Conexão humana para transformar a vida de pessoas em situação de rua

O problema da falta de moradia vai além da questão da habitação, envolvendo pertencimento e integração social

Em 20 anos de trabalho na assistência a pessoas em situação de rua, passei a acreditar que, embora a moradia seja essencial, a estabilidade a longo prazo depende, na maioria das vezes, das relações e da integração social. A jornada para sair da situação de rua não termina (apenas) com um jogo de chaves: ela termina quando a pessoa está inserida em uma comunidade à qual pertence e para a qual pode contribuir. Termina com conexão.

A partir do voluntariado em abrigos noturnos, da liderança em serviços de linha de frente e da atuação como consultor em políticas nacionais, além de pesquisas contínuas e conversas cotidianas com pessoas em situação de rua, compreendi que as pessoas não simplesmente “usam” os serviços de apoio. Elas os interpretam, resistem a eles e são moldadas por eles de maneiras profundamente relacionais; sobrecarga emocional, influência de pares e conexão humana moldam seu engajamento com os serviços de forma a determinar o quão bem-sucedido ele será. Como resultado, construir caminhos mais sólidos para sair da situação de rua significa priorizar não apenas o abrigo, mas também o sentimento de pertencimento. Nesse sentido, se a moradia é a base, as relações são o que mantém as pessoas em suas casas.

A partir disso, emergem cinco princípios fundamentais.

1 – O serviço de apoio é uma ponte, não o resultado

Com frequência, tratamos os serviços voltados para pessoas em situação de rua como destinos e, quando alguém começa a acessar esse apoio, isso já é considerado uma grande vitória. Mas bons serviços não devem ser pontos de chegada. Quando eles se tornam todo o mundo de uma pessoa, pode ser mais difícil que ela estabeleça conexões para além desse espaço. Inúmeras vezes, vi alguém prosperar em um programa de apoio até que ele chegasse ao fim e a pessoa se visse novamente isolada.

Serviços que funcionam como pontes para a comunidade tornam a recuperação de longo prazo mais provável. Robert Putnam certa vez descreveu a diferença entre capital social de “vínculo” e de “ponte”: o capital de vínculo conecta pessoas a outras semelhantes, muitas vezes pares dentro da própria comunidade em situação de rua, enquanto o capital de ponte abre portas para novos grupos sociais, redes e oportunidades. Percebi com clareza que é o capital de ponte que ajuda as pessoas a construir uma vida além dos serviços: aquelas que formaram relações fora da comunidade em situação de rua tiveram mais chances de manter a moradia e seguir em frente. Já quem manteve suas redes ligadas a outros ainda em crise muitas vezes acabou sendo puxado de volta.

Uma organização que acerta nesse ponto é a Change Please, uma empresa social do Reino Unido que treina pessoas em situação de rua para se tornarem baristas. Não se trata apenas do emprego. É estar em um espaço público, atender clientes, ter uma rotina e usar um uniforme como porta de entrada de volta à sociedade. Essas pessoas recebem, sim, um salário digno e apoio com moradia, terapia e ferramentas financeiras, mas, tão importante quanto isso, estão voltando a se inserir no tecido social.

2 – Apenas estar presente já é importante

Quando pessoas se inscrevem em cursos preparatórios para moradia ou em oficinas de capacitação, o conteúdo desses cursos nem sempre é tão importante quanto a experiência de comparecer. Ter estrutura. Ter alguém com quem conversar. Sentir-se normal. As pessoas não acessam os serviços apenas para aprender; elas participam para moldar a identidade, conectar-se com outras pessoas e construir significado. Especialmente para quem esteve privado de conexões sociais (ou vivendo em modo de sobrevivência), até mesmo sentar-se em uma sessão em grupo pode significar recuperar uma parte de si.

Lembro-me de uma conversa com alguém que havia vivido em situação de rua: ele me disse que o tédio era seu maior inimigo. As ruas eram caóticas, mas pelo menos não eram vazias. E, quando finalmente conseguiu uma moradia, o que fez a diferença para ele foi manter-se ocupado. Ele se jogou em todas as atividades oferecidas pelo seu provedor, não porque estivesse desesperado para aprender a cozinhar, mas porque aquilo lhe dava algo para fazer e alguém com quem conversar.

