada vez mais, vamos precisar ter cultura, criatividade, conhecimento e vivência pra conseguir criar conteúdos que sejam realmente inovadores ou mais robustos. Porque quem continuar fazendo as mesmas perguntas terá sempre as mesmas respostas”
A experiência na Ásia inspirou o secretário a pensar no que seria possível construir no Brasil a partir de um modelo de governança estratégica. Um modelo em que o diferencial esteja na capacidade de desenvolver um ecossistema criativo e regulado, com visão de futuro, capaz de aproveitar ao máximo o potencial já existente. Assim, imaginar o futuro do Brasil nesse contexto, segundo Noronha, exige não apenas visão estratégica, mas também marcos legais bem definidos. É necessário acreditar nesse potencial e regulamentá-lo com políticas que protejam a propriedade intelectual, os direitos autorais e estabeleçam um ambiente de segurança jurídica tanto para criadores como para investidores. Ele alerta, porém, que a inteligência artificial, como toda inovação, traz riscos importantes – sobretudo em um cenário ainda carente de regulamentação. “A ausência de regulamentação no Brasil é uma questão séria. Ainda carecemos de instrumentos legais que nos protejam em diversas frentes, inclusive no que diz respeito ao direito autoral, que é profundamente ligado ao fazer artístico.”
Noronha relata ter visitado, por exemplo, experiências de uso da IA na produção audiovisual. O que hoje aparece nas plataformas como ferramentas automáticas para criação de vídeos curtos, afirma, é apenas a ponta do iceberg. “Durante a missão, vimos empresas que oferecem ferramentas gratuitas para gerar vídeos de 15 segundos. Mas por trás desses serviços estão contratos com grandes produtoras de cinema de diferentes partes do mundo.” Segundo ele, muitas dessas produtoras estão redirecionando recursos antes destinados à construção de infraestrutura física de filmagem para o desenvolvimento de produções diretamente com plataformas de IA. “Isso nos aponta para uma realidade em que essas ferramentas estarão cada vez mais presentes, não apenas na criação de textos, como já vemos com o ChatGPT, mas também em aplicações criativas mais amplas, como áudio e vídeo.”
Professores e algoritmos: o futuro do ensino público já começou
A aplicação da IA como ferramenta facilitadora de processos educacionais já tem sido colocada em prática no Brasil. Desde fevereiro de 2025, cerca de 6 milhões de redações de estudantes da rede estadual de São Paulo foram corrigidas com apoio de IA. A tecnologia, baseada em uma versão do ChatGPT, propõe correções automáticas, que os professores podem revisar, complementar e comentar. “O estudante recebe uma devolutiva e pode aprimorar sua escrita”, explica Daniel Barros, diretor pedagógico da Secretaria da Educação paulista. Essa iniciativa abrange todas as turmas do 6º ano do ensino fundamental à 3ª série do ensino médio.
Além da correção de redações, o estado tem utilizado IA para a produção de tarefas de casa personalizadas. Quando um professor registra no diário de classe uma aula específica – por exemplo, sobre a Revolução Francesa –, o sistema envia automaticamente ao estudante uma tarefa relacionada, por meio do aplicativo Sala do Futuro. Alunos do 8º ano e da 2ª série do ensino médio também recebem questões discursivas, numa nova proposta da secretaria, que são corrigidas com auxílio da IA.
O secretário da Educação Feder comenta que a correção de questões discursivas nas tarefas e lições de casa é um desafio recorrente. Ele observa que o ganho cognitivo não é o mesmo quando o aluno responde apenas a questões de múltipla escolha. A escrita exige que o estudante formule ideias, organize o pensamento e se esforce mais – algo fundamental para sua formação. Por outro lado, corrigir essas respostas demanda muito tempo dos professores – e, segundo o secretário, esse esforço nem sempre representa o melhor uso de seu tempo. “O professor agrega mais valor quando está ensinando, explicando, estimulando o aluno, interagindo com ele. Corrigir questões é uma tarefa mais automática, que, se possível, deveria ser retirada da rotina do professor. Por isso, estamos preparando a inteligência artificial para conseguir corrigir as respostas dos alunos. Isso já está funcionando bem na redação, e agora queremos expandir para as questões abertas das tarefas.”
