O Futuro da Inovação é Coletivo

O mundo está passando por transformações econômicas, tecnológicas, geopolíticas, ambientais e sociais que nenhuma organização é capaz de enfrentar sozinha. Apenas um modelo coletivo de inovação social pode dar conta dos grandes desafios da humanidade  

Uma vasta rede de cursos d’água nasce nas geleiras andinas e atravessa o Equador e o Peru, alimentando o rio Amazonas e servindo de fonte primária de água para a região amazônica. Essa rede se estende por 35 milhões de hectares de mata densa e sustenta as “florestas vivas” (selvas vivientes) que ajudam a regular o clima e o regime de chuvas em vastas regiões e influenciam o equilíbrio climático global. A região possui um dos ecossistemas de maior diversidade do mundo e abriga mais de 30 povos indígenas – uma população de 700 mil pessoas que há mais de 10 mil anos vêm zelando por aquelas terras.

Na década de 1970, povos indígenas da região formaram alianças em seus respectivos países para tentar conter o avanço de indústrias extrativas e conquistar autonomia territorial. Empresas e governos semearam a discórdia para dividir as comunidades, alimentando conflitos internos para fazer avançar seus projetos. Em um caso notório no início dos anos 2000, o povo Kichwa de Sarayaku processou o governo do Equador – e ganhou – devido à falta de consulta prévia para a concessão da exploração de petróleo por uma empresa argentina. Outras comunidades indígenas da região, persuadidas por promessas de vantagens econômicas, empregos e infraestrutura, foram contra os Sarayaku. 

Em 2017, diante da destruição ambiental que ameaçava suas comunidades, um grupo de líderes indígenas decidiu que, em vez de lutar isoladamente, uniriam forças. Para essa campanha coletiva foi preciso superar o desafio de unir diferentes povos – cada qual com história, cultura e aspirações próprias – em torno de uma visão comum para sustentar seu modo de vida.

“Cada organização ou povo indígena caminhava sozinho, fazia seu próprio trabalho, mas essas iniciativas isoladas não eram capazes de enfrentar os principais problemas”, explica Uyunkar Domingo Peas Nampichkai, um dos líderes da Alianza Cuencas Sagradas Amazónicas (ACSA). “Onde havia divisão, tivemos de nos unir. Onde havia disputa de poder, tive de ir e conversar com cada um separadamente para entender as razões. Com essas informações, todo mundo se convenceu de que precisávamos disso agora.”

Em 2019, uma delegação de líderes indígenas de diferentes nações amazônicas apresentou a ideia durante a Cúpula do Clima da ONU, em Madri. A partir daí, representantes de 30 povos indígenas se reuniram ao longo de três anos e meio para garantir a inclusão de vozes de todos os povos, organizações e aliados. O processo de construção de uma visão regional única incluiu oficinas com parceiros da iniciativa, equipes técnicas e grupos territoriais. O resultado foi a publicação de um plano biorregional com nove propostas para interromper atividades de indústrias nocivas ao meio ambiente e criar alternativas viáveis a esse modelo extrativista de desenvolvimento econômico.

Ilustrações de John Hersey

Cada proposta inclui tanto objetivos imediatos, como a geração de empregos sustentáveis para jovens indígenas, quanto metas de longo prazo como a transição para uma economia regenerativa em parceria com investidores em soluções climáticas e empresas de tecnologia. Hoje, a ACSA é a maior aliança de conservação liderada por povos indígenas do mundo, com diversas vitórias políticas e legais, incluindo uma petição internacional que ajudou a barrar um projeto de lei no Peru que retiraria direitos de povos indígenas isolados e o apoio a um referendo histórico no Equador para frear a exploração de petróleo no Parque Nacional Yasuní. A visão coletiva da ACSA permitiu que comunidades indígenas assumissem protagonismo no cenário global, em vez de permanecerem reféns de interesses corporativos e políticos.

Como mostra a ACSA, o trabalho isolado de organizações não é capaz de dar resposta a transformações econômicas, tecnológicas, geopolíticas, ambientais e sociais velozes e simultâneas. Soluções tendem a surgir na interseção de setores, disciplinas e comunidades e, para serem eficazes e duradouras, exigem a participação de quem vive o problema mais de perto. No entanto, a colaboração entre pessoas, organizações e setores tão diversos traz desafios que os modos tradicionais de atuação – como intervenções pontuais, projetos de curta duração ou a mensuração de impacto focada apenas em resultados imediatos – não conseguem atender de forma satisfatória.

Estudamos o caso da ACSA e várias outras iniciativas que constituem o que chamamos de inovação social coletiva: a colaboração de múltiplas organizações para enfrentar problemas sociais sistêmicos complexos demais para serem solucionados de forma isolada. Neste artigo, analisamos como esses inovadores organizam seu trabalho, incluindo arquiteturas, caminhos e atividades que reúnem as partes interessadas com regularidade ao longo do tempo para promover mudanças em grande escala, bem como a infraestrutura logística que sustenta esse trabalho. Nosso objetivo é apresentar ideias e lições resultantes dessa análise que possam ser aplicadas em distintas áreas de interesse no campo da ação coletiva. 

O poder da abordagem coletiva

Abordagens coletivas não são novidade. Aliás, a ação coletiva talvez seja o maior superpoder da humanidade. Ao longo da história, processos coletivos assumiram diversas formas: rituais comunitários transmitidos entre gerações, campanhas de ajuda mútua, movimentos sociais que derrubaram regimes opressores. Por meio dessas práticas unificadoras, há muito tempo comunidades têm promovido mudanças e cultivado resiliência. 

O mundo hoje é mais populoso e plural do que em eras passadas e está cada vez mais paralisado pela polarização. Ao mesmo tempo, novas tecnologias prometem ampliar plataformas para a colaboração, mas também amplificam vozes isoladas e reforçam bolhas de informação e experiência.

“Colaborar em meio a diferenças é cada vez mais necessário e penoso”, diz Adam Kahane, diretor da Reos Partners e autor de Trabalhando com o inimigo: Como colaborar com pessoas das quais você discorda, não gosta ou desconfia. “Para enfrentar os desafios à nossa frente, precisamos trabalhar com ‘os diferentes’, pessoas de organizações, setores e origens diversas, sejam vizinhos ou gente do outro lado do mundo. Mas nossa tendência a categorizar os outros como certos ou errados, bons ou maus, amigos ou inimigos está tornando mais difícil fazer o que precisamos fazer.”

