Educação online para o ensino de qualidade em árabe

Investir em inovação digital pode expandir o acesso à educação, mas é preciso ampla colaboração para criar e ampliar plataformas de aprendizagem de alta qualidade e baixo custo

Este artigo faz parte da nossa série “A busca global pela equidade”. Para conferir os demais artigos, clique aqui [1].

Por Waleed Al Ali e Amr Awad

Arte: Raffi Marhaba, The Dream Creative

Educação de qualidade é essencial para o desenvolvimento sustentável. O acesso a espaços de aprendizagem seguros, recursos confiáveis, uma grade curricular credenciada e centrada no aluno e professores eficazes promovem o crescimento individual, social e econômico, além de preservarem e promoverem valores culturais que passam para as gerações futuras. Em outras palavras, o sistema educacional de uma nação afeta diretamente seu potencial de prosperar. O Relatório de Monitoramento da Educação da Unesco [2], por exemplo, sugere que o desenvolvimento de habilidades básicas de leitura entre estudantes de países de baixa renda ajudaria 171 milhões de pessoas a escapar da pobreza extrema.

O acesso desigual às oportunidades de educação é o maior desafio para capitalizar essa força. As barreiras incluem infraestrutura de transporte precária, fazendo com que muitos estudantes em áreas rurais remotas precisem caminhar longas distâncias até a [3] escola, e a pobreza, que força muitos estudantes a trabalhar em vez de estudar enquanto suas famílias lutam para sobreviver.

A pandemia de covid-19 exacerbou barreiras desse tipo. A pobreza de aprendizagem é uma métrica útil para entender a questão. Ela indica a parcela de crianças que não alcançaram a proficiência mínima em leitura na escola ajustada pela proporção de crianças fora da escola. De acordo com um relatório do Banco Mundial [4], a taxa de pobreza de aprendizagem aumentou de 57% para 70% em países de baixa e média renda nos primeiros dois anos da pandemia devido ao fechamento prolongado das escolas, e aumentou a probabilidade de que meninas e grupos vulneráveis com difícil acesso à educação fiquem para trás. A organização Save the Children estima que 9,7 milhões de crianças [5] nas áreas mais pobres e marginalizadas em todo o mundo podem perder oportunidades educacionais de forma permanente.

Enquanto isso, interrupções como o terremoto que atingiu a Síria e a Turquia [6] e as guerras na Ucrânia, no Paquistão e no Sudão tornaram a “educação digital” ou o “ensino a distância” necessidades, e não apenas vantagens. Isso levou muitos países a expandir o uso da tecnologia para melhorar seus sistemas educacionais, aprimorar o desempenho de alunos e professores e preencher a lacuna educacional entre áreas urbanas e remotas.

Investimentos em inovação digital têm o potencial de criar novas plataformas de aprendizagem de alta qualidade e baixo custo que possam ser ampliadas, além de fortalecerem a infraestrutura digital, aumentarem capacidades e desenvolverem padrões para acesso equitativo a todo o setor. Um exemplo disso é a Escola Digital [7].  Também conhecida como Madrasa [8] e lançada em 2020, ela se concentra no acesso à educação para grupos vulneráveis e refugiados em comunidades árabes e além.

 

Baseando-se em esforços anteriores

 

A Escola Digital [7] faz parte da Mohammed bin Rashid Al Maktoum Global Initiatives [9], uma fundação composta por mais de 30 projetos e entidades diferentes que lidam com questões como ajuda humanitária e de socorro, cuidados de saúde e empoderamento comunitário. Mohammed bin Rashid Al Maktoum, vice-presidente e primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos e governante de Dubai, lançou a maioria desses esforços, mas vê a Escola Digital como prioridade para o desenvolvimento sustentável.

