A exploração e a expropriação de recursos naturais, trabalho e saberes dos povos da floresta tornaram a Amazônia um palco de contradições sociais, econômicas e políticas. A chave de sua proteção está em modelos de desenvolvimento que valorizem sua sociobiodiversidade e tenham como protagonistas as populações tradicionais. Somente uma orquestração robusta, envolvendo diferentes atores, poderá implementar uma economia da floresta em pé e escrever um novo capítulo na história da região.
Por José Augusto Lacerda Fernandes, Graziella Maria Comini e Juliana Rodrigues
Embora se estenda pelo território de nove países soberanos, a Amazônia, maior floresta tropical do mundo, pode ser vista como uma região universal e um bem comum global. Ao abrigar um quinto de toda a água doce e a maior coleção de biodiversidade da Terra, a floresta é não apenas o maior reduto de vida que conhecemos, mas também uma peça-chave para os rumos da nossa espécie. Diante da magnitude de seus inúmeros serviços ecossistêmicos e da complexidade dos desafios ambientais que vivemos como sociedade no âmbito global, é adequado pensar que “somos todos amazônidas”, independente da nacionalidade, como bem apontou Ignacy Sachs, o precursor da noção de ecodesenvolvimento.
O Brasil detém cerca de 60% do bioma Amazônia, cujo território é preenchido majoritariamente pela chamada Amazônia Legal, uma área administrativa de 5,2 milhões de km² que compreende nove estados da federação (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). Infelizmente, nem a relevância global nem a representatividade geográfica local parece ter impedido o Estado brasileiro de manter uma postura tecnocrática, autoritária e profundamente ambígua em relação à Amazônia ao longo de sua história. Após diversos projetos de integração e desenvolvimento malfadados (mineração, hidrelétricas, rodovias e agronegócio), a região consolidou-se como palco de contradições sociais, econômicas e políticas, em que a exploração e a expropriação de riquezas naturais, trabalho e saberes dos povos da floresta são comumente o modus operandi.
Somente no período de agosto de 2021 a julho de 2022, 10.781 km² de floresta amazônica foram derrubados, o que equivale a sete vezes o tamanho da cidade de São Paulo, a maior da América Latina. Essa foi a maior área devastada dos últimos 15 anos, segundo dados do Imazon. Além de dizimar a biodiversidade e provocar secas e picos de temperatura na própria região, o desmatamento afeta o regime de chuvas em outras áreas do Brasil, e eleva subitamente as emissões de gases de efeito estufa, o que desequilibra o clima em escala global. Tais consequências evidenciam que a degradação da Amazônia é um dos maiores e mais complexos problemas ambientais do mundo.
Em igual proporção, devemos também atentar para os impactos no dia a dia – já precário em múltiplos sentidos – de aproximadamente 28 milhões de pessoas que vivem na Amazônia. Impactos que atingem, em especial, as comunidades tradicionais e os povos indígenas, cujos modos de vida são frontalmente afetados e que, na condição de habitantes seculares da região, guardam culturas e saberes vitais para que possamos responder às perguntas que a humanidade ainda fará à floresta.
Pensar soluções para a Amazônia exige reconhecer a relação direta do quadro atual com o avanço de determinadas atividades produtivas. Além de degradarem a floresta, essas atividades passaram longe de promover conquistas socioeconômicas efetivas para os seus habitantes. Embora ocupe mais de 59% do território brasileiro, a Amazônia Legal contribui com apenas 8% do Produto Interno Bruto (PIB). Além disso, as dez cidades mais pobres do país se localizam na região e o número de pessoas em situação de extrema pobreza supera a média nacional em sete dos nove estados amazônicos.