Nos últimos 15 anos, lideranças e especialistas do setor social têm buscado cada vez mais entender como a sociedade civil, o poder público e a iniciativa privada podem trabalhar juntos para promover mudanças positivas na sociedade. Essa discussão se desenrolou na Stanford Social Innovation Review em resposta a mudanças concretas em formas de atuação. Em 2011, John Kania e Mark Kramer destacaram a premência de abordagens colaborativas multissetoriais em um artigo amplamente citado, “Impacto coletivo”. Johanna Mair e Thomas Gegenhuber levaram o conceito mais além em “Inovação social aberta”, frisando a necessidade de inovação tanto em processos como em resultados: “A nosso ver, a inovação social precisa de uma transformação. É hora de superar a ideia de indivíduos heroicos […] como agentes únicos da mudança social. Em vez disso, é preciso experimentar a inovação social com base na ação coletiva”. Um sinal da importância crescente desse trabalho no campo da inovação social foi o surgimento de novos termos para esse modelo, como “orquestradores de sistemas”, “catalisadores do campo” e “estratégias coletivas” (ver edição 11 da SSIR Brasil).

A inovação social coletiva reforça a coesão social e permite que inovadores, financiadores, empresas e autoridades públicas trabalhem por objetivos concretos

Apesar do amplo debate crítico sobre o tema, as diversas estratégias adotadas por inovadores para organizar seu trabalho coletivo ainda são pouco compreendidas – e, além disso, falta documentar devidamente seu impacto e sua eficácia. Em resposta a isso, dois dos autores deste artigo, Cynthia Rayner e François Bonnici, pesquisaram e descreveram princípios e práticas envolvidos no trabalho sistêmico no livro The systems work of social change. Recebemos um volume expressivo de manifestações de organizações aplaudindo esse esforço de estruturação de suas abordagens coletivas. Em 2022, o conselho da Fundação Schwab criou o prêmio Inovação Social Coletiva para destacar aqueles que se dedicam a definir e organizar o trabalho coletivo. Na nossa definição, inovadores sociais coletivos são lideranças transetoriais que comandam, orquestram ou facilitam grupos ou redes de organizações às voltas com desafios grandes demais para uma organização enfrentar isoladamente. É importante destacar que o que esses inovadores fazem não é simplesmente ampliar intervenções programáticas, mas adotar abordagens especialmente adequadas para promover mudanças sistêmicas em larga escala.

Desde o lançamento do livro e da criação do prêmio, nosso interesse está voltado ao leque de abordagens coletivas e aos métodos e resultados produzidos por esses inovadores. Descobrimos que a inovação social coletiva não se encaixa em modelos, checklists ou fórmulas prontas. É, na verdade, uma atividade ampla, que varia muito conforme o contexto, a cultura e o tema em questão. A inovação social coletiva reforça a coesão social e, ao mesmo tempo, permite que inovadores, financiadores, empresas e autoridades públicas trabalhem por objetivos concretos. Quando grandes grupos de atores agem juntos, é possível usar recursos de forma mais eficiente, reunir dados sobre populações inteiras, compartilhar práticas baseadas em evidências e promover e implementar políticas eficazes e financeiramente viáveis.

Registramos aprendizados surgidos dessas abordagens no relatório The future is collective, que inclui lições compartilhadas por cerca de 40 organizações durante o Collective Action Convening, um encontro da Fundação Schwab realizado em Genebra, Suíça, em outubro de 2024. Essas lições foram complementadas por 17 entrevistas em profundidade realizadas para a elaboração de dez estudos de caso sobre inovação social coletiva. O relatório destaca os valores e o impacto desses inovadores, bem como as arquiteturas, caminhos e atividades coletivos que fundamentam a inovação social coletiva. Também detalha a infraestrutura que permite o trabalho coletivo e dá sugestões para que diferentes atores possam se preparar melhor para agir nessa área.

Não surpreende que, diante da heterogeneidade das questões, dos territórios e dos próprios inovadores, as estratégias nas organizações que estudamos variem muito. No entanto, ao analisarmos o conjunto dessas iniciativas, identificamos padrões e temas comuns que nos ajudaram a entender melhor o trabalho. Esse grupo de inovadores organiza sua ação a partir de valores e só então começa a desenvolver abordagens e soluções. Seguindo seu exemplo, vamos começar pelos valores comuns que norteiam suas ações.

Valores coletivos 

Assim como todo inovador social, inovadores sociais coletivos concebem e implementam modelos organizacionais inovadores para enfrentar desafios da sociedade. O que distingue estes últimos é o compromisso com uma série de valores operacionais que enfatizam a inclusão de diferentes stakeholders, perspectivas e soluções para o enfrentamento de questões sociais. Nos casos que analisamos, esses valores brotam da experiência acumulada ao longo do tempo pelos inovadores no enfrentamento de desafios complexos e de grandes proporções, como pobreza e mudanças climáticas, e da constatação de que programas pontuais e organizações isoladas não são capazes de resolver, por si sós, esses problemas. Esses valores influenciam tanto processos como resultados. Quando aplicados a uma região ou a um tema, por exemplo, garantem que múltiplas vozes – incluindo a de quem tem experiência direta ou pessoal com o problema – participem da criação de soluções. O foco na representação e na participação é tanto uma questão de princípios como de pragmatismo: soluções costumam ser mais eficazes e duradouras quando contam com a participação direta de quem será impactado pelos resultados. 

Em nosso estudo, identificamos cinco valores operacionais que embasam o trabalho de inovadores sociais coletivos. Usamos o caso da ACSA para detalhá-los a seguir.

1. Conjunção de uma diversidade de atores para cocriar soluções. | Para promover a participação de diferentes stakeholders desde o início, inovadores sociais coletivos criam estruturas que garantem esse envolvimento de forma contínua. E, ao reunir comunidades, ONGs, empresas e o poder público, desenvolvem processos colaborativos que resultam em soluções mais práticas e duradouras. A ACSA, por exemplo, está unindo comunidades indígenas em torno de uma visão comum para a região, em vez de ficar competindo por recursos sob influência de indústrias extrativas. Mas a ACSA não se limita ao papel de adversária. Seus membros buscam estabelecer parcerias construtivas com o setor privado e com o poder público para a criação de modelos sustentáveis para o ecoturismo, por exemplo, ou o fortalecimento de políticas de proteção ambiental. Essas parcerias criam relações colaborativas e abrem caminho para soluções mais perenes, no lugar de ações pontuais que criam confronto mas não mudam a dinâmica da cooperação entre os atores.

