Okinawa, uma história de desequilíbrio de poder no Japão

O colonialismo e o preconceito contra a região limitam seu crescimento, mas mudanças políticas apontam um caminho

Este artigo faz parte da nossa série “A busca global pela equidade”. Para conferir os demais artigos, clique aqui [1].

Por Nagatsugu Asato e Nobuo Shiga

Arte: Raffi Marhaba, The Dream Creative

O legado do colonialismo fomentou a discriminação estrutural em todo o mundo, criando ciclos de alienação e pobreza entre comunidades subjugadas e marginalizadas. No Japão, esse legado é mais visível em Okinawa, região outrora independente ocupada pela primeira vez no início do século 17. A taxa de pobreza de Okinawa [2] é de cerca de 35%, o dobro da média nacional. A província também lidera o país em taxas de desemprego [3], emprego informal e famílias monoparentais [4], além de ter os menores índices de matrículas universitárias.

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Por trás dessa grave pobreza há um dado revelador: mais de 70% da área das instalações militares dos Estados Unidos no país se concentra em Okinawa, apesar de a província representar apenas 0,6% do território total japonês. A concentração, que teve profundas implicações econômicas e culturais locais, é costumeiramente justificada por agências governamentais. Elas dizem que a presença das bases é necessária por razões de segurança e que a hospedagem das instalações militares traz apoio econômico nacional. Muitas pessoas na sociedade japonesa atribuem a pobreza de Okinawa às pressões de conformidade inerentes e à baixa autoestima de uma sociedade que é baseada em fortes laços familiares e raízes locais. No entanto, essas explicações são superficiais e desviam da questão central. Na verdade, a concentração da pobreza e das instalações militares representa uma forma moderna de colonialismo – uma desigualdade estrutural nascida da dinâmica de poder entre Okinawa e o Japão continental.

Corrigir a discriminação estrutural – definida aqui como a normalização e perpetuação inconsciente do preconceito contra certos grupos – apresenta desafios únicos. Ela é tão arraigada na vida cotidiana que pode até mesmo não ser reconhecido pelas pessoas em um determinado sistema. A aprovação tácita do preconceito benevolente [7] representa uma complicação adicional. Frisar como únicas a história e a cultura de Okinawa, em oposição às do Japão continental, fazendo elogios a aspectos como seu ambiente natural, hospitalidade, cultura de entretenimento e dieta de longevidade, obscurece a discriminação estrutural contra seus habitantes. Também contribui inadvertidamente para a associação entre a pobreza e os valores e comportamentos da população local.

Visto que muitos japoneses não reconhecem a discriminação estrutural contra Okinawa, desfazê-la envolve entender o contexto histórico e os motivos para a persistência da opressão e como os formuladores de políticas e os cidadãos podem trabalhar para restaurar a equidade na região.

 

Uma história de opressão

 

A opressão e a discriminação contra Okinawa estão profundamente enraizadas em eventos históricos. A província já foi uma nação independente chamada Reino de Ryukyu. Em 1609, no entanto, Satsuma – um dos domínios mais poderosos do Xogunato Tokugawa, ditadura militar feudal também conhecida como Período Edo – invadiu o reino. Ao subjugá-lo, garantiu lucrativos benefícios comerciais e fincou posição em uma região de grande significado militar e geopolítico. A Restauração Meiji, que encerrou o xogunato, aboliu o sistema de domínio feudal, e a região foi formalmente incorporada ao território japonês em 1879.

A utilização de Okinawa tornou-se particularmente pronunciada durante os últimos estágios da Segunda Guerra Mundial, quando o governo japonês sacrificou o território para ganhar tempo para a defesa do Japão continental. Na Batalha de Okinawa, em 1945, que teve até 100 mil vítimas civis [8], as forças dos EUA pretendiam apoderar-se do local como base para a invasão planejada do Japão. Quando a guerra terminou, no segundo semestre daquele ano, o governo japonês estabeleceu uma nova Constituição, com um artigo renunciando à guerra (Artigo 9 [9]º) em troca de permitir que os Estados Unidos ocupassem Okinawa e, a partir daí, facilitassem suas estratégias militares na Ásia.

É importante ressaltar que a Batalha de Okinawa destruiu as ferrovias da região; as construções de estradas do pós-Guerra serviram principalmente aos interesses militares dos EUA, e muitas terras agrícolas, principal atividade econômica da província, foram confiscadas para a construção de instalações militares. Além disso, como a região estava sob administração americana, recebeu menos investimento de capital para a reconstrução e desenvolvimento econômico que o Japão continental, levando a atrasos significativos no desenvolvimento de sua infraestrutura social e industrial.