Diante desse cenário – e sabendo o que a bandeira do desenvolvimento fez até aqui –, é urgente promover e incentivar um novo modelo social e econômico para a Amazônia, uma proposta que alie atividades rentáveis e sustentáveis à proteção da floresta em pé e à redistribuição de retornos para as populações tradicionais que ocupam e protegem um dos biomas mais valiosos e essenciais do planeta. O tipping point – um patamar de degradação de proporções catastróficas, a partir do qual a floresta iniciará um processo de savanização e tentativas de recuperação não serão mais viáveis – está cada vez mais próximo, alertam vários estudos científicos. Como bem frisado na 27ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP27), apesar da degradação ambiental ter alcançado níveis alarmantes nos últimos anos, a floresta ainda tem condições de se reerguer: é hora, portanto, de fomentar o empreendedorismo sustentável na Amazônia como uma das alternativas que compõem esse desafio primordial.
Quando conectado à realidade e ao potencial do território, o empreendedorismo pode ser um aliado para desenvolver a economia da floresta em pé. Essa abordagem valoriza os recursos da floresta em sua sociobiodiversidade e tem como protagonistas as populações tradicionais, fundamentando-se no uso inteligente das riquezas naturais e no compromisso com o bem-estar dessas populações. A economia da floresta em pé abrange, assim, a necessidade de uma verdadeira orquestração para envolver diferentes atores a partir de uma visão sistêmica do contexto amazônico. Neste artigo, vamos trilhar alguns caminhos para superar o modelo econômico calcado na devastação ambiental e orquestrar o modelo de economia da floresta em pé.
Um retrato dos empreendimentos da “floresta em pé!”
Há diversos negócios comprometidos em escrever uma nova história para a Amazônia. O conhecimento sobre essa realidade, no entanto, está disperso, e é desafiador sustentar um olhar abrangente em relação à magnitude e diversidade de iniciativas na região. A partir de um mapeamento realizado nas bases de diferentes organizações dinamizadoras do ecossistema de negócios socioambientais (Pipe.Social, PPA, AMAZ, Lab Amazônia, Conexxus e Impact Hub), foram sistematizados 578 empreendimentos engajados direta ou indiretamente com a sociobiodiversidade e a visão de estimular a manutenção da floresta em pé – seja pela valorização de seus produtos, seja por lidar com desafios prementes de suas comunidades. Embora se trate de um quantitativo discreto à luz das demandas e oportunidades presentes na Amazônia, desde os anos 2000 esse tipo de negócio tem apresentado um crescimento expressivo na região.
Os negócios da floresta, nomenclatura usada para agrupar aqueles que foram criados em comunidades tradicionais ou com elas se envolvem diretamente, ribeirinhos, indígenas e quilombolas, concentram 67% dos empreendimentos mapeados. Tais iniciativas têm gerado inovações em segmentos bastante variados, como turismo, educação, transporte e saneamento básico. A Academia Amazônia é um caso muito interessante, em que jovens recebem formação a partir de expedições pela floresta e são preparados para uma atuação sustentável no campo do turismo. Já o NavegAM, plataforma de e-commerce de transporte hidroviário, facilita a aquisição de passagens de barco pelos rios da região enquanto o Amana Katu busca universalizar o acesso a água de qualidade em comunidades periféricas por meio de uma tecnologia social que purifica a água da chuva. Apesar da pluralidade desses negócios, percebe-se, porém, o predomínio de iniciativas em cadeias agroalimentares, como é o caso da Manioca e da Deveras Amazônia. Em parceria com produtores locais, ambas as empresas têm conseguido elaborar produtos inovadores e com valor agregado a partir de insumos típicos da floresta, como mandioca, açaí, cupuaçu, bacuri, jambu, castanha-do-pará, pupunha e tucupi.
“Habitantes seculares, as comunidades tradicionais e os povos indígenas guardam culturas e saberes vitais para podermos responder às perguntas que ainda faremos à floresta.”
Uma constatação reforçada pelo mapeamento diz respeito ao papel vital da cooperação e do suporte de vários atores no ecossistema de negócios da floresta, já que a maior parte desses empreendimentos teve apoio de universidades e organizações não governamentais sem fins lucrativos. Esse dado ganha ainda mais relevância quando se observa que aqueles que conseguiram ultrapassar o estágio de Produto Mínimo Viável (MVP, na sigla em inglês) atuam a partir de uma lógica cooperativa com diferentes organizações. Graças ao apoio obtido por meio dessas parcerias, tais empreendimentos têm conseguido identificar melhor as dores e necessidades de cada mercado, bem como criar soluções autorais em vez de importá-las, o que valoriza a cultura e o uso dos recursos locais.