A iniciativa foi projetada para complementar os objetivos de programas anteriores, entre os quais o Dubai Cares [10]. Originalmente voltado para fornecer oportunidades de educação de qualidade e construir escolas, passou a incluir áreas como educação em emergências e crises prolongadas e equidade de gênero na educação. A Escola Digital também se relaciona ao Desafio Árabe de Leitura [11], que promove a leitura em árabe entre os jovens e alcançou participação recorde em 2023, seu sétimo ano, com 24,8 milhões de alunos. Além disso, o projeto se baseia na experiência dos Emirados Árabes Unidos (EAU) em educação digital, incluindo projetos como o Programa de Aprendizagem Inteligente [12] Mohammed bin Rashid de 2012, que implantou tecnologia de ponta em escolas locais, e a Iniciativa de Governo Inteligente [13] de 2013, que disponibilizou serviços governamentais para as pessoas o tempo todo.

 

Uma nova plataforma de ensino online

 

O ponto de partida do projeto foi criar uma plataforma de aprendizagem robusta com conteúdo educacional de alta qualidade em árabe. Embora seja um dos idiomas mais falados no mundo, apenas 3% do conteúdo educacional disponível era em árabe, segundo estimativas otimistas [14] da época.

A construção da plataforma exigiu, portanto, o fornecimento de novos conteúdos na língua e a arabização dos já existentes na Internet. Um grande esforço que resultou dessa diretiva foi um acordo de localização com a Khan Academy [15], uma organização sem fins lucrativos que oferece uma ampla gama de aulas digitais e materiais de aprendizagem. Começando com os quase 5.000 cursos de ciências e matemática da plataforma, Mohammed bin Rashid introduziu um “desafio de tradução” por meio de mídias sociais, publicidade digital e outros canais que pediam que instituições e indivíduos contribuíssem para o projeto de localização, fosse traduzindo texto, fornecendo gravações ou criando gráficos. O projeto envolveu a criação de diretrizes de tradução, incluindo o uso do árabe coloquial, que é semelhante ao árabe padrão moderno e compreendido em muitas regiões.

Em um ano, todos esses cursos e muitos outros materiais educacionais de fontes como Unicef e Unesco foram arabizados e, em 2018, após obter o aval do Ministério da Educação para a qualidade do conteúdo, passaram a ser disponibilizados na plataforma Escola Digital. Desde então a equipe de gestão, composta por professores, educadores, especialistas em TI e voluntários, adiciona centenas de novos materiais de aprendizagem a cada ano.

 

Cinco áreas-chave para colaboração

 

Investir em tecnologia pode ajudar os governos e as instituições de ensino existentes a tornar o aprendizado mais acessível a mais alunos e aumentar a resiliência dos sistemas educacionais locais em geral. No entanto, para ter sucesso nesse âmbito, é preciso encontrar maneiras criativas de desenvolver capacidades, particularmente por meio de uma ampla colaboração em cinco áreas.

  1. Parceria para construir uma infraestrutura digital

Uma plataforma de ensino online só é útil se os alunos tiverem os dispositivos e a internet para acessá-la. Uma infraestrutura digital forte é essencial, e construí-la requer esforços coordenados de uma série de instituições.

A Escola Digital fez parcerias [16]com órgãos governamentais, empresas e ONGs para colocar em prática as ferramentas necessárias. Isso inclui a criação de centros de aprendizagem digitais – salas de aula em escolas existentes onde os professores estão presentes e os alunos podem usar dispositivos digitais para se envolver com os trabalhos do curso, e onde os docentes realizam treinamento. Ao lado do Comitê Internacional da Cruz Vermelha [17], equipou mil centros de aprendizagem digital em países como Egito, Jordânia, Bangladesh e Síria e, com o Crescente Vermelho dos Emirados Árabes Unidos [18], forneceu suprimentos a 66 centros de aprendizagem digital na Mauritânia.

