RAIO X
PROA
- O que é: O Programa de Orientação e Acolhimento é um projeto do Instituto Mondó voltado à saúde mental dos jovens estudantes de Breves, no arquipélago do Marajó (PA).
- Público-alvo: Comunidade escolar e local do arquipélago do Marajó.
- Foco de atuação: Fortalecimento emocional e desenvolvimento de habilidades socioemocionais da juventude marajoara, por meio de ações educativas e de acolhimento psicossocial.
- Início das atividades: 2024.
- Impacto até agora: Implementação piloto em Breves, envolvimento comunitário.
Desde 2020, o Instituto Mondó atua no arquipélago do Marajó, no Pará, embrenhado na floresta Amazônica, em uma região que registra alguns dos piores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil. Com o propósito de impulsionar o desenvolvimento local, a organização criada pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup) tem promovido ações nas áreas de desenvolvimento econômico, educação, saúde e infraestrutura (moradia, água e energia), em parceria com outras instituições. A ideia é transformar as escolas de educação básica em “plataformas de soluções sociais”, para que funcionem como um “motor de transformação”. Com o início dos programas e ações em Breves, o município mais populoso do Marajó e cidade piloto dessas atividades, os integrantes do instituto constataram, no entanto, a necessidade de um plano específico voltado à saúde mental dos jovens estudantes locais.
“Nós acreditamos que a escola seja o local da transformação, mas percebemos que teríamos de atuar também de maneira sistêmica: com saúde, moradia, água, energia e desenvolvimento econômico, porque os desafios desses jovens para estar em um ambiente escolar passam por esses aspectos”, conta Carolina Veloso Maciel, diretora-executiva do Instituto Mondó. “O PROA, que é o nosso Programa de Orientação e Acolhimento, surgiu como uma necessidade, diante do alto índice de suicídio entre os jovens marajoaras.” Em 2021, a taxa em Breves foi de 11,54 casos por 100 mil habitantes, mais que o dobro da média do estado do Pará (de 4,53) e bem acima da média nacional (de 7,2), segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde. O índice do município se aproximou da maior taxa registrada entre os estados brasileiros naquele ano – de 13,22 por 100 mil habitantes, no Rio Grande do Sul. No município marajoara, 83% dos suicídios registrados foram de jovens entre 10 e 29 anos.
“A maioria dos casos de suicídio de fato é de homens, entre 17 e 24 anos, rurais, mas as ideações e as tentativas ocorrem já quando são muito mais jovens. Quando chegamos lá, teve o caso de uma criança de 8 anos. Em outra semana que estávamos na cidade, houve três suicídios”, relembra Carolina, que vive em Recife. Com financiamento da Fundação José Luiz Setúbal, em 2024 o Instituto Mondó deu início ao PROA – que ainda segue em implementação e tem previsão de durar três anos no total. Um dos princípios da organização é fazer um levantamento detalhado da situação local antes de apresentar iniciativas. “Na essência do que pensamos, está a preocupação de não trazer respostas e programas prontos, mas propor algo que realmente seja viável para a localidade”, diz Rodrigo Gomes de Arruda, coordenador do núcleo de impacto da organização, que no início se chamava Rede Mondó. “Dado que o Marajó é extremamente diferente das demais regiões do país, queríamos ver quais fatores de risco estão associados à depressão.”
Com cerca de 100 mil habitantes vivendo numa extensão territorial quase do tamanho do Líbano, Breves fica a 200 quilômetros de Macapá (no Amapá) e a 220 quilômetros de Belém (Pará). O acesso à cidade é feito majoritariamente por barco e a economia se baseia no serviço público, no setor de serviços e no extrativismo, em especial do açaí. Metade da população vive na área urbana, metade na rural. Segundo relatório feito em 2023 pela então Rede Mondó com base em uma amostra de 350 famílias de dez comunidades do município, 99% dos habitantes carecem de saneamento básico adequado, 81% enfrentam uma situação de insegurança alimentar média ou grave e 12% são analfabetos, quando a média nacional era de 5,6%. Sessenta por cento dos adultos não têm uma ocupação.
A organização, que já havia realizado um diagnóstico mais geral do território a partir de 2021, fez um outro levantamento, buscando dados relacionados à saúde mental dos jovens. “Fazer uma pesquisa quantitativa na região é superdesafiador, por questões de logística, porque há casas ribeirinhas, rurais, e as urbanas também têm seus desafios, uma vez que as famílias mais vulneráveis estão em locais bem insalubres”, afirma Júlia Jungmann, diretora de relações institucionais do Instituto Mondó e gerente de responsabilidade social da Anup, que tem sede em Brasília, no Distrito Federal. “Quando chegamos fisicamente ao território, em 2021, tivemos o privilégio de já estar com recurso para fazer um grande diagnóstico territorial, coisa que muitas vezes as organizações não têm.”