A importância de as organizações trabalharem conjuntamente se revela não só no nível dos próprios empreendimentos, mas também no fortalecimento do ecossistema no qual eles atuam, sobretudo considerando as assimetrias existentes entre os estados da Amazônia. De acordo com o mapeamento, diversas localidades sofrem com vazios institucionais, o que escancara a fragilidade do ecossistema de negócios socioambientais na região. Apesar da multiplicidade de empreendimentos mapeados, sua distribuição geográfica não é homogênea: 43% estão concentrados no Pará e 36% no Amazonas. Ambos os estados abrigam também os negócios mais maduros, já em fase de desenvolvimento de produto ou de escala. O mesmo não ocorre no Maranhão, Acre, Mato Grosso, Roraima, Amapá, Rondônia e Tocantins, estados que concentram os restantes 21% de empreendimentos em estágios iniciais de desenvolvimento – ideação e prototipação. Nessas localidades, como revelam os empreendedores, predomina a dificuldade de obtenção de recursos e de mentoria para que o negócio avance de fase. Além disso, eles enfatizam os desafios de logística e dificuldade de acesso a mercados para venda de seus produtos.
A Bioeconomia como vetor de transformação
Ainda há muitas questões em aberto sobre como alavancar esse movimento de empreendedorismo sustentável na Amazônia, mas tanto o mapeamento como outros estudos realizados pelos autores evidenciam que um caminho capaz de conjugar a preservação e um outro desenvolvimento da região tem como aliados os negócios e as cadeias produtivas da sociobiodiversidade. São empreendimentos que, ao conjugar o uso de recursos biológicos com sustentabilidade e o protagonismo das comunidades, dão vida à bioeconomia. Aliada à tecnologia e à valorização dos conhecimentos tradicionais e científicos, essa riqueza natural pode se converter em produtos com alto valor agregado e enorme potencial de utilização em vários setores (alimentício, farmacêutico, cosmético, joalheiro, entre outros) e de entrada em diferentes mercados (local, nacional e internacional). Essa feliz conjugação entre preservação e desenvolvimento possibilita mudanças transformacionais no uso da terra, na inclusão social e no atendimento de demandas básicas das comunidades locais. Além disso, promove a conservação e a regeneração de áreas degradadas, vetores de um novo modelo de desenvolvimento para a Amazônia, fundamentado nas vantagens comparativas que podem fazer dela a principal protagonista da bioeconomia a nível mundial.
As oportunidades anunciadas pelo crescimento de negócios da biodiversidade são tão promissoras que é difícil discordar de sua pertinência. O desafio, de fato, é viabilizá-las em larga escala e com resultados de longo prazo, dada a gama de obstáculos existentes entre a valorização da biodiversidade, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa dos benefícios atrelados a seu uso. Ao fundamentar-se em uma economia de baixa emissão de carbono e alta biodiversidade, tais negócios forjam rupturas com a história e o modelo de desenvolvimento até então implementado nessa região de capitalismo tardio. Como se já não fossem suficientes as dificuldades estruturais que acometem o empresariado local em um sentido mais amplo. Não por acaso, muitos empreendedores conhecidos por meio do mapeamento se referem frequentemente à expressão “custo Amazônia”, procurando encapsular essa complexidade, tanto em termos concretos – como os custos de logística, escassez de determinados tipos de recursos e dificuldades de infraestrutura – como em aspectos institucionais.
Nesse contexto, apontamos que orquestrar o desenvolvimento da bioeconomia na Amazônia implica contemplar as demandas e peculiaridades dos principais protagonistas desse movimento: os pequenos negócios. Sobretudo no sentido de perceber que tais iniciativas não costumam ser caracterizadas pela figura de um herói e líder solitário, mas sim por pujantes coletivos, associações e cooperativas inseridas em comunidades repletas de nuances socioculturais. São empreitadas de trabalho conjunto, cujas trajetórias reafirmam que “a comunidade é o jardim do empreendedorismo, pois não há empreendimento que possa florescer de modo isolado”.
