Em um domingo à tarde de 2017, dois policiais se aproximaram de um ônibus estacionado no centro de Eugene, no estado do Oregon, nos Estados Unidos, para cumprir um mandado de prisão. O veículo abrigava uma clínica da Occupy Medical, que estava ali para prestar atendimento médico a pessoas em situação de rua. Os policiais estavam no local para prender um paciente, mas voluntários da clínica se recusaram a acatar a ordem. A polícia acabou indo embora, mas o episódio intensificou a crise entre as autoridades da cidade e a prestadora do serviço.
A Occupy Medical foi criada em 2012 como uma parceria entre a prefeitura de Eugene e uma organização sem fins lucrativos. Surgiu na esteira do Occupy Eugene, instância local do movimento Occupy, cujos participantes acampavam em centros urbanos em protesto contra a desigualdade social e econômica após a crise mundial de 2008 e a recessão subsequente. A Occupy Medical se tornou uma das poucas opções de atendimento médico para pessoas em situação de rua nos EUA – gente em geral excluída do sistema tradicional ou que o evitava por não confiar nele. Todo domingo, uma equipe de médicos e outros profissionais de saúde, todos voluntários, dava atendimento gratuito em um parque da cidade.
O ônibus, que já fora um posto de coleta de sangue, virou um espaço seguro para quem precisava de um atendimento fiel à ética do cuidado dos mais marginalizados e desassistidos da sociedade. Permitir prisões naquele lugar seria uma violação dessa missão e da confiança conquistada.
O trabalho da Occupy Medical com pessoas em situação de rua e outros grupos vulneráveis tinha o apoio da Câmara Municipal de Eugene, mas sua atuação gerou atritos. Embora tivessem autorizado o uso do espaço e permitido a operação da clínica, as autoridades só forneciam insumos e itens essenciais quando expressamente solicitados – e, mesmo assim, nem sempre com presteza.
Parcerias como essa são cruciais para promover inovação e ações coordenadas exigidas para a solução de problemas sociais. De iniciativas globais a parcerias público-privadas locais, essas colaborações são uma via excelente para reunir ideias, tecnologias, expertise e lideranças de distintos setores com o objetivo de gerar transformações sociais sustentáveis e de impacto. Parcerias intersetoriais são um instrumento eficaz para se chegar a populações marginalizadas, estigmatizadas e com pouco acesso a serviços públicos, como pessoas em situação de rua, indivíduos com dependência química, imigrantes em situação irregular, refugiados e pessoas privadas de liberdade.
Embora muitas parcerias intersetoriais naufraguem devido a metas divergentes, ambições exageradas e falhas na comunicação entre parceiros, as que dão certo costumam superar esses problemas ao começar com ações pequenas e mirar o longo prazo
Contudo, é difícil implementar e expandir parcerias intersetoriais que buscam enfrentar problemas sistêmicos complexos ou chegar a comunidades marginalizadas de forma a gerar impacto real. É comum surgirem tensões e dificuldades entre parceiros, especialmente onde há divergências já conhecidas – como na definição de problemas, metas, prioridades, formas de coordenação, papéis, estruturas decisórias e alocação de recursos. Já que esses conflitos tendem a se agravar se não forem enfrentados, a parceria pode frustrar as expectativas. E quem está no comando acaba desistindo da colaboração, em vez de tomar medidas para melhorar o desempenho da parceria.
Condensamos nossa experiência coletiva, acumulada ao longo de uma década de pesquisa e atuação com parcerias intersetoriais, em um modelo que chamamos de Strategic Seeding of Latent Capacity (SSLC, ou ativação estratégica de capacidades latentes, em tradução livre). É um roteiro para revitalizar parcerias e transformá-las em motores de impacto social sustentável. Embora muitas parcerias intersetoriais naufraguem devido a metas divergentes, ambições exageradas e falhas na comunicação entre parceiros, as que dão certo costumam superar esses problemas ao começar com ações pequenas e mirar o longo prazo. Em vez de sair em busca de soluções sistêmicas grandiosas, focam em conquistar confiança, cultivar o conhecimento local e fomentar capacidades latentes dentro das comunidades.
