Inovação social para fortalecer o SUS

Empreendimentos de impacto, quando alinhados aos princípios do SUS, podem ajudar a ampliar o acesso à saúde no Brasil
Cassiano Correia / Shutterstock

Soluções desenvolvidas por empreendedores de impacto no Brasil têm potencial para ampliar o acesso da população à saúde, na medida em que podem trazer melhorias e maior eficiência para o setor. Porém, para que elas avancem, é fundamental que estejam alinhadas aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e superem barreiras como o subfinanciamento crônico da saúde pública e a dificuldade de incorporação de inovações. 

Empreendimentos com propósito de impacto são negócios ou organizações que buscam resolver um problema socioambiental por meio da atividade principal e se comprometem a medir o impacto que geram. Apoiar essa modalidade de empreendedorismo, que inclui iniciativas com ou sem fins lucrativos, é essencial para que as inovações criadas não fiquem restritas a experiências pontuais ou deixem de produzir o impacto positivo desejado. 

Neste artigo, apresentamos pontos que partem da Tese de impacto social em saúde 2025, estudo produzido pela Artemisia com apoio da J&J Foundation que buscou analisar o contexto e o papel das inovações empreendedoras nesse setor.

Desafios da saúde pública

O SUS é o único meio de acesso à saúde para 71,5% dos brasileiros, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A população mais vulnerável enfrenta várias camadas de exclusão dos serviços de saúde: barreiras financeiras (para custear serviços privados, medicamentos e deslocamentos), baixo letramento em saúde (com dúvidas, medos e desinformação), informalidade no trabalho (que impacta a remuneração pelos dias não trabalhados, desestimulando a busca por consultas e exames) e baixa adesão a prevenção e tratamentos. A precariedade das moradias também acrescenta riscos à saúde. Há, ainda, fatores territoriais, com regiões marcadas pela falta de saneamento básico ou pelos vazios assistenciais – áreas onde não há oferta adequada de serviços e com baixa densidade de profissionais de saúde.

Entre os desafios enfrentados pelos gestores do sistema público estão o subfinanciamento (os investimentos em saúde recuaram 64,2% no comparativo entre 2013 e 20231) e as dificuldades de integração e gestão de dados. A demanda é maior do que a oferta: há sobrecarga no sistema, falta de leitos e longas filas. A tendência é de piora diante do envelhecimento populacional e dos novos desafios da saúde, como epidemias e gestão de calamidades. 

Contribuições das inovações

Ao cruzarmos parte dos desafios mapeados com negócios que buscam gerar impacto social positivo, alguns exemplos despontam por ampliarem a efetividade em linha com a equidade no acesso à saúde. A Fleximedical atua nos vazios assistenciais – é um negócio de impacto que leva estrutura e serviços como consultas, exames, cirurgias e outros procedimentos por meio de unidades móveis de saúde. Os espaços são customizados de acordo com a necessidade da comunidade atendida e estruturados para comportar cabines para telemedicina, centros cirúrgicos e salas de tomografia, entre outros. 

A Fleximedical presta serviços para governos, institutos, organizações sociais e outras empresas e já atendeu mais de 4 milhões de pessoas em mais de 220 municípios. Um exemplo recente do impacto gerado foi a atuação no Rio Grande do Sul durante as enchentes de 2024. Em parceria com outras organizações, a Fleximedical levou carretas ao estado e realizou mais de 10 mil procedimentos médicos. 

Apesar da trajetória consolidada, com mais de duas décadas de atuação, ainda existem barreiras para que modelos como o da Fleximedical ampliem seu impacto. Um dos principais entraves é a contratação da solução inovadora pelo setor público. Inovações, por natureza, desafiam estruturas estabelecidas e muitas vezes esbarram na falta de códigos de contratação específicos que possam ser usados por entes públicos para levar a solução ao público para o qual foi criada.  

Outra iniciativa é a ImpulsoGov, que usa inteligência de dados para geração de impacto. A organização sem fins lucrativos desenvolve produtos digitais para que o poder público municipal e o estadual aprimorem a gestão do SUS. A plataforma Impulso Previne permite ao gestor público visualizar, de forma simples e centralizada, o desempenho do município, analisando os indicadores de performance estabelecidos pelo programa do governo federal de financiamento à atenção primária. A plataforma reúne informações atualizadas de todos os municípios e torna visível, por exemplo, a cobertura vacinal municipal. Há dados que identificam, inclusive, quantas pessoas podem estar invisíveis ao SUS. 

A ImpulsoGov atendeu mais de 320 municípios em 2025, que concentram mais de 21 milhões de cidadãos que dependem do sistema público. A organização registrou aumento de 147% na realização de exames preventivos (com a funcionalidade Mensageria para o Cidadão, que envia mensagens por WhatsApp sobre exames, consultas e outros serviços), redução superior a 50% nos sintomas depressivos em pacientes acompanhados (no projeto Saúde Mental na APS) e mais de 32 mil profissionais de saúde pública com acesso a conteúdos produzidos pela organização com o objetivo de fortalecer as capacidades locais. 