A Escola Digital também lançou recentemente uma campanha para doações de dispositivos eletrônicos em colaboração com a Ecyclex [19], uma empresa com sede em Dubai especializada em reciclagem e reforma de dispositivos eletrônicos. A campanha convoca indivíduos e instituições a doarem impressoras, computadores e tablets, entre outros, para apoiar a educação em todo o mundo. Foram 23.392 alunos atendidos com 5.823 dispositivos até agora; a meta é coletar 10 mil.

As parcerias também são importantes para garantir o acesso à internet. Uma operadora de rede móvel com sede no Egito, a Orange Egypt [20], por exemplo, fornece cartões SIM gratuitos para tablets que o Ministério da Educação egípcio distribui para escolas e acesso gratuito à internet para alunos que usam esses equioamentos na Escola Digital.

  1. Parceria para credenciamento

A avaliação independente e a acreditação motivam as instituições de ensino a melhorar continuamente. Eles também criam empréstimos públicos, bolsas de estudo, educação pós-secundária e programas militares mais prontamente disponíveis para os estudantes.

O desenvolvimento de um novo currículo e a obtenção da acreditação demoram geralmente de um a três anos [21]. A Escola Digital adotou dois caminhos para encurtar e simplificar o processo. Primeiro, alinhou seus componentes curriculares existentes, ou áreas temáticas, com o currículo adotado em cada país. A partir daí, uma equipe de voluntários criou coletâneas de aulas e, finalmente, um programa digital abrangente que incluiu entradas, avaliações e monitoramento.

Em segundo lugar, a Escola Digital está validando seus programas junto a organismos internacionais de acreditação como instituição de caridade especializada em educação digital. Para isso, trabalha com a New England Association of Schools and Colleges [22] (Neasc), que estabeleceu padrões rigorosos e um sistema de credenciamento para educação digital, e está desenhando parcerias com instituições como a Universidade do Arizona e a Universidade de Manchester para fornecer bolsas de estudo aos graduados no futuro.

  1. Priorização da formação digital de professores

Os professores são o fator mais influente para se alcançar uma educação de alta qualidade. Seu escopo de conhecimento e estilo de ensino afetam profundamente a capacidade de os alunos absorverem e reterem novas informações.

A principal responsabilidade dos professores da Escola Digital é projetar novos percursos de aprendizado, que atendam às necessidades específicas dos alunos em cada região. Isso pode envolver a criação e gravação de novos materiais, ou o uso de materiais existentes, como aulas traduzidas. Em 2021, para ajudar a qualificar e preparar novos professores, a Escola Digital desenvolveu um programa de treinamento em colaboração com a Universidade do Arizona, voltada para o uso de ferramentas de aprendizagem e para a interação com os alunos. O programa está disponível em quatro idiomas, consiste em três níveis (de acordo com o tema e o grau de desenvolvimento ou especialização dos professores) e leva cerca de três meses para ser concluído. Até o momento, 1.500 docentes o completaram.

A Global Academy for Digital Teachers [23], academia internacional aberta a todos os educadores, surgiu dessa mesma colaboração. Ela se concentra no desenvolvimento de habilidades de ensino, facilitação e gestão dos professores e estabeleceu um mecanismo de certificação em colaboração com a Universidade Britânica de Dubai, a Universidade de Manchester e a Universidade de Nicósia para garantir a certificação global. Isso permite à academia cumprir seu objetivo de fazer com que os professores transmitam e moldem o conhecimento globalmente, ao mesmo tempo que apoiam os valores locais.

  1. Apoio aos mais vulneráveis

O acesso à educação é ainda mais complicado no caso de refugiados. De acordo com um relatório da Human Rights Watch [24] de 2021, havia aproximadamente 660 mil crianças sírias em idade escolar refugiadas apenas no Líbano, e quase 400 mil delas não receberam nenhuma educação nos últimos anos.