2. Compromisso com impacto sistêmico definitivo em vez de soluções provisórias. | Para promover mudanças duradouras e em larga escala, inovadores sociais coletivos articulam diferentes perspectivas sem perder o foco no propósito comum. Em vez de trabalhar pelo consenso, priorizam a escuta atenta e consultas significativas, garantindo que o impacto seja o motor da ação. No caso da ACSA, o processo de consulta para traçar um plano biorregional durou três anos e meio e envolveu o diálogo com mais de 20 povos indígenas e especialistas internacionais em economia, meio ambiente e planejamento regional. Com o incentivo da ACSA, esses povos manifestaram o desejo de preservar seu modo de vida na transição para um futuro justo. Embora complexo e demorado, esse processo atacou a raiz do problema, não os sintomas superficiais, garantindo que os planos resultantes fossem ao mesmo tempo ambiciosos e factíveis.

3. Garantia de flexibilidade pela antecipação de imprevistos e aprendizado com erros. | Inovadores sociais coletivos valorizam a capacidade de adaptação e o aprendizado com erros, permitindo que sua estratégia evolua conforme a experiência e as necessidades locais. São abertos a mudanças, ajustando sua abordagem à medida que a situação evolui, em vez de se aferrar a planos rígidos. Essa flexibilidade estimula a criatividade e permite que as comunidades implementem as próprias ideias de acordo com um propósito comum. No caso da ACSA, os povos indígenas agora estão unidos por um plano biorregional e o compromisso de trabalhar juntos para identificar políticas, parcerias e fontes de financiamento para sua execução. Ao mesmo tempo, cada grupo desenvolve e testa abordagens adequadas a sua própria comunidade. Ao permanecer conectados, serão capazes de aprimorar soluções e dar respostas eficazes a desafios e oportunidades inesperadas.

Inovadores sociais coletivos criam uma estrutura de sustentação sobre a qual outras iniciativas, projetos e organizações podem se apoiar para potencializar seu próprio impacto

4. Restituição do protagonismo daqueles diretamente afetados pelo problema. | Inovadores sociais coletivos fazem questão de que os mais impactados por um problema tenham papel central na criação das soluções. No caso da ACSA, esse compromisso com a participação direta dos povos indígenas levou recentemente à criação de uma nova entidade jurídica no Equador, com governança indígena (até então, a ACSA atuava com o apoio de uma ONG equatoriana). Para auxiliar essa transição e fortalecer a liderança indígena em outras iniciativas e organizações, a ACSA criou a Escola Viva da Amazônia, que capacita jovens líderes em governança e direitos legais. Essa iniciativa vai produzir lideranças mais relevantes e sustentáveis para a região e, ao mesmo tempo, resgatar o senso de protagonismo, dignidade e resiliência das comunidades.

5. Garantia do respeito e equilíbrio na relação entre as pessoas e a natureza. | Inovadores sociais coletivos entendem que o bem-estar humano está ligado tanto à sociedade como ao meio ambiente. Não se concentram apenas em soluções técnicas, mas buscam abordagens holísticas que fortaleçam as comunidades e preservem recursos naturais. Para os líderes da ACSA, as comunidades indígenas têm muito a contribuir para o debate global sobre as mudanças climáticas e a proteção ambiental. Por isso defendem a combinação do conhecimento tradicional com a ciência moderna, com ênfase na filosofia amazônica do buen vivir (o bem-viver coletivo). O objetivo final é desenvolver soluções que garantam a proteção permanente de ecossistemas e a transição para uma economia regenerativa.

Arquiteturas coletivas

Em sintonia com seus valores, inovadores sociais coletivos não seguem padrões convencionais na hora de se organizar. Seu modelo, que chamamos de arquitetura coletiva, cria uma estrutura de sustentação sobre a qual outras iniciativas, projetos e organizações podem se apoiar para potencializar seu próprio impacto. Essa arquitetura permite que inovadores sociais coletivos mobilizem uma vasta rede de stakeholders e direcionem atividades de diferentes atores para maximizar sua contribuição e sua expertise sem ignorar o conhecimento local nem as necessidades do contexto. 

Um exemplo é o MapBiomas, uma rede aberta colaborativa que usa tecnologia e dados para monitorar mudanças na cobertura e no uso da terra. Fundada em 2015 no Brasil, a rede reúne atualmente mais de cem organizações em 14 países. A plataforma permite que integrantes da rede produzam mapas das transformações no uso da terra em seu território nos últimos 40 anos, com um grau de precisão, agilidade e qualidade considerado impossível no passado. Hoje, os dados são acessados anualmente por mais de 600 mil usuários, entre governos, instituições financeiras, empresas do setor agrícola e ONGs. Todos os dados e códigos são abertos e disponíveis de forma gratuita.

Apesar de toda essa atividade, o MapBiomas não possui personalidade jurídica nem um único funcionário contratado. A iniciativa é operada por mais de 500 cocriadores, vinculados a outras instituições e integrados em uma vasta rede global, que dedicam tempo e energia ao projeto. Nesse modelo colaborativo e aberto, “as pessoas em cada país e região estão aplicando a mesma lógica e os mesmos aprendizados para resolver outros problemas e desenvolver outros projetos além do MapBiomas, respondendo a necessidades locais com a mesma tecnologia”, explica Tasso Azevedo, fundador do MapBiomas.

Cada iniciativa tem elementos críticos para promover e orientar a colaboração: uma visão ampla, princípios norteadores, uma série de métodos e um repertório de práticas

Embora cada caso que estudamos trate de uma questão social específica e congregue atores diversos – alguns operando com personalidade jurídica, outros não –, a organização de suas arquiteturas é semelhante. Cada arquitetura constitui uma estrutura em múltiplas camadas, projetada para viabilizar a representação e a participação de centenas de milhares – e, às vezes, milhões – de pessoas. Em geral, essa arquitetura é formada por três camadas distintas. A camada de ação reúne grupos de base que interagem diretamente com públicos locais para realizar atividades no território. A camada de rede funciona como o tecido conjuntivo, unindo esses grupos em diferentes pontos do mapa para criar coesão e um propósito comum. Por último, a camada de apoio dá suporte administrativo, gerindo recursos, coordenando esforços e viabilizando a sustentabilidade a longo prazo para garantir a continuidade da iniciativa. Juntas, essas camadas formam um sistema de ação coletiva dinâmico e expansível.

