Experiências inspiradoras e novas oportunidades de ação abrem caminhos alternativos para a solução de problemas que persistem nas formas convencionais de investimento. Em todos os cenários, é preciso contemplar o protagonismo dos atores locais como condição fundamental
Por José Augusto Lacerda Fernandes e Graziella Maria Comini
Há muitas décadas sabe-se que a Amazônia é um elemento central para o enfrentamento de grandes desafios da sociedade contemporânea. Por meio de diferentes serviços ecossistêmicos, a maior floresta tropical do planeta é determinante para o equilíbrio do regime de chuvas, tanto nos estados e países da própria bacia amazônica, como em outras regiões da América do Sul. Enquanto reservatório da maior parcela de biodiversidade existente no planeta Terra, a floresta também oferece ao mundo um leque de oportunidades de difícil mensuração, que abrange desde novos tratamentos para doenças complexas até a criação de superalimentos baseados em seu catálogo crescente de biorrecursos. Isso sem falar nos saberes acumulados pelos povos originários e pelas comunidades tradicionais que ocupam a floresta há séculos e foram vitais em sua formação. Por meio de práticas de manejo sustentáveis e de migrações,foram eles que deram vida a esse imenso patrimônio – material e imaterial – chamado Amazônia.
Apesar dos alertas feitos ao longo da história (por inúmeros cientistas, ativistas e organizações não governamentais), a importância da Amazônia enquanto bem comum universal parece ter encontrado seu lugar ao sol apenas nos últimos anos. Entre os profissionais que a abraçaram como campo de estudo e militância antes dessa efervescência, a sensação é de vivermos finalmente uma espécie de “virada amazônica”. De fóruns setoriais e webinars apoiados por grandes empresas às cúpulas que engendram a geopolítica internacional, a Amazônia está no centro das atenções. Por mais tardio que seja esse movimento, ele atende à necessidade de conscientizar a sociedade sobre o valor da floresta para o planeta. Além disso, facilita a aproximação e a colaboração de diferentes atores, contribuindo para o desenho de caminhos alternativos para o desenvolvimento da região, com destaque para o fortalecimento de uma economia pautada no uso sustentável e inovador de sua sociobiodiversidade, a tão alardeada bioeconomia da floresta em pé.
A exploração da sociobiodiversidade amazônica não é novidade, ainda mais para seus habitantes. Porém, é fato que, ao menos no âmbito das narrativas, ela tem emergido não somente com vigor, mas também sob novas facetas. Assentada no uso da tecnologia, na inovação e no empreendedorismo, a bioeconomia que se propaga na atualidade promete converter a riqueza natural da floresta em produtos de alto valor agregado, com potencial de uso em diferentes setores (alimentos, produtos farmacêuticos, cosméticos e jóias, entre outros) e mercados (local, nacional e internacional). A isso se soma uma abordagem voltada à transformação social, que a posiciona como um mecanismo poderoso de inclusão e de atendimento às demandas básicas das comunidades locais, algo premente no contexto amazônico.
Vários produtos e empreendimentos evidenciam a viabilidade e o potencial desse modelo de bioeconomia em inúmeras cadeias produtivas amazônicas – frutas, oleaginosas, fibras, peixes e sementes, entre outras. Contudo, ainda nos resta o desafio nada trivial de viabilizá-lo, em diferentes territórios, e com resultados positivos que não tardem para se efetivar localmente. Sobretudo quando se observa a coletânea de projeções de danos climáticos irreversíveis para a própria Amazônia e para todo o planeta.
Seja na infraestrutura, educação, saúde, segurança pública, ou mesmo na ciência, tecnologia e inovação, ordenamento territorial e direitos indígenas, há um leque amplo de intervenções tão estratégicas quanto urgentes, sem as quais é muito difícil imaginar uma bioeconomia verdadeiramente forte e inclusiva
Seja na infraestrutura, educação, saúde, segurança pública, ou mesmo na ciência, tecnologia e inovação, ordenamento territorial e direitos indígenas, há um leque amplo de intervenções tão estratégicas quanto urgentes, sem as quais é muito difícil imaginar uma bioeconomia verdadeiramente forte e inclusiva.10 Com tantos campos múltiplos e complexos se cruzando, não surpreende lidarmos com um mosaico de antagonismos, tensões e disputas de difícil resolução. Trata-se, afinal, de um “Davi contra Golias”: de um lado, um modelo alternativo de desenvolvimento, calcado nos pilares da sustentabilidade (ambiental, social e financeira) e no uso inovador dos recursos da sociobiodiversidade; do outro, o modelo de (des)envolvimento atual, responsável por mazelas históricas como o desmatamento e a degradação da floresta e, tão logo, pelas projeções que apontam para um tipping point no bioma Amazônia já nos próximos anos.