Dado o potencial da educação online para atender a grupos deslocados, a Escola Digital intensificou seus esforços para apoiá-los por meio de projetos como a Escola Digital para refugiados e crianças carentes [25] no Egito, na Jordânia, no Iraque, na Mauritânia e na Colômbia, em uma colaboração com a instituição de caridade Human Aid and Development (Hand) [26], que administra escolas para refugiados sírios no Líbano. Por exemplo, uma das escolas da Hand tinha, em princípio, espaço físico para acomodar só 1.500  alunos, o que deixava 10 mil na lista de espera. A entidade trabalhou com a Escola Digital para construir uma sala de aprendizagem para que os estudantes pudessem ter aulas digitais durante parte do dia, dividindo assim seu tempo entre elas e as aulas presenciais, abrindo espaço para que mais alunos participassem. Hoje, a escola tem capacidade para 3.500 estudantes.

A Escola Digital também tem como objetivo apoiar a educação das meninas de diferentes formas. Um exemplo é sua colaboração com a Iniciativa Fatima bin Mohammed bin Zayed [27] , no Afeganistão, que administra centros onde elas podem aprender artesanato tradicional. As alunas podem fazer cursos presenciais nesses centros, que são equipados com computadores e ferramentas digitais, e, em alguns casos, continuar seus estudos de casa, em formato online. Os cursos abrangem saúde e higiene, leitura, aquisição de competências matemáticas e assuntos vocacionais para mulheres, e oferece ainda programas de aprendizagem e treinamento em ensino, enfermagem e obstetrícia.

  1. Inovação para a sustentabilidade

Um dos grandes desafios enfrentados pelo trabalho da Escola Digital é que nem sempre há eletricidade nas áreas onde vivem alunos vulneráveis. Para ajudar a resolver isso, uma equipe de engenheiros dos Emirados Árabes Unidos desenvolveu uma “escola portátil” que contém um carregador, cinco tablets com conteúdo de aprendizagem, um projetor e outros dispositivos. O equipamento, movido a energia solar, consome 80% menos eletricidade que um computador padrão e sua configuração pode ser feita em de duas a três horas pelos professores.

A Escola Digital também procura aproveitar novos desenvolvimentos tecnológicos, como ferramentas de tecnologia educacional e inteligência artificial. Por exemplo, organizou um desafio para programadores a fim de ajudar os professores a preparar planos de aula usando o ChatGPT. Essas inovações ampliam a eficiência e auxiliam a eliminar barreiras de acesso.

 

Um olhar para o futuro

 

Desde o início, a Escola Digital tinha como objetivo alcançar alunos de língua árabe não apenas no Oriente Médio e no Norte da África, mas globalmente. Hoje, está presente em nove países e já prestou serviços a 60 mil estudantes em todo o mundo. A escola espera alcançar 1 milhão de alunos nos próximos dois anos, em parte colaborando com a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral [28] e os escritórios nacionais do Programa Mundial de Alimentos [29] na África do Sul. O objetivo inicial é formar mil professores qualificados digitalmente e começar a popularizar o modelo de educação digital em Angola, Lesoto, Madagáscar, Namíbia, Zâmbia e África do Sul.

Ainda que a Escola Digital se volte amplamente a atender às necessidades tecnológicas, seu trabalho começa e é fundamentado nas carências educacionais e na missão de preencher lacunas nesse âmbito. Ela continuará a construir oportunidades reais de aprendizagem para estudantes em áreas desfavorecidas, com a esperança de promover a equidade e o potencial de prosperidade regional e global.

OS AUTORES

Amr Awad é um escritor egípcio e correspondente da MIT Technology Review Arabia [30], e editor sênior da SSIR Arabia [31]. Formado em ciências políticas pela Universidade do Cairo, mora em Berlim, onde se dedica a escrever sobre inteligência artificial e tecnologia.

Waleed Al Ali, secretário-geral da Escola Digital [7] e conselheiro sênior da Mohammed bin Rashid Al Maktoum Global Initiatives, é coordenador geral da iniciativa Madrasa de ensino online e coordenador do Dubai Future Council for Humanitarian Aid. É doutor em gestão de projetos e inovação, mestre em gestão de TI e bacharel em segurança da informação.