Acreditamos que a escola seja o local da transformação, mas percebemos que teríamos de atuar de maneira sistêmica: com saúde, moradia, água, energia e desenvolvimento econômico
Os dados para o levantamento sobre saúde mental foram coletados em agosto de 2024, com o auxílio de oito pesquisadores de campo locais. Eles foram treinados e tiveram o acompanhamento presencial do psicólogo Ailton Ramos de Oliveira, que viajou do Recife, em Pernambuco, onde mora, para apoiar todo o processo no Marajó. Participaram da pesquisa 208 adolescentes entre 11 e 20 anos, 212 mães, pais ou responsáveis e 102 professores. De acordo com os gestores, a pesquisa teve aprovação do comitê de ética em pesquisa do Instituto Campinense de Ensino Superior (Ices/Unama) e todos os menores de 18 anos que participaram da sondagem tiveram a autorização dos pais ou responsáveis.
Os dados foram coletados em escolas públicas dos anos finais do ensino fundamental, com a anuência da Secretaria Municipal de Educação. “Inicialmente, eu participaria apenas da escrita dos questionários e da análise qualitativa dos resultados dessa pesquisa, mas durante o processo foi visto que era necessário que um profissional [de psicologia] estivesse junto com a equipe de coleta, devido a questões que pudessem acontecer tanto com a equipe, em decorrência da temática da saúde mental, quanto com respondentes – os estudantes, os pais e os professores”, conta Ailton. “Às vezes o questionário pode gerar gatilho nos jovens, por isso precisamos de um psicólogo de plantão”, resume Júlia.
A elaboração e adaptação dos instrumentos de pesquisa teve também o apoio do psiquiatra Gustavo Arribas, consultor técnico da Gerência de Atenção a Saúde Mental da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, e da jornalista, educadora e ativista Sara Wagner York, especialista em gênero e sexualidades. “O doutor Gustavo Arribas sugeriu que utilizássemos o instrumento de rastreio PHQ-9 [Patient Health Questionnaire-9], que é uma escala usada e reconhecida”, conta Ailton. O PHQ-9 é composto por nove questões que avaliam a presença de sintomas ligados à depressão maior, com base nos critérios do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM). “Além disso, escrevemos um instrumento próprio para rastrear demandas inexistentes em outros questionários, para que tivéssemos informações sobre problemas escolares, sobre bullying, racismo e outros tipos de preconceitos e até sobre a interferência da crise climática na saúde mental”, relata o psicólogo. “Também há questões sobre abuso sexual, uma vez que a ilha do Marajó ficou muito na mídia pela questão da exploração sexual no Brasil. A Sara foi fundamental na linguagem usada no questionário, na adaptação para que ele fosse acessível aos adolescentes.” De acordo com Ailton, buscou-se ainda rastrear temas mais contemporâneos, que ficam à margem das pesquisas de modo geral, como assuntos, ligados a pessoas travestis e intersexuais.
O psicólogo ressalta que o foco dos questionários foi para o contexto escolar. “Queríamos observar quais questões da vivência escolar poderiam afetar a saúde mental, como vivências de racismo, de bullying, de gordofobia, de transfobia e de outras fobias. Claro que, quando vemos os resultados, tem todo um atravessamento, porque nada está separado. É evidente que as relações familiares têm um impacto enorme e, ao chegar à escola, adquirem outra proporção.” A partir dos resultados quantitativos, foram organizadas rodas de conversa estruturadas, durante o mês de outubro de 2024, nas quais foram abordadas – com grupos separados entre alunos, mães e professores – as causas de bullying, violência sexual e violência física, e recebidas sugestões de como enfrentá-las.
Resultados e análises
De acordo com o levantamento, 62,8% dos adolescentes pesquisados em Breves sofriam algum grau de depressão, da leve (30,4% dos jovens), moderada (16,2%), moderadamente grave (12%) até a depressão grave (em 4,2%). Apresentaram depressão mínima ou ausência de sintomas 37,2% dos jovens. Sofrer humilhação, agressão física, assédio sexual, racismo, exposição nas redes sociais e usar álcool foram identificados como principais fatores de risco e estavam fortemente associados ao aumento de problemas de saúde mental, como depressão, automutilação e ideação suicida. Fazer esportes e a percepção de estar feliz na escola foram fatores de proteção à depressão.
“Esses resultados destacam a importância de intervenções voltadas para reduzir a exposição a fatores de risco no ambiente escolar e social, bem como da promoção de atividades físicas e de um ambiente escolar positivo para melhorar a saúde mental dos adolescentes”, escreveram os pesquisadores do instituto no Relatório sobre a saúde mental de adolescentes no ensino fundamental de Breves, Pará, de 2024.
Embora os gestores ressaltem a importância da preparação da equipe antes da coleta de informações e da oferta de atendimento psicológico aos participantes, a aplicação dos testes teve menos impacto que o previsto. E a questão que provocou mais gatilhos nos adolescentes não foi sobre a possibilidade de morrer, como imaginado inicialmente, mas sobre felicidade. “Foi uma surpresa que a questão ‘você se considera uma pessoa feliz?’ tenha engatilhado mais adolescentes do que a que tratava da morte. Acho que, diante dessa pergunta, o sujeito reavalia a sua vida […]. Com isso, escutei muitas adolescentes, em atendimentos individuais, e fiquei muito chocado com a vivência do bullying”, diz Ailton.