Forjar uma ruptura com esse quadro passa, inevitavelmente, pelo fim do financiamento de atividades não sustentáveis e também por uma avalanche de investimentos orientados pela lógica do impacto socioambiental positivo: os chamados “investimentos de impacto”. Embora existam várias definições para o termo, ele costuma ser concebido como aquele investimento que “almeja resultado socioambiental mensurável, além de retorno financeiro”. A partir dessa modalidade, investidores podem alocar recursos em iniciativas e empreendimentos que geram valor econômico de forma concomitante com benefícios sociais e ambientais à sociedade – algo premente para fazer frente às inúmeras urgências da região amazônica.
A pergunta que se coloca é: os mecanismos e instrumentos financeiros existentes são adequados ao contexto amazônico? A fim de contribuir para o planejamento, coordenação e aprimoramento dos investimentos, várias organizações, não só dos países amazônicos, têm conduzido debates e projetos sobre a temática. Muitos deles são convertidos em publicações interessantes, que oferecem um entendimento mais amplo do estado atual do financiamento para a bioeconomia, bem como das abordagens, mecanismos de investimento, tipos de empreendimento e cadeias de valor prioritárias. Além de advogarem, em uníssono, pelo fortalecimento dos investimentos de impacto na bioeconomia da floresta, esses materiais têm proporcionado um conhecimento mais detalhado dos obstáculos e oportunidades presentes nesse campo.
As dores de investidores e empreendedores
Os dados sobre investimentos de impacto na bioeconomia da Amazônia estão dispersos – o que de certo modo é compreensível, diante do caráter abrangente e transversal desse campo. Ainda assim, é fácil perceber que tanto investidores quanto empreendedores vivenciam uma série de dificuldades em suas jornadas de aporte e captação. A primeira delas está relacionada à conciliação de agendas e lógicas institucionais distintas. Empreendimentos calcados na sociobiodiverdade da Amazônia costumam ter menor potencial de retorno, sobretudo por lidarem com custos operacionais e transacionais mais elevados, típicos de estruturas produtivas localizadas longe de grandes centros urbanos. Em muitos casos, esses negócios ainda apresentam um risco maior quando comparados a iniciativas do tipo business-as-usual, pois trabalham com produtos que não possuem mercados bem desenvolvidos. Em conjunto, esses aspectos dificultam a criação de negócios com potencial de crescimento (escalabilidade) em horizontes temporais de curto prazo almejados pelos financiadores, sobretudo quando eles atuam junto a comunidades tradicionais e trabalham com recursos naturais obtidos a partir do extrativismo sustentável.
Os desafios não são só esses. Diálogos com empreendedores e investidores revelam a ausência da estrutura necessária para a execução de recursos em volumes mais expressivos. Como negócios de pequeno porte e/ou com pouco tempo de mercado, a maior parte dos empreendimentos da bioeconomia ainda não conseguiram desenvolver um planejamento financeiro adequado e formar equipes devidamente qualificadas, elementos necessários para uma aplicação eficiente dos investimentos. Em alguns casos, até mesmo empreendedores de destaque expressam inquietação com essa problemática. Ao narrar um encontro com fundos de venture capital, Paulo Reis (sócio das empresas Manioca e Amazonique) conta que já ficou assustado com os valores mencionados pelos investidores. Diante da pergunta se queria R$ 5 milhões ou R$ 10 milhões, o empreendedor admite que nem saberia o que fazer com um investimento desse ou se conseguiria honrar compromissos assumidos. “Na Amazônia, é preciso muita cautela para expandir nossos negócios, pois o desenvolvimento depende de muitos elementos […].”
Empreendimentos calcados na sociobiodiversidade da Amazônia costumam ter menor potencial de retorno, sobretudo por lidarem com custos operacionais e transacionais mais elevados. Em muitos casos, esses negócios ainda apresentam um risco maior, pois trabalham com produtos diferenciados e de origem, sem terem necessariamente mercados bem desenvolvidos
Embora existam diferentes perfis de empreendedores na região, relatos dessa natureza são recorrentes e costumam revelar vários outros desafios vivenciados pelos principais protagonistas do desenvolvimento da bioeconomia na Amazônia. Seja entre aqueles envolvidos com negócios de base comunitária ou entre os estabelecidos nas incubadoras e parques de ciência e tecnologia dos maiores centros urbanos da região, percebe-se o quão difícil é conciliar objetivos sociais e ambientais com a meta de criar um negócio autossustentável e com perspectiva de crescimento e, não obstante, ainda ter que atrair o capital para viabilizá-lo. Formatar um negócio atraente para o investidor ainda depende muito da capacidade de obter retornos competitivos em comparação aos investimentos disponíveis no mercado.