No King’s Arms Project, em Bedford, no Reino Unido, atividades como caminhadas, clubes de cinema e idas ao campo de golfe não são chamadas de “intervenções”, mas é exatamente o que elas são. Elas ajudam as pessoas a se reconectarem com o tempo, com outras pessoas e com o ritmo da vida cotidiana. A equipe percebeu que quem participava tinha mais chances de avançar para o voluntariado ou para o trabalho, não pelo que havia aprendido, mas pelo que havia sentido. Estudos de terapia ocupacional mostram que o engajamento em atividades significativas e compartilhadas pode reconstruir a identidade e a autoestima, especialmente para aqueles que passaram por exclusão social.

3 – As pessoas precisam de autoconfiança

Viver nas ruas não significa apenas não ter um lar. É algo que corrói a identidade. Depois de meses ou anos vivendo para sobreviver, muitas pessoas perdem a noção de quem eram, quanto mais de quem poderiam se tornar. Em minha pesquisa de doutorado, descrevi isso como “bloqueio de sentido”: uma espécie de nevoeiro emocional e cognitivo no qual imaginar um futuro diferente parece impossível. Quando alguém está preso nesse estado, perguntar qual emprego deseja ou qual é seu plano para cinco anos não é apenas irrealista, é também cruel.

O que as pessoas precisam primeiro é de confiança e de espaços pequenos e seguros onde possam experimentar, falhar, tentar de novo e começar a se sentir elas mesmas outra vez. No Homeward Bound, em Asheville, Carolina do Norte, Estados Unidos, moradores do Compass Point Village podem assumir pequenas funções, como ajudar na limpeza de áreas comuns, apoiar outros residentes e auxiliar em tarefas de manutenção. Pagamos pelo desempenho dessas funções, mas o valor vai muito além do dinheiro. Trata-se de ser confiado a algo, contribuir e sentir-se parte de algo maior.

Esse tipo de construção de confiança está alinhado com pesquisas sobre “eficácia social”, ou seja, a crença de que é possível interagir com outras pessoas de forma bem-sucedida. Sem essa crença, muitos não se arriscam a participar de um grupo, ingressar em uma faculdade ou se candidatar a um emprego. Mas não se trata de motivação; trata-se do medo de falhar ou de ser rejeitado. Os serviços devem, portanto, buscar criar “rampas de acesso” de volta à sociedade: espaços onde as pessoas possam redescobrir suas forças, experimentar e começar a acreditar novamente que pertencem.

4 – As barreiras são reais

O caminho para sair da situação de rua está repleto de paredes invisíveis, de ordem prática, emocional e relacional. E, muitas vezes, elas não dizem respeito ao que as pessoas não conseguem fazer, mas ao que os sistemas não enxergam.

Percebi que os motivos que levam as pessoas a se afastarem dos serviços costumam ser mais sociais do que logísticos. Um homem me contou que deixou de frequentar um grupo de apoio porque não queria pedir carona: como estava começando a se sentir “normal”, temia ser visto como um caso de caridade. Nessa situação, o problema não é transporte. É dignidade.

Baixo capital social e falta de confiança apenas amplificam os efeitos da pobreza. Quando alguém é empurrado para as margens, até coisas pequenas, como pedir ajuda, podem parecer arriscadas. É por isso que os serviços funcionam melhor quando prestam atenção aos detalhes. O Right at Home, uma parceria de prevenção à falta de moradia nos Estados Unidos, oferece apoio financeiro rápido e flexível para cobrir despesas como aluguel, contas ou pequenas emergências. Um recente ensaio clínico randomizado mostrou que aqueles que receberam esse apoio tiveram 81% menos probabilidade de se tornarem sem-teto dentro de seis meses. Às vezes, algumas centenas de dólares, oferecidas rapidamente e com dignidade, podem mudar tudo.

O progresso para sair da situação de rua não depende apenas de abrir portas, mas de garantir que as pessoas possam atravessá-las. Isso significa enfrentar as pequenas barreiras, muitas vezes negligenciadas, que impedem alguém de aparecer, repetidamente, até sentir que pertence.

5 – Não foque apenas na compaixão

A compaixão pode nos fazer sentir bem, mas são a boa vontade e a verdade que tornam a mudança possível. Por exemplo, lembro-me de ter sentido uma tristeza profunda ao ouvir a história de um rapaz que passou o seu 16º aniversário dormindo na rua e perdeu a família por causa do uso de drogas. Mas a minha compaixão não o ajudou. O que o ajudou foi um relacionamento: alguém que aparecia de forma consistente, falava com honestidade e o tratava como uma pessoa, não como um caso.

É fácil se apoiar na compaixão. No entanto, ela pode, involuntariamente, reforçar a distância. Quando as pessoas em situação de rua são vistas principalmente através da lente da pena, isso pode prendê-las a narrativas de dependência e tirar sua autonomia.