A Lei sobre Medidas Especiais para a Promoção e o Desenvolvimento de Okinawa, aprovada em 1971, visava abordar a desigualdade econômica e social entre a região e o resto do país, mas cerca de metade das despesas de obras públicas feitas sob a lei refluíram para o continente, por meio de grandes empresas de construção.

 

Pedidos de mudança frustrados

 

Os Estados Unidos continuaram a controlar Okinawa e, quando a Guerra do Vietnã começou, usaram o local como base de abastecimento e lançamento. Durante este tempo, movimentos anticoloniais e de paz cresceram rapidamente e começaram a ressoar entre a população do continente. Tanto os Estados Unidos quanto o Japão tinham interesse em acalmar esses movimentos, mantendo o statu quo. Em 1972, os Estados Unidos devolveram Okinawa ao Japão, mas continuaram usando suas bases locais sem o ônus financeiro ou as críticas internacionais decorrentes da ocupação. Já para o governo japonês, a formalização conteve o fervor nacionalista, ao mesmo tempo que manteve o local como parte integrante da defesa da estrutura de segurança EUA-Japão.

Mesmo após a devolução de Okinawa para o Japão, e ainda hoje, o Acordo de Status de Forças EUA-Japão mantém incidentes de agressão sexual e outros atos de violência por forças americanas distantes da jurisdição japonesa. Em todo o país erguem-se apelos por uma revisão profunda desse acordo, mas nenhuma mudança foi feita em mais de meio século.

A realocação das bases também não está no horizonte. Sucessivos ministros da Defesa japoneses reconheceram que a realocação de instalações [10] fora de Okinaa não representaria problemas militares, mas manifestaram acreditar que não seria realista obter um acordo com o continente. Em 2009, o primeiro-ministro Yukio Hatoyama fez uma promessa eleitoral de realocar a base aérea dos EUA em Futenma, nos arredores de Okinawa, mas se retratou [11] e rompeu o prometido no ano seguinte. Ainda assim, em fevereiro de 2019, mais de 70% dos eleitores na província se opuseram, em um referendo, à construção de uma nova base em Henoko, também dentro da prefeitura de Okinawa, para substituir Futenma, e os cidadãos têm demonstrado manter essa posição desde então. (Nagatsugu Asato, coautor deste texto, foi um dos suplentes do Comitê do Referendo de Henoko, na esperança de que a comunidade local fosse autorizada a tomar tais decisões por si mesma.)

Rumo à equidade e à autodeterminação

 

Em seu artigo “A Monitoring Theory of the Underclass [12]” [Uma teoria de monitoramento das classes baixas],  J. Mark Ramseyer, professor da Faculdade de Direito de Harvard, argumenta que as minorias no Japão – como os coreanos zainichi (descendentes de pessoas que se mudaram ou foram forçadas a se mudar para o Japão durante o domínio colonial japonês da Coreia), os burakumins (uma comunidade historicamente marginalizada) e o povo de Okinawa – buscam soluções para violações de direitos humanos principalmente a fim de garantir subsídios governamentais. Ele também relaciona a pobreza a aspectos percebidos como peculiaridades locais, características culturais únicas ou traços culturais distintos de Okinawa – por exemplo, como o menor nível educacional, maiores taxas de divórcio e um maior número de crianças nascidas fora do casamento.

Os jornais locais criticaram o artigo, qualificando-o como um grave exemplo de racismo cultural que, como tal, ignora o papel da discriminação estrutural e da exploração subjacentes à pobreza extrema de Okinawa. As políticas públicas priorizaram o bem-estar, a segurança e o crescimento econômico do continente, em detrimento das necessidades de Okinawa, privando a população local das condições necessárias para a autodeterminação política, bem como dos meios de produção de bens e serviços essenciais para alcançar a independência econômica.

A Constituição Japonesa afirma, em seu artigo 14, seção 1, que “todos os cidadãos são iguais perante a lei e não devem ser discriminados com base em raça, credo, gênero, status social ou linhagem”. Em um exame cuidadoso, o texto mostra claramente que os casos em que grupos foram historicamente colocados em uma posição inferior devido à discriminação com base em atributos específicos devem ser abordados e corrigidos. Mas muitos estudiosos e advogados constitucionais japoneses entenderam que o artigo defende não o amplo direito à igualdade, mas a igualdade compreendida como direitos individuais específicos. Essa interpretação, contudo, ignora o fato de que relegar a Okinawa o fardo de hospedar instalações militares dos EUA (enquanto cidadãos do continente relutam em aceitar sua transferência para outras áreas) é uma negação da cidadania do local, anterior a qualquer violação de direitos individuais. Apelar à violação do direito à igualdade é fundamental para corrigir relações desiguais de poder.