Empreendedores socioambientais de outras regiões – do Brasil e do mundo – também se deparam com essa dificuldade, mas é fato que alguns elementos característicos do contexto amazônico adicionam ainda mais complexidade à jornada dos negócios engajados com a bioeconomia da floresta. Os dados referentes à educação, por exemplo, são emblemáticos. Com condições de acesso à educação básica inferiores às das demais regiões do Brasil e outros índices educacionais alarmantes, é natural encontrarmos inúmeras barreiras ao empreendedorismo engajado com a geração de impacto socioambiental positivo na Amazônia. Isso explica porque a própria intenção de empreender e de inovar com foco em desafios socioambientais ainda é tão incipiente na região. No geral, predominam empreendedores bastante privilegiados em termos de grau de escolaridade e renda média, pois tal escolha permanece restrita a uma parcela pequena da população, que consegue imaginar caminhos diferentes do subemprego, de cargos públicos e de negócios informais, comumente sem compromisso com a sustentabilidade.
Aspectos logísticos e infraestruturais característicos da região também estão entre os outros desafios a se considerar. Por mais conhecidas que sejam, essas condições estruturais têm desdobramentos muito complexos para os negócios da bioeconomia, em especial quando precisam assumir um papel ativo no desenvolvimento da cadeia produtiva dos insumos com os quais trabalham. Em rodas de conversa com empreendedores locais, é frequente ouvi-los falar sobre a dificuldade de pensar o desenvolvimento da bioeconomia da Amazônia à luz de outros mercados e enfatizar o fato de que produzir algo na região implica um conjunto de particularidades. Eles comparam, por exemplo, o que acontece quando um empreendedor precisa de insumo em São Paulo, onde há vários fornecedores à disposição e a entrega não raro ocorre no mesmo dia. Na Amazônia, lembram eles, muitas cadeias produtivas ainda precisam ser estruturadas e muitas vezes o empreendedor tem de ajudar no treinamento e fazer todo um acompanhamento até conseguir obter uma regularidade no fornecimento.
Arcar com todos os custos e os esforços envolvidos no desenvolvimento de cadeias produtivas não é necessariamente um obstáculo intransponível. Em determinados casos, isso pode inclusive alavancar os impactos socioambientais positivos gerados pelos empreendimentos da bioeconomia e facilitar o acesso a mercados altamente exigentes. O caso da empresa 100% Amazônia evidencia muito bem esse potencial. Com a missão de traduzir a complexidade e a riqueza do ecossistema amazônico em produtos inovadores, essa empresa B especialista em bioingredientes florestais não madeireiros e renováveis (com mais de 50 itens no portfólio) desenvolve o programa Aryiamuru, focado no desenvolvimento de cadeias de suprimentos sustentáveis em diferentes territórios da região. De acordo com Fernanda Stefani, uma das criadoras e sócias da empresa, o programa tem viabilizado o comércio justo dos insumos produzidos pelas comunidades, aumentando o impacto social e ambiental positivo das cadeias da bioeconomia amazônica.
Conduzir o desenvolvimento de cadeias produtivas representa um esforço hercúleo para a maior parte dos empreendimentos da bioeconomia da Amazônia, em especial quando tratamos de negócios comunitários ou baseados no associativismo. Embora conheçam muito bem as particularidades de seus territórios, bem como dos insumos e dos processos que manejam, esses empreendimentos costumam ter algumas insuficiências em suas estruturas administrativas e enfrentam dificuldades para realizar ações de maior envergadura.
Se, por um lado, os desafios conhecidos não representam o labirinto de elementos que condicionam o aporte e a captação de investimentos nos empreendimentos da bioeconomia da Amazônia, por outro, eles são suficientemente reveladores de alguns caminhos que devemos trilhar para alavancar os investimentos de impacto nessa seara. Para aumentar o volume de recursos e torná-los mais eficientes, consideramos ser necessário:
i) incorporar a lógica do risco-retorno-impacto e fortalecer a oferta de capital paciente;
ii) democratizar o acesso a um número maior de investidores;
iii) fortalecer a atuação dos povos e comunidades tradicionais na agenda de investimentos;
iv) pensar para além dos negócios, realizando investimentos em aspectos estruturantes, como o fim do desmatamento, ciência e tecnologia e educação empreendedora.
Do velho risco-retorno ao capital paciente
Em meio à “virada amazônica” atual, há cada vez mais investidores interessados em aportar recursos nos negócios da bioeconomia da região. A concretização desses investimentos, entretanto, tem como dificultador o reinado da lógica risco-retorno, o que explica, em parte, a escassez de aportes. Organizações ou pessoas físicas que investem precisam entender que, na ampla maioria dos casos, negócios da bioeconomia da floresta dificilmente terão retornos em períodos similares aos de empreendimentos tradicionais ou estabelecidos em outras regiões do país. É preciso destronar essa lógica. Do contrário, muitos investimentos seguirão como estão: nascendo e morrendo como narrativa e intenção.
A fim de identificar e compreender melhor algumas experiências que têm rompido com essa lógica, agregando o impacto socioambiental nessa equação e ofertando um capital mais paciente aos empreendimentos, mapeamos iniciativas como a do Althelia Biodiversity Fund (ABF). Lançado em 2019 e registrado como Fundo de Investimento e Participação (FIP), o ABF é um fundo de investimento de impacto gerido pela Impac Earth, uma spin-off da Mirova Natural Capital. A iniciativa foi concebida em parceria com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid/Brasil), Aliança para a Bioversidade/Ciat e Plataforma de Parceria pela Amazônia (PPA), levando em conta as especificidades dos empreendimentos presentes na região. Com período de vigência de 11 anos, o fundo prevê captar US$ 100 milhões, principalmente em capital privado.