Outra frente recente de aplicação da IA tem sido o apoio direto à atuação pedagógica dos professores. De acordo com Daniel Barros, a rede estadual começou a utilizar IA para gerar listas de exercícios que preparam os alunos para as avaliações padronizadas – provas aplicadas em larga escala com o objetivo de aferir o desempenho dos estudantes em relação aos conteúdos curriculares e comparar os resultados entre diferentes escolas e regiões. Essas listas vêm acompanhadas de um passo a passo para orientar os professores na correção. Em um exercício de matemática, por exemplo, em que o aluno deve identificar qual imagem planificada corresponde a uma pirâmide, a IA oferece, além da resposta correta, uma sequência de orientações didáticas para que o professor possa corrigir o aluno de maneira planejada e eficaz: mostrar os tipos diferentes de pirâmide para o estudante, depois explicar o que é uma imagem planificada e assim por diante. “A gente, o time, produz as questões e a IA sugere uma resolução com um passo a passo, orientando o professor sobre como explicar a questão aos poucos para o estudante. Essa é uma aplicação mais recente que temos feito de inteligência artificial e estamos preparando para o segundo semestre de 2025.”
No Espírito Santo, a adoção da IA na educação pública também tem avançado. “Desde 2019 usamos inteligência artificial com fins pedagógicos, especialmente na correção de redações, bem antes da popularização do ChatGPT e de outras ferramentas semelhantes”, explica Vitor de Angelo, secretário estadual de Educação. Ele cita ainda o uso da tecnologia em processos administrativos – como prestação de contas, conferência de documentos e gestão de editais – e acrescenta que o estado já iniciou discussões para aplicar IA também na correção automatizada de atividades estruturadas. Segundo De Angelo, “a expectativa é que esses dados alimentem a produção de materiais de reforço, voltados às necessidades específicas dos estudantes, a partir dos resultados que essas avaliações indicarem”, afirma.
A formação docente segue como peça-chave na implementação dessas tecnologias. “Capacitamos os consultores pedagógicos especialistas em língua portuguesa, que, por sua vez, replicam as formações com os professores em suas diretorias de ensino”, completa Barros.
Com base nas experiências internacionais e nos primeiros passos dados no Brasil, os gestores acreditam que o uso da IA na educação pode contribuir significativamente para personalizar o aprendizado e apoiar o trabalho dos educadores. O que os exemplos de São Paulo e Espírito Santo começam a indicar é que, quando bem aplicada, a IA pode se tornar mais do que uma inovação técnica: pode ser uma aliada estratégica para recuperar um bem precioso e escasso na escola pública brasileira – o tempo do professor. E quando o tempo docente vale mais, a educação como um todo só tem a ganhar.
Ia como apoio, não protagonismo
Durante a missão internacional, os gestores brasileiros também conheceram experiências de aplicação da inteligência artificial à educação. Renato Feder, secretário da Educação do Estado de São Paulo, identificou um ponto essencial: nas escolas visitadas, a tecnologia exercia um papel de apoio, e não de protagonismo. “Visitamos escolas muito boas, de alta qualidade, e o foco não era na tecnologia. O que vimos foi o básico bem-feito: boas aulas, professores muito dedicados, muito compenetrados, alunos também muito comprometidos.” Segundo ele, chamou atenção a forte “cultura de estudo” e a “competitividade” pelo sucesso acadêmico. Embora houvesse aulas de robótica e uso pontual de computadores, predominavam salas de aula convencionais – com carteiras tradicionais e alguns recursos digitais. Não se tratava, como talvez se imaginasse, de “escolas do futuro”, com robôs e tecnologias inteligentes por todos os lados.
O contraste ficou ainda mais evidente nas visitas às empresas de tecnologia. Em gigantes como iFlytek, Alibaba e ByteDance, a comitiva brasileira teve contato com soluções avançadas em IA, como drones e computadores de alto desempenho. Para Feder, são dois campos distintos: de um lado, o setor privado, movido por consumidores e pela concorrência, avançando em ritmo acelerado; de outro, o setor público, lidando com prioridades diferentes e decisões mais lentas. “O que vimos nas empresas ainda não chegou com a mesma velocidade às salas de aula.”