A discriminação estrutural é perpetuada pela inação, então a sua resolução exige que aqueles que tanto cidadãos quanto aqueles que tomam decisões políticas assumam medidas proativas. Primeiro, formuladores de políticas devem reconhecer que realocar a base aérea dos EUA em Futenma para Henoko viola o artigo constitucional que proíbe a discriminação. Depois de mais de 25 anos de discussão, a decisão é definitiva, e as obras de aterro para a realocação estão em curso. Embora seja um grande desafio político interromper esse processo, aceitá-lo só reforçará a discriminação estrutural contra Okinawa. Os formuladores de políticas também devem esforços para lidar com a discriminação e estabelecer leis para aliviar o fardo da concentração de instalações militares na região.

Em segundo lugar, a Constituição do Japão é um documento de paz, simbolizada no artigo 9º, que renuncia à guerra. Os legisladores devem revisitar este artigo. Para alcançar a paz sem qualquer forma de violência – incluindo discriminação, opressão, alienação e pobreza – o artigo 9º, apenas, é insuficiente. Juntos, os artigos 9º e 14 podem orientar o Japão para uma paz proativa e livre de discriminação estrutural. Em outras palavras, o próprio tratamento discriminatório constitui uma violação.

Em terceiro lugar, os formuladores de políticas devem revisar a Lei sobre Medidas Especiais para a Promoção e o Desenvolvimento de Okinawa, que moldou a sociedade local desde a devolução do território para o Japão continental. O texto prevê que a política básica para planejar o desenvolvimento de Okinawa seja determinada pelo governo nacional, não pela província, confinando a autonomia e a autodeterminação locais no âmbito do paternalismo governamental. A lei, na prática, tem servido como mecanismo para manter o sistema de segurança Japão-EUA, perpetuando a discriminação.

Por fim, o artigo 95 da Constituição Japonesa estipula que qualquer lei que restrinja a autonomia de um governo local específico requer o consentimento de seus moradores por meio de um referendo. No entanto, a Lei sobre Medidas Especiais para a Promoção e Desenvolvimento de Okinawa foi implementada sem esse procedimento, sob o argumento de que não restringe a autonomia. Essa lei, provisória, tem sido estendida a cada década. Embora  especialistas venham progressivamente se posicionando contrariamente a essa simples extensão, em vista da preocupação com eventuais cortes orçamentários por parte do governo nacional, não é uma decisão fácil para o governador da província solicitar a abolição da lei. No entanto, essa decisão cabe, de fato, ao próprio povo de Okinawa. O atual período de vigência da lei expira em 31 de março de 2032. Olhando para o futuro, é necessária uma ampla e profunda discussão pública sobre opções que incluem extensão, abolição ou mesmo a exigência de uma autonomia mais avançada. Propostas concretas a serem elaboradas pelo governador e pela assembleia da província, bem como pedidos diretos de referendos pelo povo, devem ser considerados, e o processo deve envolver especialistas de diferentes áreas.

Mais de meio século desde a reversão para o continente, o governo japonês está alavancando Okinawa sob o disfarce de segurança nacional e desenvolvimento, efetivamente impedindo o direito de seu povo à autodeterminação. Enfrentar a injustiça, muitas vezes invisível, da discriminação que permite a concentração de bases militares e a pobreza na província é um desafio monumental que exige mudanças políticas e culturais. É preciso que haja um envolvimento ativo dos tomadores de decisões e dos cidadãos para modificar leis que vigem há longa data e mudar a percepção das pessoas no continente.

OS AUTORES

Nagatsugu Asato é um escrivão judicial em Okinawa que, depois de lidar com casos envolvendo vários devedores, se engajou ativamente em iniciativas dedicadas a desmantelar a discriminação estrutural. Ele também leciona na Universidade Internacional de Okinawa e faz parte da equipe jurídica do processo de referendo dos moradores de Ishigaki. É coautor, com Nobuo Shiga, de um livro que aborda as questões deste artigo ( Por que as bases militares e a pobreza estão concentradas em Okinawa, publicado em japonês em 2022, pela editora Horinouchi).

Nobuo Shiga é professor associado na Faculdade de Estudos de Saúde e Bem-Estar da Universidade da Província de Hiroshima. Doutor em sociologia pela Escola de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Hitotsubashi, especializou-se em teoria da pobreza e política social. É coautor, com Nagatsugu Asato, de um livro que aborda as questões deste artigo (Por que as bases militares e a pobreza estão concentradas em Okinawa, publicado em japonês em 2022, pela editora Horinouchi).

Confira o artigo no idioma original aqui [13].