O líder de uma organização sem fins lucrativos de base religiosa Jon Kuhrt escreve há anos sobre como encontrar um equilíbrio entre bondade e verdade, no blog Grace + Truth. Como ele diz, “boa vontade sem verdade pode parecer indulgência, enquanto verdade sem boa vontade pode ser dura”. Mas, juntas, elas constroem o tipo de responsabilidade e dignidade de que as pessoas precisam para crescer.

Pessoas em situação de rua precisam que alguém esteja ao seu lado com honestidade, fé e presença constante. Na Hope into Action, por exemplo, uma instituição de caridade do Reino Unido que faz parceria com igrejas para oferecer moradia e apoio relacional, os voluntários são treinados não para “consertar” pessoas, mas para caminhar junto delas: oferecendo amizade, desafio, presença e esperança. Não é sobre compaixão, mas sobre solidariedade.

O desafio

Se os relacionamentos e a comunidade são tão centrais para a recuperação, por que eles já não estão incorporados em todos os sistemas de enfrentamento à situação de rua? Construímos nossos sistemas para contar coisas, não para conectar pessoas. A maioria das intervenções na área da falta de moradia é estruturada em torno de resultados mensuráveis, como diárias de abrigo, alocações habitacionais, avaliações clínicas e, por mais importantes que sejam esses indicadores, a razão de receberem tanta atenção é que são mais fáceis de financiar, acompanhar e relatar do que o trabalho longo e não linear de construir relacionamentos.

Eu entendo. Trabalho no setor há mais de 20 anos e tenho profunda empatia pelos gestores e prestadores de serviços que vivem sob pressão para apresentar resultados rápidos em contextos complexos. Quando se está constantemente respondendo a crises, é difícil investir em mudanças que levam tempo para amadurecer. Mas as pessoas não se recuperam seguindo cronogramas de desempenho. Elas se recuperam em relacionamentos.

Essa lacuna entre o que importa e o que se mede já foi destacada por pesquisas. Um estudo mostrou que muitas autoridades locais são obrigadas a priorizar serviços de curto prazo e de resposta imediata, mesmo quando sabem que o trabalho relacional de longo prazo é mais eficaz. Outro estudo descreve como práticas baseadas em relacionamentos frequentemente ficam fora dos marcos tradicionais de contratação, sendo deixadas a cargo de grupos religiosos ou voluntários que atuam com recursos limitados.

Mesmo quando as organizações querem priorizar a conexão, enfrentam barreiras reais: o esgotamento e a rotatividade das equipes reduzem a consistência e a confiança; culturas institucionais avessas ao risco desestimulam a experimentação; modelos de financiamento baseados em dados exigem resultados rápidos e quantificáveis; e a fragmentação dos serviços impedem que as pessoas se reintegrem à vida cotidiana.

Talvez, de forma mais fundamental, tenhamos criado uma categoria chamada “serviços para pessoas em situação de rua”, como se essas pessoas precisassem de algo completamente diferente. Mas elas precisam do que todos precisam: segurança, propósito, amigos, comunidade. E se, em vez de projetarmos sistemas especiais para quem está à margem, nos concentrássemos em remover as barreiras que as empurraram para fora do convívio social em primeiro lugar?

Abordagens que colocam o relacionamento em primeiro lugar não têm a ver com sentimentalismo. Elas têm a ver com infraestrutura. O desafio não é provar que funcionam, é redesenhar nossos sistemas para sustentá-las. Estamos dispostos a redesenhar nossos sistemas – financiamento, pessoal, cultura – para tornar esses relacionamentos centrais, e não secundários?

Porque, no fim das contas, a solução não é complexa. As pessoas precisam de um lar. Mas também precisam de pessoas. E, quando colocamos ambos no centro, não apenas acabamos com a situação de rua. Construímos algo melhor.

*Artigo publicado originalmente na Stanford Social Innovation Review com o título Community Beyond Resources.

Autor(a)

Simon Dwight

Simon Dwight é diretor executivo da Homeward Bound of WNC, uma organização sem fins lucrativos voltada para a assistência a pessoas em situação de rua com sede em Asheville, Carolina do Norte. Ele mudou-se para os Estados Unidos vindo da Inglaterra, onde atuou como assessor especializado nessa questão para o governo britânico, e foi anteriormente diretor executivo do King’s Arms Project, uma organização sem fins lucrativos do Reino Unido conhecida por soluções inovadoras para pessoas em situação de rua e o deslocamento.