Cinco parcerias
Vamos examinar cinco parcerias nos Estados Unidos, todas pioneiras no enfrentamento de questões espinhosas dos tempos atuais: pessoas em situação de rua, acesso à saúde, educação equitativa, moradia acessível e transição para práticas sustentáveis. Ao longo da última década, nossa relação com essas organizações incluiu trabalho de campo e coleta de dados, entrevistas com fundadores, funcionários, parceiros e clientes, além de centenas de horas de observação e trabalho voluntário.
A primeira é a Occupy Medical. Seu objetivo era atender grupos vulneráveis com um modelo de saúde gratuito, aberto a todos, sem burocracia. A abordagem não só gerou confiança, mas serviu para reunir um acervo valioso de conhecimento local e de ação social que se mostrou fundamental durante a pandemia de covid-19.
O segundo exemplo é o programa Rest-Stop, surgido em 2014 em resposta à crise de moradia na cidade de Eugene. O programa – uma alternativa inovadora para a busca e gestão de moradias temporárias em terrenos públicos – teve de superar uma forte resistência local. A parceria combinou recursos e supervisão do Estado com a expertise e a gestão de organizações sem fins lucrativos.
A terceira, a SquareOne Villages, também nasceu do ambiente de mobilização social pós-Occupy em Eugene. A organização foi pioneira em um modelo público-privado de planejamento e implementação de minicasas para a população de baixa renda. Ao descentralizar o controle e entregar aos moradores a gestão da comunidade, com uma estrutura inovadora de cooperativa/propriedade da terra, a parceria revolucionou o acesso à moradia.

Outro exemplo, a Greenway Arts Alliance (GAA), de Los Angeles, usou os laços com a comunidade artística local para enfrentar o colapso do ensino de artes em escolas públicas, mostrando como capacidades latentes podem ser fundamentais em tempos difíceis. A organização surgiu em 1995 como uma parceria entre o setor público e uma entidade sem fins lucrativos. Uma atriz e um produtor de teatro decidiram levantar fundos para uma escola no centro da cidade, a Fairfax High School. O que começou com um brechó aos domingos cresceu e virou uma parceria que hoje tem um teatro (o Greenway Court Theatre), uma ONG que promove a educação artística e a formação em liderança para alunos do ensino fundamental e médio (o Greenway Institute for the Arts) e uma das feiras de artesanato mais populares e longevas de Los Angeles (a Melrose Trading Post). O Distrito Escolar Unificado de Los Angeles (LAUSD, na sigla em inglês), o maior distrito de ensino público estadunidense, deu acesso a instalações públicas e às escolas; nos últimos 20 anos, a parceria já arrecadou mais de US$ 10 milhões.
Por último, o Solarpunks Club, de Los Angeles, foi criado em 2022 por uma empresa privada, a produtora de eventos e experiências Production Club. A proposta do grupo é funcionar como um centro de inovação em sustentabilidade, atuando em cooperação com organizações com e sem fins lucrativos em projetos específicos, especialmente em eventos de música, cinema e artes visuais. Seu diferencial está no uso de uma tecnologia própria de baterias solares de alta potência para oferecer suporte técnico e energia renovável a eventos.
Ao observar esses cinco exemplos de parcerias intersetoriais, identificamos um padrão comum: diante de dificuldades como conflitos, lentidão ou baixo desempenho, os gestores dessas organizações recorriam a distintas versões do modelo SSLC para fortalecer conhecimentos, habilidades e capacidades internas – seu valor latente. Esses ativos intangíveis permitiram às parcerias superar crises locais e se adaptar a necessidades imprevistas da comunidade, enfrentar contextos econômicos e políticos difíceis e superar a resistência de atores influentes.
O modelo SSLC é uma alternativa concreta para parcerias intersetoriais com desempenho insatisfatório. A ideia é equilibrar a pressão por eficiência e resultados mensuráveis – em geral vinda de parceiros institucionais – e a necessidade de comunidades de preservar e fortalecer sua capacidade de enfrentar desafios sociais. Ao priorizar o desenvolvimento de capacidades latentes, o modelo desloca o foco de resultados de curto prazo para a construção de resiliência e adaptabilidade no longo prazo. Trata-se de oferecer uma abordagem para que gestores de parcerias possam sustentar e revitalizar suas iniciativas, sobretudo em contextos de pressão externa ou escassez de recursos.