Com o propósito de promover a economia da floresta em pé, o ABF tem como principais objetivos: a conservação da biodiversidade, a redução do desmatamento e dos riscos climáticos e a geração de resultados socioeconômicos positivos e de bem-estar para as comunidades locais na Amazônia Legal. Para tanto, o ABF declara que sua noção de êxito está intrinsecamente condicionada à oferta de financiamento catalítico a empresas e projetos com biodiversidade positiva.
Com foco em empresas e projetos sustentáveis que têm um impacto positivo de transformação na Amazônia Legal brasileira e por meio de estruturas de financiamento inovadoras, o ABF oferece soluções financeiras personalizadas, com mecanismos de redução de riscos e, para isso, combina diferentes estratégias e veículos de investimento, como ações, dívida conversível, empréstimos, dívida estruturada e participação nos lucros, de acordo com o Impact Earth. Além disso, a estrutura do fundo também incorpora o que afirma ser “um recurso de mitigação de risco de ‘bloqueio duplo’, o primeiro de seu tipo”. Por meio de uma garantia de crédito da Development Credit Authority, apoiada pela Usaid, o fundo pretende garantir 50% de quaisquer perdas na alocação da dívida da carteira, até o limite de US$ 100 milhões. Segundo os gestores do fundo, isso permite “uma proposta de risco atraente, com baixos custos de desenvolvimento e uma estrutura que pode ser replicada em outras regiões ou países, uma vez que comprovemos sucesso no Brasil”.
A flexibilidade de um capital paciente
Um dos negócios a se beneficiar desse mecanismo inovador de investimento é a Horta da Terra, produtora de plantas alimentícias não convencionais (as chamadas Pancs) desidratadas. Em 2021, a empresa e a ABF firmaram um contrato de investimento com prazo até 2030, tendo como estrutura de investimento o modelo Revenue-Based Loan (RBL), que opera a partir de um empréstimo com repagamento baseado em receita. Tal modelo é mais flexível do que o financiamento por dívida tradicional, visto que os pagamentos são vinculados a uma percentagem da receita. Andrea Resende, investment manager da Impact Earth, observa não somente o caráter inovativo e flexível da modalidade RBL, mas, sobretudo, a sua aderência ao modelo de negócio do empreendimento, visto que instrumentos self-liquidating possibilitam um alinhamento entre os processos produtivos, a geração de valor e a perspectiva de crescimento da Horta da Terra. Para ela, trata-se de uma filosofia diferente dos fundos de private equity tradicionais. “Quando investimos, investimos no território, na biodiversidade. Para gerar impacto, todos os negócios investidos têm que dar certo! […] Quando utilizamos de flexibilização e criatividade de instrumentos, é com esse olhar para que os negócios – mesmos na fase early-stage – consigam ter caminhos claros de repagamento.” Para amparar o empreendimento nesse processo, o fundo tem procurado atuar muito próximo da operação, ocupando uma posição no conselho e auxiliando em questões de governança. Isso tem auxiliado a Horta da Terra a lidar com as peculiaridades típicas do seu estágio atual: da estratégia às ações de tração de vendas e validação de seu potencial de mercado. Recentemente, fundo e empresa elaboraram conjuntamente um Plano de Tração de Vendas, com o objetivo de desenvolver o mercado de pequenas e médias empresas do mercado brasileiro, através da estratégia de distribuição por canais indiretos – “microdistribuição” para o varejo. Andrea Resende destacou que os rápidos resultados obtidos com essa estratégia foram mais do que o esperado, pois, além de validar a demanda pelos produtos, permitiram desafiar os processos operacionais/produtivos do empreendimento.
Organizações ou pessoas físicas que investem precisam entender que, na ampla maioria dos casos, negócios da bioeconomia da floresta dificilmente terão retornos em períodos similares aos de empreendimentos tradicionais ou estabelecidos em outras regiões do país. É preciso destronar essa lógica. Do contrário, muitos investimentos seguirão como estão: nascendo e morrendo como narrativa e intenção
Em consonância com os dados empíricos obtidos, uma das principais virtudes do modelo RBL reside em “alinhar” mais estreitamente os interesses do investidor com a missão social do empreendedor, em contraponto à desconfiança quanto ao risco-retorno dos investimentos baseados no valor do negócio (equity).20 Ao defender que a RBL é um instrumento que materializa a proposição moral de extrair menos valor, J. Hellman sinaliza que os defensores da RBL esperam que essa estrutura contratual ajude a provocar um novo tipo de sujeito-investidor.