Unindo forças por uma causa coletiva
Por se tratar de iniciativas que lidam com desafios compartilhados por vários atores, grupos e setores, como organizações não governamentais, instituições de pesquisa, empresas e órgãos de diferentes esferas do poder público, as soluções também devem ser geradas de modo colaborativo e participativo. O que costuma demandar novas estratégias, práticas organizacionais e mecanismos de governança, em especial no que se refere à articulação com as populações tradicionais envolvidas por esses empreendimentos: indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores e extrativistas, entre outros. Em muitos casos, o desconhecimento de seus direitos e a carência de políticas públicas mais abrangentes dificultam o exercício de uma participação democrática e de resultados condizentes com suas expectativas, o que torna necessária a atuação de várias entidades para viabilizar pactos de sustentabilidade junto às comunidades.
Em suma, desenvolver a Amazônia por meio de seu maior ativo – a floresta em pé – passa por uma constelação de grandes obstáculos, só não maiores que as oportunidades possibilitadas por sua abundante biodiversidade, a maior expressão de vida que existe no planeta. É nesse contexto que, para superar problemas ou desenvolver oportunidades, cresce a importância de instituições públicas e privadas que ajudem na criação de infraestrutura para a operação dos empreendimentos. Por conta disso, argumentamos que qualquer tentativa de orquestração efetiva deve envolver, além do ecossistema de empreendedorismo sustentável, no mínimo mais dois arranjos de atores que podem influenciar diretamente a economia da floresta em pé: as metaorganizações, que fornecem apoio e fomento a essas iniciativas e conexão com operações mais justas de mercado, e o Estado, presente por meio de um governo atuante que garanta não somente a infraestrutura e o ambiente institucional necessários, mas também opere como articulador do movimento.
Da commodity ao chocolate fino
O caso da Cacauway, marca paraense de chocolates criada pela Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica (Coopatrans), ilustra muito bem como empreendimentos comunitários com base na sociobiodiversidade podem ser vetores de transformação social. Ao explorar o cacau (fruta nativa da região) a partir da lógica da sustentabilidade, da agregação de valor e do compartilhamento de ganhos, a Cacauway tem conseguido obter resultados significativos em frentes que vão da regeneração de áreas degradadas ao próprio fortalecimento setorial da cacauicultura na região. Além de gerar empregos e renda, tal atividade tem contribuído significativamente para a proteção do solo e para a redução das emissões de gases de efeito estufa no estado do Pará, em que 99,54% das plantações de cacau estão localizadas fora de qualquer área de preservação, terra indígena ou assentamento quilombola. Uma das confirmações do viés sustentável da cultura cacaueira na Amazônia é a produção caracterizada fortemente pela adoção dos sistemas agroflorestais (SAFs), que conjugam o cacau com outros frutos.
Apesar de ser um negócio de pequeno porte, a experiência da Cacauway como uma das pioneiras na produção de chocolate de alta qualidade com terroir amazônico, em um território complexo como o da Transamazônica, corrobora o poder das articulações com o governo local e com organizações não governamentais engajadas com o fomento da bioeconomia. Para compreender melhor esse processo, é preciso conhecer um pouco mais sobre o contexto territorial no qual ela se insere e sobre a história da própria Coopatrans, fundada em 2010 no munícipio de Medicilândia.
Iniciada na década de 1970, a construção da BR-230 tinha como objetivo promover o desenvolvimento econômico da região. Essa visão era marcada por um projeto de ocupação do território como garantia da segurança nacional, para o qual pessoas de outras partes do Brasil e do mundo eram estimuladas a emigrar a fim de “promover a integração da Amazônia na economia nacional”. Em linhas gerais, o projeto da Transamazônica incentivava a implementação da agricultura e da pecuária intensivas, o que provocou muitas alterações no território e marcas profundas na floresta e na comunidade local. Como mostra o documentário Transamazônica – Uma Estrada para o Passado (premiado recentemente no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2022), as promessas de desenvolvimento socioeconômico ficaram apenas no papel e o rastro de mazelas aflige a região até hoje.