Causas do fraco desempenho
A tese por trás das parcerias intersetoriais é de uma simplicidade irresistível: combinar recursos e conhecimentos singulares para ampliar a capacidade de ação e gerar impacto social. Essa ideia parte de dois princípios: primeiro, que não há setor ou organização capaz de resolver, por si só, os complexos problemas sociais de hoje; segundo, que parceiros bem-intencionados podem, por meio de um acordo claro sobre objetivos comuns, funções, planos de ação e divisão de recursos, alcançar resultados muito superiores aos que conseguiriam sozinhos.2
Apesar dessa promessa, parcerias intersetoriais costumam enfrentar problemas recorrentes desde a fase de concepção até a implementação e operação. Em nosso trabalho de campo, observamos vários desses obstáculos, que se traduziram em ineficiências, conflitos e, em certos casos, rupturas entre parceiros.
Para começar, há problemas de conhecimento. Problemas sociais costumam ser dinâmicos e complexos, cruzando fronteiras geográficas e administrativas. Essa complexidade faz com que diferentes atores ou stakeholders enxerguem o mesmo problema de formas muito distintas. Um assistente social que lida diariamente com a falta de moradia, por exemplo, tem uma compreensão bastante contextualizada do tema, pois está inserido na luta cotidiana daqueles diretamente afetados. É bem diferente da perspectiva de um gestor do setor privado, cuja visão provavelmente se baseia em informações secundárias. Essa disparidade de informação pode gerar diferenças difíceis de superar e até desacordos sobre a própria definição do problema. Afinal, a população em situação de rua é um problema de moradia ou de saúde mental? É um problema estrutural ou de escolhas individuais?
Foi o desafio enfrentado pelo programa Rest-Stop. Lançada em 2019, a parceria se propõe a usar terrenos públicos ociosos para oferecer um espaço temporário seguro para pessoas em situação de rua. A ideia é criar núcleos de minicasas com cerca de 20 moradores por local e infraestrutura comunitária. Os terrenos, como estacionamentos ou parques, são cedidos pela prefeitura. Apesar de aprovada e financiada pela Câmara Municipal de Eugene, a iniciativa enfrentou resistência local quase imediata, em grande parte pela falta de clareza sobre seu impacto na vizinhança e entre os moradores. O conflito rapidamente arrastou a parceria para disputas políticas. Em uma zona de comércio, por exemplo, comerciantes manifestaram preocupação com o número de pessoas em situação de rua que possuíam animais, vistos como ameaça ao fluxo de pedestres e ao comércio. Ativistas que atuam com essa população, por sua vez, sabiam da importância do vínculo com animais de estimação para o bem-estar emocional dessas pessoas. Essa divergência de valores e prioridades entre beneficiários e atores críticos aumentou a tensão e tornou difícil equilibrar os diferentes interesses em jogo.
Outro problema relacionado ao conhecimento é o processo de buscar parceiros, que tem custos para quem busca. Para manter esse custo sob controle, empresas interessadas em investir em responsabilidade social costumam fazer parcerias com organizações já conhecidas no campo social. Mas essa tendência acaba favorecendo grupos com boa visibilidade e marketing em prejuízo de organizações menores, que muitas vezes têm mais conhecimento da realidade local. Com isso, temas mais visíveis acabam concentrando as parcerias, enquanto questões igualmente urgentes, mas menos conhecidas, são negligenciadas. Como consequência, organizações locais podem se ver obrigadas a desviar esforços da ação comunitária para atividades de divulgação com a finalidade de atrair parceiros.