Nesse sentido, consideramos que a flexibilidade proporcionada por esse “capital paciente” e os resultados alcançados pela Horta da Terra podem servir de referência para muitos outros investidores e empreendimentos engajados com a bioeconomia da Amazônia. Em especial, quando se trata de negócios de pequeno porte e/ou recém-criados, visto a escassez de capital de risco disponível e de fácil acesso para empreendedores que não possuem histórico financeiro ou capacidade de montar garantias colaterais e pessoais
De poucos com muito para muitos com pouco
Levando em conta os empreendimentos socioambientais na Amazônia, consideramos que alavancar o volume e a própria efetividade dos investimentos passa, necessariamente, pela criação de mecanismos e instrumentos inovadores que possibilitem uma gama maior de investidores. Os empréstimos coletivos realizados pela Sitawi Finanças do Bem demonstram bem o potencial desse movimento. Desde 2008, a organização já realizou 14 chamadas e mobilizou mais de R$ 450 milhões para mais de 2.800 iniciativas socioambientais, sendo parte significativa delas na Amazônia.
Entre os negócios da região apoiados pela SITAWI estão: Pará Oil (que atua com a extração de óleos a frio de sementes oleaginosas amazônicas); Tucum (marketplace de artesanato indígena); Na’kau (marca de chocolates produzidos com cacau oriundo de comunidades ribeirinhas agroextrativistas); e Oka (fabricante de sucos de frutas típicas da região amazônica, produzidas a partir de sistemas agroflorestais).
Além disso, também chama a atenção a quantidade de cooperativas que já se beneficiaram dos empréstimos coletivos para desenvolver uas operações. Entre elas estão, por exemplo: Coex Carajás (extração das folhas do jaborandi, matéria-prima para a formulação de produtos cosméticos e farmacêuticos); Coofruta (cooperativa agroindustrial de extrativistas que comercializa produtos da região amazônica); e Semente do Marajó (cooperativa extrativista de açaí). Viabilizar capital diretamente para organizações dessa natureza é fundamental para o fomento de uma bioeconomia inclusiva, visto que, em muitos casos, elas ainda são tratadas, equivocadamente, como meras fornecedoras de matérias-primas para grandes empresas e não como aquilo que são: as verdadeiras protagonistas da bioeconomia da Amazônia.
O fundador e CEO da Sitawi, Leonardo Letelier, explica como funcionam esses empréstimos, destacando que a rentabilidade prevista gira entre 9% e 10% ao ano e que qualquer pessoa pode fazer seu cadastro na plataforma e aplicar valores a partir de R$ 10 nos negócios. Ao aumentar e diversificar a base de investidores engajados com o desenvolvimento dos negócios da sociobiodiversidade, essas chamadas cumprem um papel atimuito estratégico. Primeiramente, no sentido de canalizar mais recursos para os empreendimentos e de elevar as chances de retornos mais positivos para os investidores. Segundo, no sentido de popularizar e democratizar os investimentos de impacto socioambiental positivo na Amazônia. Com um número maior de pessoas entendendo como o dinheiro pode ser usado para melhorar a sociedade, o próprio campo dos investimentos de impacto adquire mais legitimidade e segurança institucional para se consolidar.
Os empréstimos não se limitam a negócios da Amazônia que trabalham com insumos da sociobiodiversidade. Há também uma preocupação em fortalecer empreendimentos que atuam com as demandas básicas da região, como é o caso já mencionado dos déficits na educação. Na chamada de 2019, por exemplo, um dos negócios contemplados foi a startup paraense Interceleri, que trabalha com soluções e ferramentas inovadoras para o ensino de matemática no ensino básico. Por meio dos R$ 215 mil obtidos, a empresa conseguiu ampliar sua operação (iniciada no ano de 2013) e dar escala aos serviços pedagógicos presentes no seu portfólio (jogos virtuais, aplicativos e equipamentos de realidade virtual), chegando a um número ainda maior de alunos (300 mil) e professores (15 mil) – em diferentes regiões do país, mas sobretudo na Amazônia.
Do território para o território
Um contato rápido com comunidades tradicionais e povos indígenas da Amazônia mostra o quão impressionante é a capacidade de organização (planos, documentos, soluções) dos povos originários da floresta. Exemplos como os dos Paiter Surui em Rondônia ou dos Baniwa no Alto Rio Negro evidenciam como eles são virtuosos na utilização do conhecimento tradicional para prover uma economia da floresta, seja agindo na base, por meio do monitoramento da biodiversidade local, ou diretamente na criação de marcas, produtos e cadeias produtivas como a do café, cacau e pimenta, por exemplo. Negar voz a essas comunidades e deixá-las de fora das decisões feitas sobre os investimentos nos parece um contrassenso para qualquer projeto que realmente ouse desenvolver a bioeconomia da região.