Cerca de 50 anos mais tarde, o governo local adotou outra estratégia de desenvolvimento: o incentivo a setores econômicos aderentes ao potencial e à realidade regional. Um desses setores estimulados foi o do cacau, já inserido num contexto de valorizar – e discutir – a economia da floresta em pé. Essa visão partia do princípio de que a manutenção dos ecossistemas é decisiva para absorver as emissões de gases de efeito estufa, atenuar o impacto de enchentes, purificar a água, diminuir os índices de poluição, além de melhorar o aproveitamento de recursos produtivos para a agricultura, para as cadeias de oferta de alimentos e também no uso da biodiversidade voltada a fármacos, à energia e a novos materiais. Tal abordagem orientou os agricultores desse território, que sofreram muitos impactos sociais e ambientais negativos da construção da rodovia, a promover uma economia sustentável na região.
Com o apoio do Programa de Fomento à Agricultura do Estado do Pará, a proposta de criação de uma cooperativa nasceu no âmbito das discussões sobre as necessidades de aperfeiçoamento do Código Florestal brasileiro, no fim da década de 1990. Esse movimento gerou crescente interesse pelo cacau da Amazônia como produto que poderia incrementar a economia local, bem como contribuir para melhorar as precárias condições de vida da população residente às margens da rodovia Transamazônica.
Mobilizados pela preocupação com as precárias condições socioeconômicas e ambientais locais, as quais ansiavam transformar, e movidos por ideia coletiva, os agricultores da região passaram a debater a viabilidade da produção cacaueira, auxiliando na elaboração do Programa de Aceleração do Crescimento e Consolidação da Cacauicultura no Estado do Pará (PAC CACAU/PA) e do Fundo de Apoio a Cacauicultura do Estado do Pará (Funcacau), ambos muito importantes para o desenvolvimento do setor. Graças aos recursos obtidos por meio desses programas e ao apoio de organizações como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB), os agricultores criaram então a Coopatrans e sua marca de chocolate, a Cacauway.
“Desenvolver a Amazônia por meio de seu maior ativo – a floresta em pé – passa por uma constelação de grandes obstáculos, só não maiores que as oportunidades possibilitadas por sua abundante biodiversidade.”
Considerada a primeira fábrica de chocolate da Amazônia, a Cacauway estabeleceu como objetivo “ampliar a renda dos cooperados, cuidando para que as amêndoas de cacau produzidas por eles fossem beneficiadas no próprio local”. Tem como missão produzir, industrializar e comercializar cacau e chocolate com alto padrão de qualidade, agregando valor e sustentabilidade à cadeia produtiva e proporcionando maior geração de renda aos cooperados.
Com foco na conscientização do agricultor acerca do papel que desempenha na cadeia produtiva e de como seus esforços de cultivo resultam na regeneração do espaço natural, a Cacauway ofereceu treinamentos e desenvolveu um protocolo de qualidade que a permitiu agregar entre 30% e 50% de valor na amêndoa de cacau, repassado diretamente aos cooperados. Estudos já apontavam uma transformação na paisagem de Medicilândia, em grande parte como resultado da aplicação dos SAF. Antigas pastagens e áreas de cultivo anual têm sido, pouco a pouco, substituídas por florestas secundárias e/ou pelo cultivo de cacau e ressoam o impacto positivo e regenerativo das práticas aplicadas por agricultores no município. Medicilândia é atualmente o maior produtor de cacau do Brasil.
Como relatou o cooperado Massao Alves Shimon em entrevista aos autores: “Sempre foi dito que nosso cacau era ruim, e aí nós conseguimos provar que isso não é verdade. Então, o mundo todo hoje olha a Transamazônica e olha o Brasil com bons olhos pela qualidade do cacau que está sendo produzido. Isso tudo é fruto de um trabalho que vem sendo feito ao longo de 12 anos. […] E a ideia do estado era essa, acho que foi uma ideia acertada, a cooperativa realmente inovou e provou essa capacidade de transformar nosso cacau, antes considerado de péssima qualidade e hoje briga lá nas cabeças. Então eu acho que isso é uma transformação bastante grande”.