No caso do MapBiomas, a camada de ação inclui mais de 20 iniciativas organizadas em 20 regiões distintas, incluindo 14 países e territórios, além de áreas temáticas como fogo, água, solo e cobertura da terra. A produção de mapas não é centralizada: são as iniciativas locais e temáticas que o fazem, em resposta a necessidades locais. Para lançar o MapBiomas em uma nova região, integrantes da rede apoiam um grupo de atores locais que inclui uma amostra representativa de acadêmicos, startups de tecnologia e organizações da sociedade civil. Quando uma iniciativa é lançada, as organizações participantes passam a integrar o MapBiomas naquela região. Juntos, esses territórios compõem a camada de rede, que hoje reúne mais de cem organizações comprometidas com o apoio coletivo às iniciativas. Em uma ação colaborativa, essas organizações trabalham então para desenvolver e aplicar a metodologia MapBiomas e apoiar cada iniciativa na produção de mapas de uso da terra para suas respectivas regiões e temáticas. Todos os cocriadores do MapBiomas usam a mesma infraestrutura de nuvem para processar mapas e dados. A rede conta ainda com o suporte da camada de apoio do MapBiomas, composta por uma equipe de coordenação de quatro pessoas, três patrocinadores fiscais e equipes centrais de cocriadores que trabalham na infraestrutura tecnológica da plataforma.

Como mostra o MapBiomas, o propósito dessas arquiteturas é triplo. Primeiro, a representação: garantir que uma multiplicidade de partes interessadas seja incluída e que atores de diferentes áreas de especialização possam encontrar seu lugar no esforço coletivo. Segundo, o aprendizado: indivíduos e organizações se conectam à arquitetura para descobrir o que outros estão fazendo e encontrar parceiros com expertise para apoiar seu próprio trabalho. Terceiro, a colaboração: graças à arquitetura, todo grupo pode encontrar parceiros para ampliar suas capacidades e alcançar mais do que conseguiriam sozinhos.

Caminhos coletivos

Cada um dos inovadores sociais coletivos que analisamos seguiu um caminho distinto para chegar a um entendimento comum sobre a ação coletiva com sua rede de parceiros. Embora cada trajetória dessas seja única e inspiradora, havia padrões comuns na maneira de congregar os grupos envolvidos. E cada iniciativa tem elementos críticos para promover e orientar a colaboração. É o que chamamos de caminhos coletivos: uma visão ampla, princípios norteadores, uma série de métodos e um repertório de práticas. Como um mapa do terreno, esses componentes fazem os grupos seguir numa mesma trilha, mesmo quando objetivos específicos, agendas e motivações são diferentes.

O primeiro passo desse trabalho é identificar interesses comuns e divergentes e transformar isso tudo em uma visão geral do futuro. Esse processo geralmente exige um diálogo profundo, com grupos se reunindo constantemente para que todos possam ser ouvidos. O compromisso da ACSA de reunir 30 povos indígenas das cabeceiras do rio Amazonas no Peru e no Equador para discutir suas visões para o futuro é um exemplo dessa abordagem.

Em geral, inovadores sociais coletivos fazem um trabalho intenso para desenvolver sua visão, recorrendo a processos participativos que permitam a contribuição de grupos, organizações e pessoas representadas pelo coletivo. Priorizam soluções conciliatórias e concessões feitas com sensibilidade para chegar, ao final, a uma visão ampla que possa ser ajustada a cada contexto. Em outras palavras, a visão estratégica funciona como um norte, não como uma fórmula rígida. Nessas iniciativas, os meios são tão importantes quanto os fins, já que o processo cria os vínculos que permitem ao coletivo permanecer unido durante as etapas mais difíceis de implementação que virão.

Muitos inovadores sociais coletivos dedicam um tempo considerável à criação de uma narrativa comum para ampliar suas bases e superar divisões históricas

Além dessa visão geral, inovadores sociais coletivos também adotam uma série de princípios que funcionam como diretrizes para a realização da visão. Às vezes, esses conceitos norteadores são criados intencionalmente; em outras, surgem de forma natural à medida que os grupos trabalham juntos. Um exemplo de esforço intencional foi realizado pela StreetNet International, uma aliança global de vendedores ambulantes concebida em uma reunião em 1995 no Bellagio Conference Center, na Itália.

Assim como a ACSA, os fundadores da StreetNet fizeram uma série de consultas regionais para chegar à sua visão para a aliança. O passo seguinte foi redigir a “constituição” da StreetNet, um documento que estabelece os princípios da organização. Um deles determina que pelo menos 50% dos cargos sejam ocupados por mulheres. Esse princípio foi o resultado de um esforço intencional dos criadores da aliança para garantir a inclusão de um sistema de cotas nos estatutos da organização e sua posterior aplicação.

A StreetNet cresceu e hoje é uma aliança autônoma e democrática formada por 62 associações que representam 916.015 vendedores ambulantes, feirantes, camelôs e comerciantes transfronteiriços em 55 países. O princípio da liderança feminina se manteve forte ao longo de sua história. Em 2016, a aliança elegeu a primeira presidente mulher: Lorraine Sibanda Ndlovu, que segue no posto até hoje.

Outra característica de inovadores sociais coletivos é montar um portfólio de métodos que podem ser usados pelos grupos participantes em seu trabalho. Em geral, esses métodos são extraídos da vasta experiência de grupos de base e, em muitos casos, são validados por evidências sólidas acumuladas ao longo dos anos. Em outros casos, são cocriados por membros da rede em um processo de partilha de conhecimentos e criação de novas abordagens inspiradas em erros e acertos do passado. Embora estabeleçam diretrizes claras, esses métodos são flexíveis, permitindo variações segundo o contexto e iterações à medida que surgem novos aprendizados.

Essa atenção a métodos é evidente na ProjectTogether, uma organização alemã sem fins lucrativos criada com a ideia de que a sociedade precisa de um novo “como” para vencer seus maiores desafios. Em 2020, a ProjectTogether coorganizou um hackathon virtual – o #WirVsVirus – para enfrentar desafios decorrentes da pandemia de covid-19. O evento reuniu 28.361 cidadãos e produziu 1.498 soluções em 48 horas. De lá para cá, a ProjectTogether vem modificando e aplicando seus métodos (ou “modelo operacional”) em dez áreas temáticas, incluindo a escassez de trabalhadores qualificados e empregos verdes, processos de acolhimento de refugiados e migrantes, economia circular e agricultura e sistemas alimentares regenerativos.