Daniel Barros, diretor pedagógico da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, compartilha da mesma visão. Ele relata que, durante a missão, a comitiva conheceu diversas soluções que combinam robótica com um pouco de inteligência artificial. Em sua percepção, porém, a maioria dessas propostas dizia mais respeito à robótica do que propriamente à aplicação de IA na educação. “Nos deparamos com propostas que, sinceramente, soavam como ‘IA pela IA’, ou seja, tecnologia pela tecnologia, sem um propósito pedagógico claro.” Barros cita, como exemplo, o uso de quadros inteligentes: dispositivos nos quais o professor escreve algo e a IA gera uma imagem correspondente. “À primeira vista, parece algo supertecnológico, impressionante até. Mas, na prática, é o tipo de solução muito difícil de implementar em uma rede do tamanho da nossa. Exige um investimento alto em hardware, em software e, além disso, um investimento robusto em formação dos professores para que saibam de fato usar aquele dispositivo.” Para o diretor pedagógico paulista, o impacto desse tipo de ferramenta sobre a aprendizagem tende a ser limitado. “Soluções que envolvem hardware caro – sejam robôs complexos, sejam telas inteligentes com IA acoplada – parecem mais uma forma de florear a experiência educacional do que como um investimento com bom custo-benefício.”
Por isso Barros destaca que um dos principais aprendizados da viagem foi observar como as redes públicas asiáticas utilizam a tecnologia para potencializar o trabalho dos professores. “Em Xangai, vimos um esforço grande para construir soluções com IA que orientem os docentes sobre que tipo de tarefa ou conteúdo aplicar, de acordo com o nível dos estudantes”, relata. Iniciativas semelhantes foram vistas na Coreia do Sul, com planos de aula ajustados ao estágio de aprendizagem de cada aluno. Essas estratégias, segundo Barros, dialogam com uma cultura já consolidada de estudo individual nesses países. “O estudo autônomo pode ser muito aprimorado com o uso da IA, que permite gerar conteúdos e exercícios sob medida, mantendo o aluno em sua zona proximal de desenvolvimento e favorecendo que avance no próprio ritmo.” Para ele, o ponto mais interessante é que a IA está a serviço dos professores. “Não se trata de substituir o trabalho docente, mas de fortalecer sua capacidade de oferecer o melhor conteúdo possível para cada estudante.”
Soluções administrativas: IA para desburocratizar e facilitar acesso à cultura
Enquanto os debates sobre inteligência artificial tendem a se concentrar em dilemas éticos e impactos futuros, gestores públicos já estão explorando caminhos práticos e imediatos para aplicar a tecnologia onde ela pode gerar ganhos concretos – como na desburocratização da máquina pública. A automação de processos repetitivos, especialmente os ligados à gestão administrativa, tem sido uma das frentes mais promissoras.
Para Marilia Marton, secretária da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo, um dos maiores potenciais da IA está justamente em transformar processos burocráticos, liberando tempo e energia para o que realmente importa. “É imprescindível pensar em como mecanizar nossas burocracias”, afirma, citando áreas como análise de editais e a prestação de contas, e a melhoria da eficiência nas entregas internas da secretaria. Conforme Marton, a pasta já investe em treinamentos para que sistemas inteligentes assumam essas tarefas administrativas, com o objetivo de aumentar a agilidade e a precisão. Porém, ela também aponta que o uso da IA deve ser tratado com cautela: a inteligência artificial ainda opera com base em dados humanos – e o grande desafio será garantir que quem desenvolve esses sistemas tenha cultura, criatividade e conhecimento profundos. “Cada vez mais, vamos precisar ter cultura, criatividade, conhecimento e vivência pra conseguir criar conteúdos que sejam realmente inovadores ou mais robustos. Porque quem continuar fazendo as mesmas perguntas terá sempre as mesmas respostas”, afirma.
No Espírito Santo, o movimento segue na mesma direção. O secretário estadual da Cultura Fabrício Noronha destaca que o governo estadual vem capacitando equipes para incorporar a IA nas rotinas internas da gestão pública e já experimenta aplicações voltadas diretamente para os cidadãos. No programa de economia criativa, por exemplo, a tecnologia é usada para personalizar a experiência dos usuários: com base em cursos previamente realizados, a IA recomenda novos conteúdos e materiais de estudo, aprofundando o aprendizado de forma contínua. “É uma maneira de integrar inteligência artificial e educação, oferecendo respostas mais eficazes às demandas individuais da população”, argumenta.
Ao se concentrar na reorganização de sistemas administrativos e no aprimoramento do atendimento, essas iniciativas mostram como a IA pode – antes de revolucionar – resolver. E, nesse percurso, tornam a gestão pública mais inteligente não apenas pelos algoritmos, mas pelas escolhas humanas que os orientam.