Consideramos, portanto, que mudar esse panorama requer não somente a conscientização dos atores que, mesmo não sendo da Amazônia, são engajados com a região e com a promoção de sua bioeconomia, mas também apoiar iniciativas conduzidas por esses povos no campo dos investimentos de impacto. Um exemplo contundente de ações dessa natureza pode ser encontrado no Podáali – Fundo Indígena da Amazônia Brasileira. Criado em 2020, após um processo extenso de discussão e amadurecimento, liderado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), o fundo tem como objetivo fortalecer a autonomia dos povos indígenas e de suas organizações, dando a eles um maior protagonismo na gestão das terras indígenas e na defesa de seus direitos.
Viabilizar capital diretamente para organizações dessa natureza é fundamental para o fomento de uma bioeconomia inclusiva, visto que, em muitos casos, elas ainda são tratadas, equivocadamente, como meras fornecedoras de matérias-primas para grandes empresas e não como aquilo que são: as verdadeiras protagonistas da bioeconomia da Amazônia
Por meio dessa iniciativa pioneira, os indígenas dos nove estados da Amazônia Legal (mais de 400 mil ao todo) passaram a dispor de um mecanismo próprio para projetos ligados à sustentabilidade, com destaque para as iniciativas com foco em economia sustentável e soberania alimentar, diretamente ligadas à bioeconomia. Formulado de acordo com as especificidades dos territórios e organizações indígenas, o fundo reflete em sua estrutura de governança as formas de organização e tomada de decisão dos povos originários. Daí, a propósito, a inspiração para o nome Podáali, que na língua do povo baniwa significa “doar sem querer receber nada em troca”, designando celebração, reciprocidade e promoção da sustentabilidade para o bem viver dos povos indígenas. Em sua primeira chamada, o fundo centrou-se no apoio a pequenos projetos, com valores de até R$ 50 mil por proposta. Desde que em parceria com organizações indígenas formalizadas, até mesmo organizações sem personalidade jurídica (ata, estatuto e CNPJ regular/ativo) puderam inscrever projetos, atentando assim para uma dificuldade histórica e que muitas vezes impede o acesso a recursos e a execução de iniciativas importantes para os territórios indígenas.
Do investimento em negócios para os investimentos no ecossistema da bioeconomia
Estudos têm chamado a atenção para a importância de uma abordagem regional da Amazônia, que seja capaz de integrar os oito países amazônicos em torno das soluções pensadas para o bioma.22 Da mesma forma, consideramos que os investimentos de impacto precisam expandir sua atuação para além dos empreendimentos da bioeconomia. Em uma região caracterizada por inúmeras carências (acesso à energia, saúde, saneamento de qualidade e internet, entre outras), chega até a ser ingenuidade acreditar que investir apenas nos negócios conduzirá à transformação prometida pela bioeconomia.
Entre os muitos desafios na região, três parecem merecer atenção especial: o combate ao desmatamento e o controle de atividades ilegais; o fortalecimento da ciência e da tecnologia; e a expansão e o aprimoramento de programas de educação empreendedora.
O desmatamento da floresta amazônica está associado, predominantemente, a atividades ilegais e contribui para os conflitos sociais e violência endêmica na região, os quais deterioram o ambiente econômico e inibem investimentos. Além de afetar a reputação internacional dos países da região, reduzir investimentos e prejudicar acordos comerciais, como é o caso do tratado da União Europeia com o Mercosul, o desmatamento contribui para a perda de biodiversidade e para o desequilíbrio das interações que alicerçam a vida da floresta, impactando negativamente o desenvolvimento e a sustentabilidade das cadeias produtivas da sociobiodiversidade. Para muitos empreendedores da Amazônia, “o desmatamento é o principal concorrente de seus empreendimentos”. Portanto, mesmo conhecendo as tensões geradas pelas abordagens de mercado no campo da conservação, consideramos que os investimentos de impacto precisam apoiar mais esforços de combate ao desmatamento.
Estudos têm chamado a atenção para a importância de uma abordagem regional da Amazônia, que seja capaz de integrar os oito países amazônicos em torno das soluções pensadas para o bioma. Da mesma forma, consideramos que os investimentos de impacto precisam expandir sua atuação para além dos empreendimentos da bioeconomia
Dada a sua transversalidade e abrangência, a bioeconomia também necessita de uma ampla gama de conhecimentos para se desenvolver. Ao englobar um conjunto de atividades intensivas em ciência e tecnologia e tendo como base competitiva a inovação, ela costuma demandar levantamentos, estudos e análises sobre temas bastante distintos, que vão desde aspectos geofísicos e químicos até regulatórios e mercadológicos, por exemplo. Sem investimentos robustos em ciência e tecnologia, é difícil avançar até no próprio conhecimento da biodiversidade da região, um ponto-chave para a criação de produtos e serviços inovadores.