Essa clareza sobre o modelo operacional é fundamental, pois funcionários da ProjectTogether não concebem nem implementam diretamente as ações relacionadas à missão. Seu papel é o de facilitadores: garantir que integrantes da comunidade recebam o apoio necessário para tocar projetos de ação coletiva (PACs). Esse repertório de métodos traz diretrizes para um projeto desde sua concepção até a implementação; já o modelo operacional é atualizado regularmente para incorporar novos aprendizados. “Todo trimestre, reunimos a equipe para um intercâmbio de aprendizados”, explica a diretora-gerente Henrike Schlottmann. “Uma vez por ano, durante uma dessas reuniões, fazemos a atualização do modelo operacional. Às vezes, é um ajuste pequeno; em outras, pode ser uma reformulação completa.” A ProjectTogether já ajudou 100 mil pessoas em 3 mil organizações a projetar e implementar mais de 75 PACs que vão de iniciativas tecnológicas – como uma plataforma para conectar refugiados a moradias – até projetos educacionais, incluindo um programa que conecta pessoas em busca de trabalho a setores com foco em sustentabilidade.

O quarto e último componente do caminho coletivo é a criação de um conjunto de práticas para promover mudanças. Diferentemente da visão, dos princípios e dos métodos, essas práticas funcionam mais como um menu de opções do que uma receita: dão ideias e sugerem experimentos que podem ser usados pelos grupos para dar continuidade a suas agendas, centradas nas necessidades locais.

Um exemplo desse modelo fundado em práticas é o Shikshagraha, um movimento voltado à melhoria do ensino público na Índia. O movimento surgiu do trabalho coletivo de quatro organizações sem fins lucrativos em Punjab para melhorar os resultados educacionais no estado. Essas organizações decidiram trabalhar com o sistema público de ensino para aproveitar o que já estava funcionando. O Shikshagraha prioriza um conjunto de práticas que chama de micromelhoramentos. O objetivo é devolver o protagonismo aos participantes e desenvolver lideranças ao envolver pais, professores, gestores escolares e administradores distritais na identificação de problemas locais e na cocriação de projetos de aperfeiçoamento que possam ser implementados com mínimo esforço e poucos recursos adicionais. O Shikshagraha tem uma lista crescente de micromelhoramentos cocriada com líderes distritais, incluindo reuniões entre pais e professores, horas dedicadas à leitura durante o horário escolar e a criação de espaços de aprendizagem em casa.

Micromelhoramentos são projetados para ser fáceis de implementar, de modo a permitir que gestores distritais escolham ações viáveis em sua jurisdição. Devido à simplicidade e ao uso da equipe e da infraestrutura já existentes, a escala e o impacto desses micromelhoramentos são impressionantes.

No coletivo inicial, o Punjab Education Collective, foram implementados micromelhoramentos em 19 mil escolas com um total de 2 milhões de alunos. Em quatro anos, essas ações ajudaram a elevar os resultados do estado de Punjab da metade inferior entre 28 estados para o primeiro lugar do país em dois indicadores importantes, o Performance Grading Index e o National Achievement Survey. O movimento tem tudo para atingir a meta de melhorar os resultados educacionais de 40 milhões de crianças em cem distritos até 2027.

O fato de esses caminhos coletivos levarem tempo para ser construídos pode parecer um contrassenso diante de problemas urgentes. Porém, “não pode haver pressão ou pressa”, diz Khushboo Awasthi, idealizadora do Shikshagraha. “Para um verdadeiro ajuste entre problemas e propósito é preciso paciência, além de espaços para diálogo e construção de confiança. É preciso sacrificar a velocidade no curto prazo – desacelerar no começo e avançar mais depressa a longo prazo – para criar algo realmente eficaz e sustentável para o futuro.”

Atividades potencializadoras 

Inovadores sociais coletivos também promovem uma série de atividades conjuntas voltadas a potencializar o trabalho dos grupos, de modo a garantir sua eficácia e manter o ritmo da mudança. Nosso estudo classificou as atividades em cinco áreas, com distintos graus de prioridade conforme as necessidades da iniciativa. Alguns inovadores, por exemplo, concentravam o esforço no fortalecimento de sistemas de dados; em outros casos, a principal atividade eram comunidades de aprendizado. A lista de atividades não é um checklist, mas um conjunto de possibilidades que inovadores sociais coletivos podem explorar. 

Construir movimentos | A construção de movimentos é a capacidade de manter e ampliar a base de representados e, ao mesmo tempo, consolidar poder e avançar rumo à mudança. O que alimenta essa atividade é a ideia comum de transformação que une os grupos. Muitos inovadores sociais coletivos dedicam um tempo considerável à criação de uma narrativa comum para ampliar essas bases e superar divisões históricas entre grupos. Com frequência, essa nova narrativa questiona a narrativa vigente – que normalmente provoca divisão – e cria oportunidades para aproximar os grupos. 

A StreetNet, por exemplo, questionou de frente a narrativa de que não havia espaço no movimento trabalhista global para quem trabalha na informalidade. Na visão dos sindicalistas tradicionais, o trabalhador devia primeiro ser formalizado para só então poder ser representado por sindicatos. O resultado foi que categorias como a de ambulantes ficaram excluídas de discussões sobre a defesa dos direitos dos trabalhadores, especialmente no âmbito de organismos como a Confederação Sindical Internacional e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ao promover a solidariedade internacional entre associações dessas categorias excluídas e trabalhar com outras alianças da economia informal, a StreetNet pressionou por um maior reconhecimento da economia informal e, aos poucos, instituiu uma nova narrativa que legitima vendedores ambulantes como uma base de representação. Esse trabalho contribuiu para a aprovação, em 2015, da Recomendação 204 da OIT, que dá diretrizes para que governos apoiem o trabalhador informal e integrem a categoria a sistemas de proteção social e direitos trabalhistas. 

Segundo os inovadores sociais coletivos, as competências que contribuem para o sucesso coletivo são diferentes das habilidades que levam ao êxito individual

Fortalecer sistemas de dados | Inovadores sociais coletivos também aproveitam sua ampla rede de articulação para reunir vastas bases de dados que permitem, no plano interno, que grupos envolvidos trabalhem com uma compreensão comum dos problemas e, no externo, ajudem outras organizações e governos a trabalhar de forma mais eficiente. Em geral, a falta de clareza atrapalha a coleta de dados em grande escala; quando é assim, inovadores sociais coletivos ajudam a criar definições e métricas que viabilizem o acordo. Uma vez definidos conceitos comuns e suas métricas, é possível mobilizar novos relacionamentos e novas tecnologias para coletar dados que antes pareciam fora de alcance.