Mais do que oferecer uma boa tecnologia, é preciso estabelecer relações de confiança e escuta. As soluções são desenvolvidas pela ImpulsoGov em colaboração com profissionais e gestores do SUS, adaptadas à realidade das equipes e pensadas para se sustentarem no cotidiano do serviço público. Para que soluções digitais funcionem, elas precisam ser simples, intuitivas e compatíveis com a infraestrutura local, passíveis de ter sua escala ampliada e integradas aos dados já existentes, além de desenhadas com participação ativa das equipes. O apoio técnico contínuo também é indispensável. 

Entre as barreiras enfrentadas pela ImpulsoGov estão a fragmentação dos sistemas de informação do setor, cujos dados estão dispersos, e a instabilidade das políticas públicas – as frequentes alterações a cada troca de gestão comprometem a continuidade de iniciativas bem-sucedidas.

Entraves ao avanço

Um dos principais gargalos para que soluções de impacto atinjam a escala necessária na saúde é a falta de articulação entre os setores público e privado. A colaboração intersetorial é um componente-chave; no entanto, atores que queiram colaborar com o SUS devem considerar o contexto de subfinanciamento crônico do sistema público. Há poucos recursos disponíveis e o que for implementado deve garantir eficiência e qualidade. Negócios em estágios iniciais esbarram, portanto, em desafios de entrada, uma vez que é exigida a apresentação da relação custo-efetividade da solução, com comprovação de que o impacto foi verificado quantitativamente. 

Outro entrave enfrentado por empreendedores que propõem soluções voltadas à saúde pública é a mobilização de capital. Essas soluções demandam ciclos longos, validações complexas e construção em contextos muitas vezes marcados por burocracia e falta de infraestrutura. Por isso, o acesso a capital é mais difícil e requer instrumentos financeiros ajustados à natureza desses negócios. Nas fases iniciais, exigem capital não reembolsável, quando os empreendedores precisam de recursos para testes e validações. E, à medida que os negócios avançam, necessitam de capital paciente e tolerante ao risco. Como ainda faltam instrumentos financeiros adequados para modelos que operam com o setor público, esses empreendedores dependem de mecanismos de capital tradicionais, muitas vezes desalinhados com a realidade e com os tempos necessários para gerar impacto sistêmico.

O tipo de modelo de negócio também influencia diretamente o potencial de escala das soluções. Empreendimentos que atuam no modelo B2G (sigla para business-to-government, em que empresas fornecem produtos ou serviços a governos), por exemplo, carregam um alto potencial de impacto sistêmico. Enfrentam, porém, trâmites complexos para formalização de contratos, instabilidade na gestão pública, cronogramas de pagamento estendidos e sujeitos a atrasos e alto custo de aquisição de clientes, já que as negociações com governos tendem a levar mais tempo do que as realizadas com a iniciativa privada. 

Essa relação público-privada deve respeitar os princípios do SUS – universalidade, integralidade e equidade – e o sistema público deve sempre ser protegido de quaisquer interesses mercadológicos que possam comprometer a saúde como direito universal. O empreendedorismo de impacto não é capaz de resolver por completo os problemas do setor frente às complexidades, limitações e impossibilidade de atuação de ponta a ponta. Essas soluções não existem para substituir as ações essenciais do Estado, mas para atuar em lacunas específicas de modo a complementar ou potencializar serviços existentes.

Responsabilidade sistêmica

Atenuar os desafios da saúde no Brasil, especialmente os que afetam as populações mais vulneráveis, exigirá, cada vez mais, respostas inovadoras que considerem o agravamento das crises climáticas, os impactos sobre os determinantes sociais da saúde, a transformação demográfica, as desigualdades estruturais de raça, gênero e território, e a crescente prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, que comprometem a qualidade de vida das pessoas e geram mortes prematuras. As soluções desenvolvidas por empreendedores de impacto devem estar não apenas tecnicamente bem formuladas, mas eticamente comprometidas com os princípios constitucionais do SUS. 

O sucesso de uma inovação não pode ser medido apenas por sua adoção ou pelo desempenho isolado, mas pelo saldo sistêmico. É fundamental questionar se a solução contribui para fortalecer o sistema público como um todo ou gera distorções, ineficiências e exclusões. O compromisso com o impacto real exige reflexão crítica. Inovar em saúde pela via do empreendedorismo de impacto não é simplesmente criar tecnologias e articular parcerias – é participar da construção de um futuro em que o cuidado seja ainda mais acessível para todos. 

Nota

  1. Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, “Orçamento da Saúde cresceu apenas 2,5% em 10 anos, revela pesquisa do IEPS e Umane”, 8 mai. 2023. ↩︎