“A maioria das pessoas pesquisadas por nós que tinham sofrimento mental era formada por meninas, que haviam passado por bullying, violência física e/ou sexual”, afirma o psicólogo. “Bullying é um conceito muito guarda-chuva, porque abarca vários tipos de violência. Mas os adolescentes entendem quando o termo é usado. E é um fenômeno muito, muito comum nas escolas de lá. Muitas vezes os professores, os profissionais, não levam muito a sério, porque essa ideia de ser xingado, de sofrer humilhação e abusos parece parte da vivência escolar. E então dizem ‘deixa para lá, não liga para isso não’, como se isso fosse uma forma de resolver. E o pior é que, hoje, ainda se pode ser exposto nas redes sociais.”
Ao conversar com professores e diretores, o psicólogo chegou a ouvir que o tópico era uma “bobagem” – algo muito diferente do que se escutava vindo dos jovens estudantes. “Quando ouvia o adolescente, isso estava destruindo completamente a saúde mental dele, a vida, o desejo de estudar e de querer ir para a escola. Isso tem uma proporção muito grande e séria e era levado como se fosse apenas uma brincadeira.”
Nas rodas de conversa estruturadas, o psicólogo pôde ouvir dos próprios adolescentes, dos pais e responsáveis e dos professores percepções sobre as causas e possíveis soluções para os principais fatores de risco, como bullying, violência sexual e violência física. A busca por um maior diálogo foi uma sugestão recorrente.
E, embora o tema da exploração sexual e a prostituição no Marajó tenha tido destaque na mídia, Ailton percebeu uma outra questão mais presente entre os pesquisados. “Segundo as coisas que vi e que verificamos nos instrumentos, fiquei com a leve impressão de que talvez o número de abuso sexual intrafamiliar seja muito maior do que a questão da exploração sexual. A prostituição é aquilo que se vê, mas o abuso intrafamiliar é aquilo que não é dito, que ninguém fala. Então não tem como se rastrear, não tem como ter estatística, porque as pessoas não vão falar. Os adolescentes não vão dizer ‘eu fui abusada pelo meu tio’. Mesmo em caso de gravidez, a família pode esconder quem é o pai. Mas eu cheguei a muitos casos de abuso sexual intrafamiliar, casos bem tensos”, afirma o psicólogo.
Se o bullying e a violência forem tratados de maneira preventiva em diferentes ambientes, isso vai ter um impacto positivo, diminuindo as questões de depressão, ideação suicida
Os dados da pesquisa foram apresentados às autoridades municipais. E, em janeiro de 2025, a Associação pela Saúde Emocional (ASEc+), numa parceria com o Instituto Mondó, organizou uma formação com 160 profissionais das áreas de educação, saúde e assistência social para capacitá-los a lidar com temas de saúde mental, abordando questões como bullying e violência.
De acordo com Carolina, os dados da pesquisa continuam sendo analisados e o instituto e seus parceiros estudam formas para fortalecer espaços de rodas de conversa e diálogos sobre saúde mental – não apenas no ambiente escolar, mas também em locais de atuação das áreas da saúde e da assistência social. “Com esses dados, propomos que não apenas nossas ações sejam eficientes, mas que eles corroborem com outras políticas públicas”, afirma. “Existe uma lacuna. Todo mundo fala de senso comum sobre a violência, sobre o assédio, sobre o incesto, mas há poucos dados científicos de fato e houve uma robustez nessa nossa construção de dados.”
A ideia do instituto na próxima fase de implementação do programa é criar na cidade ao menos quatro “centros afetivos” – locais com pessoas de referência para os jovens onde sejam desenvolvidas atividades que gerem um impacto positivo, diminuindo a incidência de problemas. “O Caps [Centro de Atenção Psicossocial] de Breves está em processo de expansão de serviços, mas ele é deficitário, tem poucos profissionais de psiquiatria e de psicologia, para uma demanda excessiva. Se o bullying e a violência forem tratados de maneira preventiva em diferentes ambientes, isso vai ter um impacto positivo, diminuindo as questões de depressão, ideação suicida. Queremos criar um ecossistema habilitado tecnicamente para isso”, informa a diretora-executiva do Instituto Mondó.
A metodologia do estudo e os dados obtidos com a pesquisa foram apresentados na 3ª Conferência Internacional de Políticas Públicas e Ciência de Dados, promovida pela Rede Internacional de Políticas Públicas e Ciência de Dados (RP3CD) em maio de 2025 na Universidade de Aveiro, em Portugal. Formada por universidades e centros de pesquisa públicos e privados brasileiros e portugueses, a RP3CD busca desenvolver pesquisa, inovação e intercâmbio de conhecimento para fortalecer políticas públicas baseadas em dados.
“A nossa expectativa é de que essa seja uma experiência que possa ser replicada em outros municípios marajoaras e em outras realidades. Partimos sempre de um olhar sistêmico. O PROA é um projeto, mas ele tem uma intersecção com outras ações. Nada nosso é isolado. Queremos levar esse olhar sistêmico, partindo do ambiente escolar, da relação família/escola/comunidade, para outros municípios”, projeta Carolina Maciel.