O MapBiomas, por exemplo, criou uma plataforma que permite ao usuário reunir imagens de satélite disponíveis no mundo todo e empregar algoritmos de aprendizado de máquina para analisar alterações na cobertura e no uso da terra e gerar mapas temáticos sobre água, fogo e solo. Antes do MapBiomas, até os maiores especialistas consideravam impossível criar mapas com esse nível de precisão e atualização. Hoje, usando a plataforma, mais de 500 cocriadores de instituições de pesquisa, da sociedade civil e de startups de tecnologia colaboram em escala global para classificar essas imagens e produzir mapas detalhados. Uma vez prontos, os mapas são acessados livremente por uma profusão de usuários – governos, promotores públicos, empresas, bancos, cientistas, imprensa – para as próprias finalidades. Os dados do MapBiomas reforçam a capacidade do poder público de monitorar as próprias políticas. Uma avaliação recente mostrou que 43% dos usuários do MapBiomas são de órgãos e departamentos da administração pública e que ações governamentais contra o desmatamento ilegal, que em 2019 – ano de início do sistema de alertas – miravam apenas 5% das áreas desmatadas, passaram a atingir mais de 50% em 2024.

Influenciar instituições | Inovadores sociais coletivos também buscam exercer influência sobre instituições públicas, defendendo políticas de apoio e forjando parcerias. Nisso, diferem bastante de outros inovadores, pois sua legitimidade vem do fato de representarem grandes bases sociais, e não de oferecerem programas isolados ou exclusivos. Em alguns casos, inovadores sociais coletivos exercem essa influência de fora, por meio de campanhas de advocacy, iniciativas de educação jurídica e ações na Justiça. Em outros casos, trabalham lado a lado com órgãos públicos, colaborando de dentro das instituições públicas para aplicar conhecimento e expertise da coletividade a políticas e à sua implementação. 

O Shikshagraha, por exemplo, atua dentro do sistema público de ensino na Índia para dar apoio a escolas nas esferas nacional, estadual e distrital. Parceiros do coletivo se aproximam de governos estaduais com curiosidade e vontade de aprender. Trabalham junto com diretores e professores para promover micromelhoramentos, em vez de criar mais burocracia e camadas de administração.

Organizar comunidades de aprendizagem | Para incentivar a mudança, um recurso importante para inovadores sociais coletivos é criar espaços de aprendizado e troca entre suas bases sociais, que são amplas e diversas. A ideia desses espaços é dar condições para a colaboração e o fortalecimento do coletivo. Esse trabalho envolve registrar aprendizados, manter acervos de recursos, conduzir pesquisas, dar capacitação e conectar comunidades de prática. 

O ProjectTogether é um exemplo nesse quesito, pois promove diversos espaços e oportunidades para que membros da comunidade compartilhem aprendizados. A organização mantém um espaço físico na região central de Berlim para realizar eventos híbridos, como rodas de conversa, painéis e sessões de aprendizado entre pares. A equipe do ProjectTogether entende que indivíduos que aprendem juntos dão um passo essencial para compartilhar uma cultura e confiar uns nos outros. 

Investir em soluções sistêmicas | Por último, inovadores sociais coletivos sabem que contar com recursos financeiros é fundamental para que os grupos integrantes do coletivo não esmoreçam. Em vários casos, estão criando fundos coletivos e novos instrumentos financeiros que garantem um financiamento mais sustentável para grupos de base. 

A liderança da ACSA, por exemplo, tem plena consciência de que a falta de investimento direto nas comunidades indígenas abriu espaço para que indústrias extrativas e políticos dividissem as comunidades com promessas de investimentos e recursos. O plano biorregional da ACSA aponta caminhos para avançar em duas frentes de financiamento. Primeiro, está criando um fundo que reunirá recursos para apoiar diretamente iniciativas lideradas por indígenas nas áreas de segurança alimentar, alternativas de sustento, monitoramento florestal, saúde e educação interculturais e energia renovável. Ao mesmo tempo, a ACSA vem desenvolvendo soluções financeiras inovadoras para incentivar a proteção da floresta e conter o desmatamento, como a geração de renda com a floresta em pé, o pagamento por serviços ecossistêmicos e investimentos em polos de bioeconomia.

Infraestruturas de apoio 

Outra coisa que inovadores sociais coletivos fazem é montar uma infraestrutura de apoio para chegar a um equilíbrio entre adaptabilidade e estabilidade, algo essencial para manter a motivação e a participação de atores distintos a longo prazo. Estruturas de governança e participação, cultura de equipe, capacitação do pessoal e tecnologias que viabilizam o trabalho são importantes para essas infraestruturas de apoio. Como grande parte desse trabalho ocorre nos bastidores e evolui ao longo do tempo, certos parceiros, financiadores e autoridades públicas podem ter dificuldade para entender ou valorizar plenamente sua importância. Vencer esse obstáculo exige abordagens distintas para quem trabalha com inovadores sociais coletivos.

Governança | Na maioria dos casos estudados, inovadores sociais coletivos estão intencionalmente criando estruturas de governança para garantir processos decisórios justos, abertos e flexíveis, ao mesmo tempo que mantêm conexões fortes entre os envolvidos. A StreetNet, por exemplo, segue um modelo de governança democrática e participativa que assegura igual representação para as 62 organizações associadas. De quatro em quatro anos, delegados dessas organizações se reúnem para definir prioridades e eleger um conselho internacional composto de 15 membros que supervisionam políticas e programas. Um comitê executivo menor cuida das operações diárias e garante o alinhamento com a missão da StreetNet. 

Cultura de equipe e competências | Outro ponto destacado por inovadores coletivos é que qualquer abordagem coletiva exige uma cultura de equipe e competências que priorizem a flexibilidade e o aprendizado contínuo, combinando conhecimento técnico e habilidades de facilitação. Segundo eles, as competências que contribuem para o sucesso coletivo são diferentes das habilidades que levam ao êxito individual. Em instituições de ensino e de formação profissional, em geral são valorizadas habilidades voltadas a resultados definidos, como manter projetos dentro de prazos ou reduzir desvios em relação a procedimentos operacionais bem determinados. Já abordagens coletivas exigem a constante atenção à perspectiva de cada stakeholder e a contínua adaptação conforme novos aprendizados vão surgindo. “O diálogo é o mais importante”, diz Uyunkar Domingo Peas Nampichkai, presidente do conselho da ACSA. “Não [o diálogo] com raiva, gritos e ataques, mas com argumentos serenos, informação e clareza de intenção.”