A Cacauway nasceu como parte da estratégia de verticalização da produção, cujo objetivo era ir além da venda do cacau como commodity, incrementando seu valor como sua matéria-prima e incluindo não apenas o beneficiamento, mas também a produção de chocolates de alta qualidade e de forte identidade com o território da Amazônia. Foi a primeira empresa de chocolate do estado a trabalhar sob a lógica tree to bar, cujo foco se concentra na verticalização da produção, da amêndoa de cacau ao produto final, o que agrega valor à matéria-prima e, simultaneamente, melhora a qualidade de vida de seus cooperados. Como aponta a cooperada Hélia Félix, “a cooperativa surge da iniciativa de alguns agricultores da região de Medicilândia, com o objetivo de evitar que as amêndoas de cacau produzidas passassem pelas mãos de atravessadores e fossem gerar emprego em outro estado. Que é o que acontece muito. Queríamos processar as amêndoas no próprio local, gerar mais emprego e renda para as pessoas dali”.
Atualmente, a Cacauway conta com mais de 40 produtos em seu portfólio, como barras de chocolate, trufas, cacau em pó, nibs, amêndoas de cacau e geleias. Além disso, a marca tem importância histórica para o Pará, por ser a primeira a representar o estado em eventos internacionais, como o Salon du Chocolat em Paris, na França, e o Festival de Óbidos, em Portugal. Embaladas pelos esforços da Cacauway, diversas outras marcas de chocolate foram criadas e têm contribuído para o reconhecimento do chocolate de origem amazônica no Brasil e no mundo – Abelha Cacau, KaKao Blumen, Ascurra, De Mendes, Da Cruz e Gauden são ótimos exemplos dessa dinâmica.
Diante de desafios de crescimento e obtenção de recursos, em 2020 a Cacauway foi selecionada para participar do programa de aceleração da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA), um arranjo que adota design metaorganizacional para fomentar diferentes negócios e cadeias produtivas da sociobiodiversidade da Amazônia, reunindo esforços e recursos de múltiplos atores para alavancar a bioeconomia local. O que nos leva, por sua vez, a outro elemento central na orquestração desse movimento.
Metaorganizações: um arranjo necessário
Ao engendrar estruturas, práticas e processos inovadores, modelos alternativos de organização têm conseguido contornar dificuldades (operacionais, políticas e institucionais) e prover soluções mais robustas para os desafios contemporâneos. Com destaque para arranjos concebidos pela literatura como metaorganizações – organizações cujos membros são também organizações. Embora se caracterizem por certa fragilidade estrutural, decorrente da forte dependência dos seus membros e da ausência de recursos próprios, essas organizações estão conseguindo estabelecer plataformas de decisão coletiva e têm favorecido o surgimento de inovações sustentáveis, mostrando-se aptas à governança de problemas complexos como o aquecimento global e a preservação dos oceanos.
Embora o conhecimento sobre a dinâmica dessas organizações no Sul Global ainda seja bastante incipiente, estudos apontam que elas existem em abundância na Amazônia e que apresentam relevância ímpar para superar os desafios da região. O que não surpreende, visto que organizações tradicionais não só foram incapazes de conduzir processos transformadores na Amazônia (já caracterizada como “fora do estado de direito”), como, por vezes, se revelaram as principais vilãs dos problemas que a ameaçam. Em suma, seja pelo “filme” da história, seja pela “foto” do presente, é urgente que ousemos formas inovadoras de organização em prol da Amazônia, e metaorganizações configuram um avanço nesse sentido.