Riscos e preocupações
O uso da inteligência artificial na educação ainda desperta preocupações legítimas, especialmente em relação à intensificação da vigilância e violação da privacidade. No entanto, o foco está em otimizar a rotina dos docentes. “Eu acho que quando os professores, os profissionais da rede, percebem que a IA lhes permite ganhar produtividade, isso é bem recebido de modo geral”, afirma Daniel Barros. Ele cita pesquisas recentes, como uma conduzida pela Nova Escola, que revelam que uma ampla maioria de professores já utiliza IA para elaborar planos de aula e atividades pedagógicas. “Ela tem ajudado nossos professores a criar atividades, desenvolver propostas para sala de aula que engajam os estudantes, a montar sugestões de planos de aula. E tudo isso tem acontecido de forma bastante orgânica.”
O principal desafio no uso de inteligência artificial na educação está nas aplicações mais sensíveis, como a correção de provas com peso decisivo. Segundo Barros, ainda há receio por parte dos educadores quanto ao uso da IA em avaliações que impactam diretamente a trajetória do estudante. No caso de São Paulo, as redações corrigidas por IA não têm valor classificatório, ou seja, não valem nota nem definem o desempenho do aluno. Mas esse cenário pode mudar. “O próprio ministro da Educação comentou que espera que as redações do Enem possam ser corrigidas por IA, então a gente também espera poder corrigir questões dissertativas numa prova por IA. Talvez não estejamos tão longe disso, mas isso gera preocupação.”
Experiências internacionais têm ajudado a amadurecer esse debate. Em diálogo com representantes da Secretaria da Educação da Flórida, a equipe paulista soube que a IA já é utilizada na correção de redações, mas não de questões dissertativas – por entenderem que isso abre margem para questionamentos, especialmente quando os resultados têm impacto direto no acesso a instituições de ensino concorridas ou na bonificação de professores. Outra preocupação recorrente entre os educadores, segundo Barros, é o uso da IA com fins de vigilância, isto é, a possibilidade de empregá-la não apenas para analisar dados e oferecer feedback ao professor, mas também como uma forma de fiscalização de seu trabalho ou do conteúdo. “Esse é um ponto que ainda gera preocupação, não só de profissionais da rede, mas da sociedade como um todo – se a IA não pode ser usada para fiscalizar.” Ainda assim, ele reforça que a diretriz da secretaria é clara: a IA será empregada exclusivamente com fins formativos. “A ideia é sempre usar a IA para fins de dar ao professor clareza sobre o que ele pode fazer melhor, nunca para fins punitivos.”
Vitor de Angelo, secretário de Educação do Espírito Santo, também ressalta a legitimidade de uma postura crítica diante das tecnologias emergentes. Para ele, a inteligência artificial deve ser compreendida como uma ferramenta de apoio – e não como resposta definitiva. “O desafio, no Brasil, é justamente fazer essa leitura crítica. Não devemos adotar essas tecnologias como soluções mágicas para os problemas da educação – ou de qualquer outra área –, mas sim como recursos complementares, capazes de potencializar o trabalho sério e comprometido que já vem sendo feito por professores, gestores, secretários e tantos outros profissionais.” Ao refletir sobre os aprendizados da missão internacional, De Angelo destaca diferenças significativas na forma como países asiáticos articulam tecnologia e educação. “Ficou para mim a impressão, especialmente na Coreia do Sul, de uma grande confiança no poder da tecnologia – mas, ao mesmo tempo, de um equilíbrio cuidadoso, que leva em conta as necessidades humanas e os múltiplos impactos que esses recursos causam no cotidiano escolar.”
Outro aspecto que impressionou a comitiva foi o nível de sofisticação da produção audiovisual apoiada por IA. “Na China, vimos empresas desenvolvendo vídeos com conteúdos culturais, mas que têm enorme potencial para uso educacional. Imagine pedir à IA que crie um vídeo explicando diferentes formas de resolver uma equação do primeiro grau, com personagens do interesse dos alunos. Isso pode ser muito poderoso”, avalia Daniel Barros. Entre as iniciativas visitadas, destacam-se as empresas SenseTime e a Minimax, responsável por um sistema que gera vídeos educativos utilizando a voz clonada de professores. “Eles pegam uma aula de um professor excelente e replicam aquele modo de ensinar em novos conteúdos – uma aplicação muito promissora”, conclui Barros.
Ao fim da viagem, os integrantes da missão voltaram com a convicção de que, embora potente, a inteligência artificial está longe de substituir o que realmente sustenta a escola: o vínculo humano, o esforço contínuo e a cultura do aprender. As experiências na Ásia reforçaram que o uso de tecnologias na educação deve partir de uma visão estratégica, que evite o deslumbramento. O Brasil tem a oportunidade de construir seu próprio caminho – crítico, contextualizado e centrado nas pessoas – para que a inovação não represente ruptura, mas aprimoramento.