Tecnologia viabilizadora | Essas organizações estão recorrendo a tecnologias que facilitam a comunicação, o compartilhamento de dados e a gestão de projetos, muitas vezes com recursos para a coordenação e o aprendizado com outros grupos e outras regiões. A tecnologia é crucial para o trabalho de certos inovadores sociais coletivos. É o caso do MapBiomas, que utiliza o Google Earth Engine e ferramentas de computação em nuvem. Em outros casos, a tecnologia age como uma força condutora, permitindo a conexão rápida e em geral barata de diferentes territórios – algo que há uma década era praticamente impossível.

Atores coadjuvantes | Por último, a inovação social coletiva precisa do apoio e do envolvimento de diferentes atores externos à estrutura do coletivo, como parceiros da iniciativa privada, financiadores, governos e responsáveis por políticas públicas. O setor privado costuma ser um parceiro importante em esforços coletivos, ajudando a reduzir a fragmentação e participando na resolução conjunta de problemas. Recursos tecnológicos do MapBiomas, por exemplo, dependem da parceria com a Google Earth. Já a ProjectTogether trabalha com a Wunderflats, uma plataforma de hospedagem sediada em Berlim, para identificar gente disposta a oferecer moradia a refugiados recém-chegados. Financiadores também são cruciais, pois garantem um fluxo sustentável de recursos e ajudam a criar ecossistemas que permitem o sucesso de inovadores sociais coletivos. 

Embora a ajuda filantrópica seja essencial, inovadores coletivos também vêm recebendo apoio de investidores financeiros. Ao desenvolver meios de pagamento por serviços ecossistêmicos e de gestão biocultural, por exemplo, a ACSA está abrindo caminho para novos instrumentos de financiamento que contribuem para a preservação da biodiversidade e de ecossistemas frágeis. E, ao investir na capacidade institucional de inovadores sociais coletivos, financiadores também colhem resultados maiores, já que esses coletivos distribuem aprendizados, dados e solidariedade por redes vastas, mesmo operando com equipes enxutas e orçamentos apertados. Por fim, governos e reguladores podem trabalhar lado a lado com inovadores coletivos para alinhar interesses, ter acesso a dados críticos e alcançar populações inteiras. O Shikshagraha é um exemplo: cada um de seus coletivos trabalha com sistemas escolares distritais para integrar micromelhoramentos diretamente por meio da liderança escolar. 

Impactos e desafios

A inovação social coletiva produz impactos que extrapolam uma causa ou organização específica. Porém, muitas vezes é difícil quantificar seus resultados. É que o impacto pode não ser facilmente medido em número de beneficiários ou em quantidade de produtos e serviços entregues, muito menos nas análises rigorosas de atribuição, o modelo preferencial de mensuração do impacto social. 

O MapBiomas, por exemplo, produz mapas que permitem a milhares de usuários entregar resultados em iniciativas de combate ao desmatamento em todo o mundo. Mas o próprio MapBiomas prefere minimizar sua contribuição para o esforço, pois em um ambiente politicamente tenso permanecer neutro é crucial para sua estratégia. No caso da StreetNet, a formação e o fortalecimento de lideranças são fundamentais para que movimentos de trabalhadores informais mobilizem cerca de 1 milhão de pessoas em 55 países – mas a verdadeira vitória é quando trabalhadores bem preparados assumem postos de liderança fora dessa rede.

Ao congregar grandes redes de atores que de outra forma seguiriam isolados, inovadores coletivos estão criando arranjos e narrativas capazes de promover conexões

Alguns dirão que nada disso é um impacto real, pois não são registrados “no território”. Diríamos, contudo, que esses são justamente os elementos estruturais que viabilizam mudanças sistêmicas. É verdade que não são estrondosos nem particularmente empolgantes, mas constituem a base invisível da inovação social coletiva, a estrutura que permite que tudo o mais funcione bem. Esses impactos estruturais incluem:

Terminologia comum | Todo grupo que participa de um esforço coletivo chega com perspectivas e prioridades distintas, o que pode dificultar a resolução de problemas. Para inovadores sociais coletivos, a adoção de uma terminologia comum é uma de suas maiores contribuições para a superação dessas diferenças, pois isso ajuda a coordenar esforços e a manter a colaboração no longo prazo. A terminologia compartilhada contribui para a elaboração de planos de ação conjuntos e métricas que estabelecem uma base comum entre os envolvidos, deixando espaço para metas diversas e abordagens flexíveis. 

Condutores do conhecimento das bases | Um dos grandes desafios da inovação social é que muitas organizações que estão prestando serviços ou oferecendo soluções estão distantes – geográfica e culturalmente – das comunidades que se propõem a atender. Com isso, acabam ignorando ou subutilizando saberes valiosos de atores locais. Inovadores sociais coletivos, no entanto, criam estruturas que preveem a participação direta de comunidades de base, envolvendo lideranças locais em processos de mudança e garantindo que seus conhecimentos e perspectivas influenciem as soluções.

Recursos coletivos | Inovadores coletivos buscam novas maneiras de gerir recursos comuns – uma necessidade urgente diante da crescente ameaça a recursos naturais e sociais. Em geral, tanto organismos de desenvolvimento como o setor público recorrem ao mercado ou a diretrizes estatais para distribuir bens comuns. No entanto, há séculos comunidades têm administrado coletivamente seus recursos. Ao resgatar as práticas tradicionais e desenvolver outras, os inovadores coletivos ampliam o leque de soluções sustentáveis.

Bases de dados amplas | É difícil criar políticas sociais e econômicas sólidas sem dados confiáveis, pois isso impede decisões fundamentadas e dificulta a adoção de políticas realmente eficazes. Diante desse desafio, inovadores coletivos usam sua ampla capilaridade para superar obstáculos à coleta de dados, reunir muita informação e garantir que dados sejam usados para gerar impactos significativos e duradouros.