A boa notícia é que a Amazônia já dispõe, há décadas, de várias instituições de ensino e pesquisa de excelência, como a Universidade Federal do Pará (UFPA), o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Museu Paraense Emílio Goeldi na Amazônia Legal, e uma série de outros centros de referência espalhados pelos demais países amazônicos. Enquanto baluartes do conhecimento científico disponível sobre o bioma, essas e outras instituições de ciência, tecnologia e inovação presentes na região são fundantes para qualquer projeto de desenvolvimento da bioeconomia da Amazônia. A notícia desagradável é que as instituições amazônicas não têm recursos suficientes para desempenhar suas atividades. Tomemos os investimentos disponibilizados para projetos de pesquisa sobre biodiversidade como exemplo. Estudos mostram que elas recebem apenas cerca de 10% do total concedido pelo orçamento federal, que somente 12% dos pesquisadores que trabalham em pós-graduação em biodiversidade no país estão na Amazônia e que 90% das bolsas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) destinadas à região concentram-se em somente duas cidades, Belém e Manaus.
Assim como no caso do desmatamento, há, naturalmente, quem advogue que cabe ao Estado realizar investimentos nas instituições de ensino e pesquisa da Amazônia. Contudo, considerando o desafio de apoiar de modo contínuo o adensamento científico local, com investimentos em suas universidades e institutos de pesquisas e tecnológicos, fica evidente a importância de outras fontes de investimento para fazer frente aos desafios existentes. Do contrário, arcaremos todos com os custos dessas insuficiências, sobretudo no que se refere ao desperdício de oportunidades que a região não pode se dar o luxo de permitir, em especial quando se considera a construção de sinergias entre os conhecimentos científicos e os saberes tradicionais das comunidades locais.
Sem um olhar atento para as especificidades da região e sem um interesse genuíno na transformação da realidade local, esses programas (de aceleração e de educação empreendedora) raramente atendem as demandas impostas pela bioeconomia. Escolher quem deve executar esses programas se torna, portanto, uma decisão-chave
Outro desafio que demanda investimentos de impacto no campo da bioeconomia reside na criação, expansão e institucionalização de programas de educação empreendedora. Ao abranger não somente a disseminação de conteúdos técnicos e o fortalecimento de competências comportamentais, mas também o intercâmbio com outros atores do ecossistema e o acesso a capital semente, esses programas têm sido fundamentais para qualificar jovens empreendedores e dar luz a novos negócios em muitas cidades da Amazônia. Em especial, por atentarem para um conjunto de dificuldades relacionadas às fases de estudo, prototipação e operação inicial dos empreendimentos da bioeconomia.
De acordo com Raphael Medeiros, diretor do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, associação sem fins lucrativos que promove negócios com foco na floresta, “destravar o investimento em iniciativas em fase inicial é fundamental para que, num futuro próximo, tenhamos carteira atrativa para os fundos de investimento maiores e mais exigentes. Por isso os programas de aceleração e de educação empreendedora acabam beneficiando não somente os negócios em si, mas também o investidor inicial, com tíquete médio mais baixo,e os próprios fundos de investimento de grande porte, que demandam mais negócios estruturados para direcionar os recursos”.
Se o grande público não tiver a oportunidade de ouvir sobre a Amazônia a partir dos próprios amazônidas, as políticas e projetos em prol da sua bioeconomia tenderão a reproduzir práticas neocoloniais ou até a gerar efeitos controversos em termos de desenvolvimento sustentável. Mesmo que sem consciência ou intenção, muitas vozes exógenas carregam as mesmas lógicas que conduziram a Amazônia ao estágio atual
Além de investir na expansão dessas iniciativas, também é imprescindível fazer algumas escolhas. Após mapear os programas realizados na Amazônia Legal ao longo dos últimosanos, observamos que poucos deles possuem uma forte conexão e conhecimento da realidade social, econômica, ambiental, cultural e institucional da região. Em alguns casos, há inclusive programas que apenas replicam e/ou importam metodologias utilizadas em outros contextos. Em outros, por sua vez, a preocupação gravita muito mais na obtenção de indicadores quantitativos (volume de inscrições, quantidade de mentores, número de projetos desenvolvidos, etc.) do que em resultados substantivos. Não há problema no fato de a educação empreendedora ter se tornado mais um dos mercados aguçados pela bioeconomia da Amazônia. A questão são os problemas notórios que isso tem apresentado em termos de efetividade dos programas. Afinal, sem um olhar atento para as especificidades da região e sem um interesse genuíno na transformação da realidade local, esses programas raramente atendem às demandas impostas pela bioeconomia. Escolher quem deve executar esses programas se torna, portanto, uma decisão-chave.
Até o momento, as experiências mais bem-sucedidas desenvolvidas na região têm sido lideradas por organizações locais. Por meio de parcerias e de recursos provenientes da filantropia, programas como o Amazônia UP e o Floresta 360o têm conseguido impulsionar o empreendedorismo sustentável entre jovens em dezenas de municípios da Amazônia. Iniciativas como essas precisam ser expandidas e institucionalizadas, mas como requerem investimentos que muitas vezes não rendem cases nem têm resultados imediatos, uma postura colaborativa e flexível dos investidores é necessária.