No contexto da bioeconomia, a importância dessas formas organizacionais se sobressai por diferentes motivos. Em geral, a atuação de cada ator e instituição costuma ser pautada por uma visão particular e por um conjunto específico de objetivos. Logo, assimetrias de poder fazem com que determinada visão de bioeconomia prevaleça sobre as demais, o que atrapalha o desenvolvimento desse movimento ou até mesmo gera danos para alguns atores e territórios envolvidos. Por serem arranjos calcados em relações horizontais e em decisões baseadas no consenso, cria-se, portanto, um ambiente no qual diferentes atores conseguem trabalhar numa mesma página, fazendo das suas diferenças um vetor de complementariedade, e não uma barreira à cooperação. Assim, organizações podem reunir saberes, perspectivas e recursos humanos, financeiros e tecnológicos em prol da economia da floresta. Vários exemplos demonstram o potencial dessas organizações no fomento e na consolidação de negócios da sociobiodiversidade, como é o caso das experiências da Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) e da Origens Brasil.
A Plataforma Parceiros pela Amazônia (PPA) se apresenta como uma plataforma de ação coletiva liderada pelo setor privado, com foco no fomento de soluções conjuntas para o desenvolvimento sustentável da Amazônia. Por meio de quatro grupos temáticos (GTs) – empreendedorismo, bioeconomia, mercados e territórios –, a iniciativa tem conseguido captar recursos financeiros para subsidiar negócios com foco socioambiental, fomentar parcerias estratégicas e compartilhar práticas de empreendimentos com capacidade de gerar renda a partir da biodiversidade, respeitando os recursos naturais e garantindo qualidade de vida para as comunidades da região. Graças aos seus programas, dezenas de empreendimentos baseados nos insumos locais têm sido originados ao longo dos últimos anos.
Já a rede Origens Brasil ilustra o potencial de iniciativas formadas por atores de múltiplos setores e níveis, e vem promovendo negócios sustentáveis na Amazônia em áreas prioritárias de conservação, com garantia de origem, de transparência, de rastreabilidade da cadeia produtiva e de promoção do comércio justo e ético. Desde 2016, a rede funciona como um elo entre quem produz e quem compra, originando conexões capazes de gerar impactos positivos para as populações e seus territórios. Apesar dos entraves característicos da região, o programa apresenta um portfólio diversificado, que abrange produtos do extrativismo (óleos vegetais, resinas, sementes e extratos), do agroextrativismo (mel, pimenta, farinha e chocolate) e itens provenientes da cultura material e imaterial do território (artesanatos indígenas, pinturas em tela, cerâmicas, cestarias, vestuários e calçados, entre outros). Trata-se de um caso emblemático por demonstrar que é possível não apenas criar valor a partir da rica sociobiodiversidade amazônica, mas também distribuir valor de modo mais equitativo entre os verdadeiros protagonistas desse movimento: os pequenos empreendedores e as comunidades locais.
“Só com essas sinergias será possível explorar o potencial desse modelo de produção inclusivo e consciente, no qual preservar e produzir, além de não serem verbos antagônicos, podem originar uma ‘boa dupla'”.
Para subsidiar as decisões e operações pertinentes a sua gestão, a Origens Brasil mantém uma estrutura de governança muito participativa. O conselho gestor tem status deliberativo e orienta o conteúdo das políticas e regras gerais, desenvolvimento, funcionamento e avaliação contínua do sistema visando seu aperfeiçoamento e credibilidade. Formado por pessoas e instituições que participaram do processo de desenvolvimento da Origens Brasil ou que são consideradas especialistas temáticos, o conselho é ainda a instância máxima para resolução de conflitos e desempenha o papel de supervisionar os comitês territoriais. Estes, por sua vez, são constituídos por organizações de atuação destacada nos territórios, cuja atribuição é supervisionar e monitorar a implementação do sistema a nível local.
Nas palavras de uma liderança de uma organização indígena envolvida pelo Origens, esse desenho incentiva a troca de conhecimento entre as organizações participantes, já que “a gente faz intercâmbio em troca de conhecimento, tudo isso é bom para as associações. […] A gente aprende um com o outro a fazer as coisas, traz o conhecimento deles e eles levam o nosso conhecimento. Tudo isso pra nós é bom”.