Mobilização de recursos em larga escala | Inovadores sociais coletivos exercem um papel fundamental na captação e alocação de recursos financeiros para enfrentar desafios sociais. Em geral, uma organização sozinha simplesmente é incapaz de atingir o porte e a escala necessários para distribuir grandes volumes de recursos para diversos públicos. Enquanto o sistema tradicional de ajuda internacional costuma operar por meio de uma rede complexa e, por vezes, pouco eficiente de intermediários profissionais, estruturas coletivas de inovação social oferecem vias alternativas para canalizar recursos de forma mais ágil e direta a grupos de base, com menos custos de intermediação.

Apesar do forte papel que podem exercer, estruturas de inovação coletiva podem parecer complexas e difíceis de entender, pois foram feitas para a interlocução com grupos muito heterogêneos. A própria complexidade do trabalho costuma dificultar o fortalecimento de abordagens coletivas. Alguns desses desafios são:

Financiamento | Hoje, o modelo predominante na arena do desenvolvimento acaba promovendo uma disputa entre inovadores sociais, obrigando organizações que trabalham com causas semelhantes a competir por recursos e contratos. Como evidenciado pela atual crise internacional de financiamento, esse sistema é concentrado em poucos financiadores de peso e em relações frágeis. Para que a inovação social coletiva floresça, esse ambiente competitivo precisa dar lugar a um espaço colaborativo no qual organizações e grupos tenham incentivo para trabalhar juntos e cada ator encontre seu papel com base em sua experiência e contexto. Para fortalecer ecossistemas sustentáveis, financiadores podem apoiar a inovação coletiva com práticas baseadas em confiança, maior flexibilidade, prazos mais longos e recursos voltados à infraestrutura que sustenta os coletivos, para que possam compartilhar conhecimentos e ampliar a capacidade dos grupos que integram suas redes.

Estruturas jurídicas | Uma vez que sistemas jurídicos e financeiros costumam ser pensados para organizações individuais, coletivos de inovação social frequentemente enfrentam uma burocracia redundante e desnecessária. Além disso, atores do poder público ainda esperam estruturas tradicionais de governança quando se relacionam com esses coletivos. Para apoiar melhor essas iniciativas, governos e formuladores de políticas precisam entender a fundo as formas singulares de organização coletiva e criar políticas e mecanismos de financiamento compatíveis com sua natureza descentralizada. Seria útil, também, instituir novas estruturas jurídicas que descentralizem as decisões entre vários grupos – em vez de concentrá-las em uma única entidade – e estabelecer parcerias com coletivos de inovação social para conectar iniciativas multissetoriais a serviços públicos, com formação, fortalecimento de capacidades e melhorias contínuas voltadas diretamente aos resultados nas comunidades.

Avaliação de impacto | A própria natureza descentralizada do trabalho coletivo torna difícil atribuir resultados a um único ator e, como vimos nos exemplos anteriores, essa lógica pode até limitar o impacto da atividade. O problema é que muitos dos envolvidos continuam condicionados a ver resultados atrelados a organizações ou programas isolados, e não a esforços colaborativos. Para superar esse obstáculo, será necessário ir além de relações transacionais e aprofundar parcerias para incluir a experimentação, o feedback e a adaptação. Ao aprender juntamente com inovadores, parceiros do setor privado, financiadores e autoridades públicas têm a chance de compreender melhor as realidades territoriais e as soluções propostas para os grandes desafios da sociedade. 

Criando o futuro juntos

A medida que a reconfiguração do cenário político, a incerteza econômica e o esgarçamento do tecido social expõem divisões profundas entre nós, enfrentar desafios sociais está cada vez mais difícil. E essas fraturas têm um alto custo, pois fatores cruciais da inovação – como criatividade, expertise e recursos – costumam surgir justamente na interação entre diferentes atores. 

A inovação social coletiva surge como resposta necessária a esse desafio, pois combate essa divisão com a inovação no próprio processo de colaboração. Ao congregar grandes redes de atores que de outra forma seguiriam isolados, inovadores coletivos estão criando arranjos e narrativas capazes de promover conexões. Também estão trazendo para o centro do debate vozes antes silenciadas ou ignoradas, superando assim desafios históricos de inovação e implementação tanto no setor público como no privado. Ainda, estão agregando recursos, dados e financiamento e distribuindo tudo isso com agilidade e eficiência para atingir uma escala que organizações isoladas não conseguiriam alcançar sozinhas. Acima de tudo, a inovação social coletiva é um guarda-chuva amplo que abriga uma diversidade de atividades. Apesar de possíveis semelhanças, cada uma delas se ancora nas realidades vividas por seus distintos públicos e se adapta ao contexto no qual operam.

Quando falamos de inovação, o arquétipo do inovador solitário persiste, embora já não sirva para nossos tempos. Os grandes desafios globais – como mudanças climáticas, desigualdade econômica, escalada de conflitos e questões de privacidade e segurança ligadas a novas tecnologias – são problemas que exigem ação coletiva. A resposta depende da nossa capacidade de trabalhar juntos, não de soluções milagrosas concebidas por heróis isolados. Inovadores sociais coletivos estão recuperando abordagens que funcionaram no passado e, ao mesmo tempo, abrindo novos caminhos para o futuro. Para criar um amanhã no qual possamos não só sobreviver, mas prosperar, é preciso construí-lo juntos.

Leia também: “Erre rápido e siga em frente”, entrevista com Tasso Azevedo sobre o papel da inovação social coletiva na história do MapBiomas

Os Autores(as)

Cynthia Rayner

Cynthia Rayner é pesquisadora vinculada à Fundação Schwab para o Empreendedorismo Social, ao Centro Skoll para o Empreendedorismo Social da Universidade de Oxford e ao Centro Bertha para o Empreendedorismo e a Inovação Social da Universidade da Cidade do Cabo.

Sophia Otoo

Sophia Otoo é líder de programas e comunidades na Fundação Schwab para o Empreendedorismo Social, parte do Fórum Econômico Mundial. Nessa função, coordena o desenvolvimento de programas e administra uma comunidade global de inovadores sociais.

François Bonnici

François Bonnici é médico especialista em saúde pública, professor, praticante de transformação social e dirigente de fundações. Fundou o Centro Bertha para o Empreendedorismo e a Inovação Social na Universidade da Cidade do Cabo em 2011 e, desde 2019, atua como diretor da Fundação Schwab para o Empreendedorismo Social e diretor de fundações do Fórum Econômico Mundial.

Relacionados

Últimas