O Solarpunks Club enfrenta esse dilema o tempo todo. Pequena em escala, a iniciativa mobiliza sua rede de colaboradores nos setores de artes, entretenimento e moda para investir no desenvolvimento de conhecimento local em sustentabilidade e destacar o potencial da energia renovável em setores culturais e criativos. O desafio, porém, está na seleção de projetos: produções de grande porte, em parceria com marcas conhecidas, ajudam a demonstrar sua capacidade tecnológica e o potencial da energia solar para tornar o setor do entretenimento totalmente sustentável. Já projetos menores, voltados à comunidade, oferecem apoio direto à cena criativa local e respondem a necessidades concretas, como a criação de feiras para artistas independentes ou ações emergenciais após incêndios florestais. Com recursos e equipe limitados, essas decisões são muitas vezes difíceis de tomar.
Também são frequentes os problemas de coordenação, que surgem quando a logística da distribuição de tarefas, papéis e recursos – ou seja, quem deve fazer o quê e com quais meios – não está clara. É preciso um acordo, entre parceiros, sobre que tipo de investimento em recursos, como ativos e pessoal, cada um irá aportar. Isso pode ser complicado pelas relações de poder desiguais entre os envolvidos. Além disso, como parcerias e problemas que enfrentam são dinâmicos, as exigências de coordenação tendem a mudar com o tempo. Esses obstáculos costumam ser atenuados com a criação de uma estrutura participativa para a conexão entre parceiros, a escuta ativa e o aprendizado.
Parcerias que avançaram de modo mais lento e deliberado, em vez de buscar resultados de alto impacto e investimentos pesados de recursos para alcançar metas ambiciosas, tiveram muito mais sucesso e conseguiram superar problemas endêmicos desse modelo de colaboração
A principal razão para o sucesso da Occupy Medical foi, muito provavelmente, a relação próxima com a comunidade surgida entre as barracas do movimento Occupy Eugene. Essa proximidade permitiu aos fundadores responder aos problemas específicos enfrentados pela população em situação de rua e entender as razões por trás de sua resistência a serviços tradicionais de saúde – ou mesmo exclusão de tais serviços. A Occupy Medical estruturou sua organização, distribuição de recursos, gestão de casos e formas de acesso de maneira alinhada às necessidades dessa população, estabelecendo protocolos de comunicação e de atuação dos parceiros envolvidos.
Parcerias também enfrentam o problema da valoração: como cada ator atribui valor a diferentes aspectos de um projeto, bem como ao próprio objetivo da iniciativa. Que tipo de valor essa parceria pretende gerar? Quais métricas devem ser adotadas? Como medir os resultados de forma precisa e objetiva? Esses impasses levaram a críticas sobre modelos como o do “valor compartilhado” proposto por Michael Porter e Mark Kramer em um artigo de 2006 na Harvard Business Review. Nele, os dois defendem a integração de metas sociais e ambientais às estratégias centrais das empresas. Apesar da popularidade do conceito, a pergunta fundamental muitas vezes segue sem resposta: afinal, valor para quem?
Vimos esse mesmo problema na Greenway Arts Alliance (GAA), que organiza a feira Melrose Trading Post. O sucesso dessa iniciativa depende do acesso a um espaço público: o pátio da Fairfax High School, cedido pelo Distrito Escolar de Los Angeles (LAUSD) por uma taxa simbólica. A parceria foi mantida ao longo dos anos apesar de sucessivas mudanças na administração do LAUSD. No entanto, após a pandemia de covid-19, uma nova gestão aumentou drasticamente o valor do aluguel, jogando a parceria em crise. O reajuste refletia uma mudança na forma como o LAUSD passou a atribuir valor ao componente comercial do projeto, que deixou de ser visto como um instrumento de apoio ao ensino de artes e passou a ser tratado como fonte direta de receita para o distrito. A crise evidenciou um problema mais profundo: como a feira depende do espaço público para existir, o LAUSD pôde exercer seu poder assimétrico com facilidade assim que suas prioridades mudaram.