Além disso, a organização está se notabilizando pela capacidade de mostrar o que há por trás dos produtos e insumos da região, ao revelar a realidade desses indivíduos e coletivos, assim como o processo de fabricação e manejo, o que tem ajudado a aproximar o consumidor final do produtor e a mostrar os aspectos positivos da economia da floresta em pé. Como destaca a integrante de uma cooperativa, a iniciativa tem sido capaz de “contar a história do nosso povo, da nossa relação com a natureza, então a Origens Brasil é o início de uma caminhada pela qual o mundo vai nos ver como os guardiões da floresta”.
Paralelamente aos esforços de várias organizações engajadas com a bioeconomia na Amazônia, a coexistência das duas metaorganizações, PPA e Origens, tem fortalecido diversos negócios da biodiversidade na região. Alguns empreendimentos passaram pelo PPA em programas de aceleração e hoje estão na plataforma da Origens para viabilizar o acesso a novos mercados consumidores, em particular junto a grandes corporações, como Wickbold, Unilever e Natura, entre outras. Ainda assim, é importante salientar que a ação dessas iniciativas é limitada por problemas estruturais e desafios históricos de elevada complexidade, cujo equacionamento demanda a presença imprescindível de um ator: o Estado. Sem ele, é improvável que empreendimentos e metaorganizações, por mais pujantes e engajadas que sejam, consigam estabelecer a bioeconomia como vetor de transformação da realidade local na Amazônia.
O Estado na bioeconomia da Amazônia
A relação histórica do Estado com a degradação da floresta deveria implicar, de modo mandatório, um engajamento ativo dos diferentes níveis de governo com o fortalecimento da bioeconomia na Amazônia. Não sendo esse o caso, espera-se que tais atores ouçam a voz da ciência, como os alertas do Science Panel for the Amazon, que tem frisado a capacidade desse modelo converter problemas em oportunidades e a necessidade de melhorias que vão da infraestrutura física e tecnológica e do arcabouço legal-institucional a questões urgentes, como o desenvolvimento de mecanismos de remuneração pelos serviços ecossistêmicos, investimentos em ciência e tecnologia, combate ao desmatamento, cumprimento de leis e proteção de unidades de conservação. Afinal, sem floresta, não há como forjar a economia da floresta.
Ao mesmo tempo que essa situação pressupõe desafios, é preciso lembrar que o Estado possui um amplo conjunto de órgãos historicamente engajados com a bioeconomia, muitos deles com capital humano de alto nível e com capilaridade nos territórios amazônicos, como universidades e instituições de pesquisa, elementos que favorecem a articulação desse movimento, ainda caracterizado pela ausência de uma governança central e de diálogos entre os atores fundamentais para o seu desenvolvimento.
Apesar do descompasso entre a urgência do presente e o andamento das ações realizadas, é importante reconhecer que alguns estados da Amazônia Legal já endereçam estratégias com foco na bioeconomia da floresta, com destaque para o Pará – segunda maior unidade federativa do Brasil. De eventos internacionais, como o Fórum Mundial de Bioeconomia (realizado em 2021 na capital, Belém), ao financiamento de pesquisas científicas sobre cadeias produtivas da sociobiodiversidade, o estado contabiliza uma gama ampla de projetos com foco nessa agenda.
Em conjunto, todas essas ações se alinham e fortalecem o Plano Estadual de Bioeconomia (PlanBio), lançado recentemente pelo governo do Pará, uma iniciativa inédita por alinhar diferentes secretarias e órgãos públicos em torno da temática e pela forma como foi concebida. Atento às peculiaridades da bioeconomia no contexto amazônico e às assimetrias que existem no próprio estado, esse plano foi construído a partir de um amplo processo de escuta em todas as macrorregiões do Pará e envolveu atores do setor produtivo, ONGs, academia e comunidades tradicionais. Com isso, o Pará almeja combater os índices alarmantes de desmatamento, promover o bem-estar de sua população e alavancar a economia local, e se firmar como uma liderança nacional na transição para uma economia de baixo carbono, apesar das contradições evidentes no estado em termos de infraestrutura básica. Tudo isso, porém, também depende bastante de ações por parte do governo federal, sobretudo no sentido de reverter o aumento de desmatamento e ameaças à floresta em pé.
Orquestrando a economia da floresta em pé