A bússola por trás desses e de outros caminhos
A jornada trilhada a partir de debates, artigos, relatórios, entrevistas e de tantos outros momentos de convívio com empreendedores e investidores engajados com a bioeconomia na Amazônia permite apontar que os investimentos feitos nessa seara devem seguir novos caminhos. Para alcançar um aumento quantitativo e qualitativo dos recursos aportados nos negócios da floresta, é preciso não somente conhecer a fundo as estratégias adotadas por organizações que conseguiram aportar e captar recursos de modo inovador, como também observar criticamente os valores, práticas e mecanismos institucionalizados que, em muitos casos, ainda balizam as relações entre investidores, intermediários e empreendedores.
Por meio deste artigo, demonstramos como alguns desses caminhos têm sido trilhados, evidenciando o potencial deles na superação de desafios característicos da bioeconomia da Amazônia. Se, por um lado, esses caminhos contemplam apenas uma pequena parcela de todas as modalidades de investimento – possíveis ou potenciais – para o avanço da bioeconomia,por outro, eles conseguem trazer à tona um conjunto de experiências inspiradoras e novas oportunidades de ação. Como em um mapa, eles designam rotas alternativas para a solução de problemas que persistem nas formas convencionais de investimento. Ainda que sejam experiências recentes, com resultados a serem monitorados, acreditamos no potencial de cada uma delas.
De todo modo, não nos parece adequado tomar esses caminhos como fórmulas de imediata replicação. Primeiro, porque as diferentes Amazônias nos ensinam, diariamente, o quão particular é cada face desse bioma. Segundo, por sabermos que os negócios, variando em escopo, porte, grau de maturidade e segmento, também demandam abordagens contextualizadas de ação. Se há algo que deve ser retido como condição sine qua non após toda a nossa jornada é que existe uma bússola tão potente quanto desprezada nessa agenda: o protagonismo dos amazônidas na definição dos rumos e modalidades de investimentos feitos na bioeconomia da Amazônia.
Por mais que a importância global da Amazônia faça com que todos sejamos amazônidas (como defendeu Ignacy Sachs) e que, não raro, seja vital “sair da ilha para ver a ilha” (como nos ensinou José Saramago), urge dar voz e vez àqueles que habitam e trabalham nos territórios amazônicos. Somente com a participação ativa desses atores será possível alcançar uma consciência mais ampla sobre as especificidades da região e, por conseguinte, endereçar investimentos que contribuam para o enfrentamento de seus desafios – entre eles, o desenvolvimento de uma bioeconomia sustentável e inclusiva. Em consonância com estudos recentes, apontamos que, sem inclusão, esses debates podem seguir na contramão das demandas, desdobrando-se tanto em análises equivocadas quanto em pautas alheias aos reais problemas da Amazônia.
Um dos desdobramentos mais salientes da ausência desse protagonismo no modo como os investimentos e a própria bioeconomia são concebidos reside na perpetuação de uma visão estereotipada da Amazônia. Ao conceber apenas a existência de uma única Amazônia (aquela presente no imaginário social, a Amazônia floresta), diminui-se o valor de tudo que ocorre na Amazônia, nos grandes centros urbanos da região – justamente onde vive cerca de 76% da população local e onde também se desenvolveram os mercados internos e as trajetórias tecnológicas de muitos recursos da sociobiodiversidade. Isso explica por que alguns projetos pensados para a bioeconomia da região têm dificuldades em perceber o quanto ela já está presente no DNA das cidades amazônicas. Ainda que a história abunde evidências da influência de determinadas culturas na formação desses centros urbanos (como foi o caso da economia da borracha em Manaus e Belém), muitas iniciativas teimam em tratar a bioeconomia como a invenção da roda e, não raro, em reivindicar para si os louros por tal “novidade”.
Em suma, se o grande público não tiver a oportunidade de ouvir sobre a Amazônia a partir dos próprios amazônidas, as políticas e projetos em prol da sua bioeconomia tenderão a reproduzir práticas neocoloniais ou até a gerar efeitos bastante controversos em termos de desenvolvimento sustentável. Afinal, mesmo que sem consciência ou intenção, muitas vozes exógenas carregam as mesmas lógicas que conduziram a Amazônia ao estágio atual.
A participação dos amazônidas foi fundamental para a formulação, desenvolvimento e êxito de diferentes formas de investimentos de impacto feitos nos negócios da bioeconomia da floresta. Os Fords que passaram pela história da Amazônia já demonstraram o quão importante é garantir centralidade e protagonismo aos amazônidas no desenvolvimento da região. Entretanto, nem esse legado eles parecem ter deixado. Seja entre estrangeiros que nunca pisaram na Amazônia, entre brasileiros que habitam em algum lugar dos outros 49% do país, ou mesmo entre os habitantes da própria região que, por inúmeros motivos, acabam persistindo em olhar mais para fora do que para dentro, ainda há um longo caminho até alcançarmos esse grau generalizado de consciência. Que, antes de pegar o caminho (seja um dos aqui mencionados ou qualquer outro a desbravar), não esqueçamos de nossa tão valiosa bússola.