Problemas de comunicação podem exacerbar todos os anteriores. Canais de diálogo são essenciais, tanto entre os parceiros quanto entre a parceria e seus públicos externos, como o poder público, as comunidades afetadas e os beneficiários. O Rest-Stop, por exemplo, enfrentou um sério problema de comunicação. Após o sucesso dos primeiros núcleos, entre 2014 e 2016, a cidade aprovou a expansão do projeto com o apoio de representantes das comunidades e do setor empresarial. Um relatório detalhado, conduzido principalmente pela administração municipal, comprovava que a parceria tinha bom custo-benefício, atendia aos beneficiários e não ameaçava a segurança de áreas residenciais. Ainda assim, cada tentativa de abrir novos núcleos era recebida com forte oposição de moradores, que denunciavam supostos riscos à segurança e ao bem-estar do bairro. O programa lançou uma campanha de comunicação para esclarecer essas dúvidas, mas só com a chegada da pandemia e a consequente explosão do número de pessoas em situação de rua é que novas unidades foram finalmente abertas.
Questões envolvendo valor e comunicação são agravadas por problemas de acesso e confiança. Muitas vezes, a parceria precisa chegar a comunidades e populações que têm receio de interagir com serviços públicos ou não têm a capacidade e os meios para acessar os recursos disponíveis. Com frequência, parcerias optam por acionar as organizações mais conhecidas, em vez de buscar aquelas que realmente têm acesso às comunidades e a confiança de quem vive nelas.
A situação de rua é um exemplo claro de como a falta de acesso pode agravar o sofrimento dos próprios beneficiários. Muitas dessas pessoas vivem sob alto risco de doenças, violência física e criminalização. Para dar respostas efetivas, inovadores e empreendedores sociais precisam primeiro construir relações de confiança, capazes de encorajar o acesso aos serviços sem medo de repressão ou constrangimento. Foi justamente esse investimento em confiança que tornou a atuação da Occupy Medical eficaz.
A governança de parcerias intersetoriais precisa enfrentar esses cinco tipos de desafio. Para que deem certo junto a populações marginalizadas, é essencial reduzir atritos em torno da confiança. A falta dela pode causar problemas de coordenação, acesso e comunicação. Os casos bem-sucedidos mostram que vínculos se fortalecem quando intenções, promessas e resultados dos parceiros estão alinhados com as necessidades e os objetivos da comunidade. Muitos dos problemas mencionados, porém, podem minar o vínculo construído. Ruídos na comunicação podem gerar desinformação e atrasos nas ações, corroendo a confiança. A falta de consenso sobre metas e indicadores pode abalar a confiança em prioridades. Diferenças acentuadas de poder, especialmente quando empresas usam seus recursos financeiros para impor prioridades, tendem a corroer ainda mais esse laço.
Diretrizes para a transformação
Nossa experiência no trabalho direto com projetos que superaram esses entraves, incluindo os cinco casos aqui trazidos, sugere novos caminhos para lidar com os problemas citados. Parcerias que avançaram de modo mais lento e deliberado, em vez de buscar resultados de alto impacto e investimentos pesados de recursos para alcançar metas ambiciosas, tiveram muito mais sucesso e conseguiram superar problemas endêmicos desse modelo de colaboração. O que esses parceiros fizeram foi concentrar esforços em lançar raízes na comunidade, forjando relacionamentos e angariando simpatia e conhecimento local – o que chamamos de repositórios de capacidades latentes. O uso estratégico dessas “sementes” foi fundamental para o funcionamento dessas parcerias a longo prazo, especialmente em momentos de crise.
Identificamos quatro táticas eficazes usadas no modelo SSLC: adotar metas locais, descentralizar controle, aproveitar conhecimento local e manter compromisso de longo prazo. O modelo SSLC exige investimento adicional mínimo de parceiros, mas tem potencial para gerar benefícios tanto para as parcerias como para as comunidades que atendem. Vejamos cada tática em detalhes.
1. Trabalhar pelas prioridades da população atendida, não por causas midiáticas. | Uma das estratégias menos óbvias, especialmente no caso da Occupy Medical e do programa Rest-Stop, foi adotar metas mais modestas. Por “modestas”, aqui, não queremos dizer soluções fáceis ou superficiais, mas iniciativas concretas que melhoram de fato a qualidade de vida dos beneficiários – em vez de agendas ambiciosas, como atacar diretamente as raízes estruturais de um problema. Há quem diga que, com isso, inovações sociais e parcerias intersetoriais serviriam apenas como um paliativo, ocultando problemas mais sérios. E estudos recentes mostram que é comum empresas entrarem em parcerias apenas pela publicidade.3 O risco de que metas grandiosas alimentem essas tendências é maior; além disso, é mais provável que esbarrem em problemas de conhecimento, coordenação e valoração.
Nossa recomendação é focar em metas mensuráveis no plano individual. Muitos dos atendidos pela Occupy Medical precisavam de cuidados básicos: limpeza de feridas, tratamento de infecções nos pés ou um simples corte de cabelo. O Rest-Stop oferecia a um grupo reduzido de pessoas em situação de rua camas e abrigo em casas minúsculas, em que a pessoa mal podia circular; mas, para aquele público, isso significava proteção, dignidade e esperança. Nenhuma dessas organizações se propôs a ser revolucionária, mas seu impacto na população que atendiam era profundo.
Trabalhar com beneficiários – e não só para eles – é fundamental. Um dos motivos pelos quais a Occupy Medical e o Rest-Stop conseguiram se consolidar e evoluir para seu formato atual foi justamente o envolvimento contínuo e profundo dos fundadores com a população em situação de rua, dividindo com ela a governança e a tomada de decisões, e sustentando esse alto grau de engajamento ao longo dos anos.
O Solarpunks Club é outro exemplo. O grupo prioriza parcerias com produtores e festivais locais para fornecer energia renovável em eventos. A iniciativa reúne integrantes dos setores com e sem fins lucrativos para facilitar a transição energética no setor cultural. O clube, no entanto, trabalha com grupos de base e investe na construção de vínculos, atuando principalmente com voluntários da comunidade local de artistas e afins. Essas conexões e o conhecimento do território vieram a calhar na esteira dos incêndios florestais que atingiram Los Angeles em janeiro de 2025. Com centenas de milhares de moradores sem energia, o Solarpunks Club mobilizou rapidamente sua rede e expertise para fornecer baterias solares a diversas comunidades afetadas, em especial aquelas mais vulneráveis, que poderiam facilmente ter sido ignoradas. A organização também levou sua tecnologia para eventos beneficentes e para moradores que vasculhavam escombros na tentativa de recuperar pertences.
2. Delegar controle e poder de decisão a quem está na linha de frente. | O controle é um fator crucial no desenho organizacional e na coordenação. Abrange desde o controle de processos de geração de valor, como administração, finanças e fluxo de recursos, até o controle do valor entregue aos beneficiários. Um controle rígido por quem está no alto pode gerar bons resultados em muitas atividades, como na indústria. Já no setor social, o conhecimento sobre como enfrentar problemas vividos pelas pessoas está na ponta da cadeia de valor – ou seja, com os beneficiários de ações. O acesso a esse conhecimento é fundamental para a eficácia e para angariar o apoio da comunidade, e isso pode exigir a adoção de modelos participativos e inclusivos nos quais o conhecimento flui de baixo para cima, para que aqueles que sentem o problema na pele tenham voz sobre a forma como os serviços são prestados.
Para isso, gestores da parceria devem estar dispostos a delegar o controle das operações para quem atua na linha de frente, em contato direto com beneficiários. O programa Rest-Stop conseguiu resolver esse conflito entre delegar e manter o controle: para cumprir a missão de empoderamento, delegou o controle de operações diárias aos moradores temporários no local. Mas a organização ainda teve de realizar um certo nível de supervisão para desarmar conflitos, garantir o cumprimento de normas e manter um desempenho adequado, assegurando o apoio de parceiros locais como empresas e poder público.
Naturalmente, essa opção por delegar e por abordagens inclusivas pode ter custos. O programa Rest-Stop enfrentou vários reveses e recuos devido à falta de expertise. Durante a pandemia de covid-19, a parceria era essencial para abrir e operar abrigos seguros e livres de contágio na cidade; assim, poucos Rest-Stops funcionaram efetivamente devido à escassez de operadores qualificados. Quase dez anos após o início da parceria, o programa tem apenas nove unidades, embora a demanda de serviços só cresça.
O modelo de moradias da SquareOne Villages também é marcado pela descentralização. Ao erguer comunidades com 20 a 30 minicasas, a parceria adotou uma estrutura de cooperativa com posse coletiva da terra, na qual os próprios moradores eram donos e responsáveis pela gestão da vila, com intervenção limitada da parceria. Os moradores – em sua maioria pessoas que antes estavam em situação de rua, pessoas não brancas e vítimas de violência doméstica e familiar – respondiam pela governança da vila, incluindo operações, políticas e seleção de novos moradores. A parceria só intervinha para resolver conflitos e tomar decisões sobre financiamento.
O modelo deu certo, apesar da oposição inicial de autoridades municipais, que preferiam um controle mais direto da parceria para manter maior domínio sobre as vilas e reduzir riscos potenciais para moradores vizinhos. Atualmente, a SquareOne opera quatro vilas no Oregon; outras três estão em fase de planejamento e construção. O modelo foi reproduzido com sucesso em Los Angeles, onde estabeleceu cinco vilas de minicasas. No entanto, ainda enfrenta dificuldades relacionadas a financiamento e localização.
3. Investir na sistematização do conhecimento local sobre problemas, mesmo com métodos simples e de baixo custo. | Outra maneira de desenvolver capacidades latentes é converter parcerias de desempenho insatisfatório em repositórios de conhecimento localizado e específico sobre problemas sociais. O papel central que a Occupy Medical desempenhou durante a pandemia de covid-19 veio exatamente de seu conhecimento profundo da população em situação de rua: onde estava, quais eram seus problemas, como chegar a esses indivíduos e como trabalhar com a comunidade. Sistematizar o conhecimento não é simples, sobretudo em parcerias que trabalham com populações marginalizadas. Em geral, não há recursos suficientes para investir na infraestrutura de gestão do conhecimento nem no pessoal necessário para coletar, organizar e manter esses dados. Além disso, pessoas em situação de rua, imigrantes em situação irregular ou pessoas com dependência química, por exemplo, podem sonegar informações por receio de repressão ou estigma. E, como boa parte dos serviços oferecidos por ONGs e parcerias se dá pelo trabalho voluntário, é comum que o conhecimento se perca com a rotatividade e o desgaste de equipes.
O projeto da GAA deu fôlego a comunidades de artistas e artesãos de Los Angeles durante a pandemia. Centenas desses empreendedores dependem de feiras e eventos comunitários para viver e ficaram sem renda quando o governo adotou medidas de confinamento. A GAA, no entanto, conseguiu acionar rapidamente sua rede e mobilizar o conhecimento acumulado sobre o território para localizar esses empreendedores, oferecer apoio imediato e facilitar o contato com o público. A Melrose Trading Post foi uma das primeiras feiras a reabrir e virou uma tábua de salvação para centenas de artistas. Essa resiliência vem do conhecimento que a GAA tem da cena artística local, fruto de anos de relações pessoais com expositores e do acompanhamento sistemático feito com métodos simples, mas eficazes: sondagens regulares por e-mail e telefone com participantes, tudo registrado em um acervo acessível de documentos, fotos e planilhas de Excel.
Sistematizar o conhecimento não é algo simples. Em geral, não há recursos suficientes para investir na infraestrutura de gestão do conhecimento nem no pessoal necessário para coletar, organizar e manter esses dados
4. Assumir compromisso de longo prazo e cultivar confiança, mesmo sem um acordo sobre métodos. | Confiança é um capital de valor inestimável que se acumula lentamente. Problemas sociais são profundos e duradouros. Enfrentá-los exige anos – quando não décadas – de trabalho e colaboração. Investir em relações sólidas e na construção de confiança na comunidade trará retornos no longo prazo.
Agências públicas e organizações sociais em geral entendem o valor da confiança. Agências habitacionais que trabalham para instalar pessoas em situação de rua em moradias acessíveis sabem que esse processo pode levar uma década. Já empresas, guiadas pela lógica do retorno sobre o investimento, tendem a buscar resultados rápidos, capazes de impressionar consumidores e acionistas. Gestores públicos, por sua vez, estão sujeitos a ciclos eleitorais em que é difícil vender benefícios intangíveis como confiança ao grande público – que não é, em sua maioria, composto por grupos marginalizados. Isso posto, para que uma parceria funcione como repositório de conhecimento e ação, como demonstraram a Occupy Medical e o programa Rest-Stop durante a pandemia, a confiança mútua é fundamental e pode trazer resultados mais duradouros e valiosos do que vitórias pontuais chamativas.
O Solarpunks Club é um bom exemplo da tensão entre compromissos de curto prazo e foco de longo alcance. A organização surgiu com um objetivo claro: tornar a energia 100% renovável uma realidade. No entanto, ao atuar num setor consolidado como o do entretenimento, precisou negociar com produtores de eventos e parceiros cujas metas nem sempre estavam à altura dessa ambição. Ainda assim, o clube manteve o diálogo e seguiu construindo alianças com base na boa vontade e na busca por pontos de convergência. Essa estratégia tem trazido frutos: hoje o grupo participa de mais eventos de grande porte movidos a energia solar, como o primeiro show 100% solar no Brooklyn, em Nova York, em outubro de 2024.
Governar com beneficiários
Nosso modelo defende a ideia de governar com beneficiários, e não só envolvê-los pontualmente. Em todas as experiências que observamos, foi preciso colocar os beneficiários no centro da concepção e da operação para cultivar capacidades latentes e gerar impacto de longo prazo. Esse compromisso trouxe complexidade, mas foi essencial para todas as iniciativas. No caso do Rest-Stop e da SquareOne Villages, por exemplo, ter indivíduos em situação de rua como cofundadores ajudou a resolver os desafios de conhecimento e valoração, e garantiu que os tomadores de decisão manteriam a visão de longo prazo do projeto. Já a Occupy Medical priorizou objetivos relevantes para os beneficiários, e não problemas de maior apelo midiático – justamente porque os próprios usuários indicaram os serviços que queriam.
Propomos o modelo SSLC como uma ferramenta complementar a outras boas abordagens. Por exemplo, o modelo de “benefício viável mínimo” apresentado por Vanessa Laird, Kathy Quick e J. Myles Shaver dá orientações para a aplicação de táticas do SSLC nos estágios iniciais de uma parceria.4 Combinar nosso modelo com parcerias estruturadas segundo o modelo de valor compartilhado pode permitir que gestores cultivem capacidades latentes a partir da perspectiva dos beneficiários, mesmo em parcerias caras e de alta visibilidade, fortalecendo tanto seu impacto como sua resiliência cívica.
Notas
- Ver Mohamed Hassan Awad, “Place and the Structuring of Cross-Sector Partnerships: The Moral and Material Conflicts Over Healthcare and Homelessness”, Journal of Business Ethics, v. 184, n. 4, 2023; M. H. Awad, Mabel Sanchez e Matthew A. Abikenari, “The Values Work of Restorative Ventures: The Role of Founders’ Embodied Embeddedness with at-Risk Social Groups”, Journal of Business Venturing Insights, v. 18, 2022; M. H. Awad, “Everything, All the Time: Engaging the Social Problem of Homelessness in Entrepreneurship Research and Practice”, Journal of Business Venturing Insights, v. 20, 2023.
- Como argumenta Kathleen Kelly Janus, a complexidade desses desafios exige soluções colaborativas que aproveitem as forças únicas dos setores público, privado e sem fins lucrativos. Ver “Governar bem exige parcerias”, Stanford Social Innovation Review Brasil, n. 9, p. 42-51, set. 2024.
- Célia Santos, Arnaldo Coelho e Alzira Marques, “A Systematic Literature Review on Greenwashing and Its Relationship to Stakeholders: State of Art and Future Research Agenda”, Management Review Quarterly, v. 74, n. 3, 2024.
- Ver “Iniciativas intersetoriais devem começar pequenas”, Stanford Social Innovation Review Brasil, n. 8, p. 46-53, jun. 2024.